Oração à Turma Justiça, ética e cidadania - UESPI /2006

Senhoras! Senhores!

Hoje é uma noite de júbilo, onde deve reinar um espírito de alegria porque celebramos a nossa vitória.

Quero dar aqui, em nome de todos os 35 formandos do Curso de Direito do segundo semestre de 2006 do Campus da Universidade Estadual do Piauí em Parnaíba, os nossos cordiais agradecimentos àqueles que participam desse ato solene.

Aos que vieram de longe, até de outros Estados, para prestigiar nossa formatura, sejam bem-vindos.

Autoridades, colegas, professores, parentes, amigos,

Essa é a “nossa noite” e os convido a relembrar por alguns instantes momentos importantes desses cinco anos em que estivemos juntos.

Todo esse tempo foi um encontro de vidas, de âmagos, de brios, de almas! Sentamo-nos lado a lado, por longos dez semestres. Nesse período, estivemos na maioria das vezes, separados pela distância construída pela cultura, ambições, princípios e idiossincrasias de cada um. Às vezes, separados apenas por orgulhos que nem mesmo sabemos por que os mantemos.

Mas, voltemos um pouco no tempo...

Voltemos ao dia da euforia da aprovação no Vestibular.

De diferentes formas e em diferentes pontos, rodas, templos, lares... ou bares, comemoramos individualmente a conquista da tão concorrida vaga no Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí.

Alguns aqui passaram de primeira, e isso, por si só, já era um troféu, carregado de muito simbolismo. Sabemos bem o que representa chegar ao nível superior no Nordeste brasileiro. E para nós piauienses, de longa data marcados pelos preconceito e etnocentrismo – que insistem em esnobar da nossa capacidade intelectual, não é diferente!...

Tratam-nos como se o sol do Equador prejudicasse nossos neurônios e nos impedisse de sermos críticos, sensíveis e competentes. Os estudantes da melhor escola do Brasil, Instituto Dom Barreto, que o digam.

Caríssimos, o que fazemos aqui hoje é entrar para um rol singular...

Simplício Dias, Leonardo Castelo Branco, Reis Velloso, Evandro Lins e Silva.

Só para citar algumas genialidades.

E o que eles têm em comum?

O que nós podemos ter em comum com eles?

Pensemos um pouco...

O que todo piauiense, nordestino, brasileiro tem de especial?

O que há de diferente nessa noite e que pode mudar nossas vidas?

O que pode inscrever nossos nomes nesse mesmo memorial histórico que guarda todos esses personagens?

A CORAGEM !!!

A coragem de desafiar nossas limitações, de lutar contra a tirania, ou o “destino”, ou os estereótipos, ou o que quer que seja que tente nos obrigar a conformarmo-nos com a mediocridade. Uma mediocridade que não faz parte de nós, mas querem nos convencer dela.

Acontece que fomos imbuídos, desde a primeira aula, do sentimento dos primeiros formandos em Direito desta Faculdade. Quem não lembra das dificuldades para termos esta cadeira em Parnaíba?

E quando havíamos obtido tal conquista fomos confrontados pelo desdém e descrédito de forças políticas, que aliadas a conglomerados econômicos, planejavam extinguir o curso em Parnaíba.

A resposta sobre a nossa capacidade veio no Exame de Ordem, que não deixou a desejar. Herdamos e manteremos tal tradição, não apenas para galgarmos postos profissionais, mas, principalmente, para honrar o esforço dos pioneiros.

SOMOS UMA GERAÇÃO CORAJOSA, VALENTE !!!

Todos que se formam nesta noite, sob o peso da tradição secular que essa beca possui, são pessoas que tiveram que ousar, acreditando que seria possível conquistar uma vaga nesse curso historicamente concorrido.

Senhoras. Senhores.

Quando começamos o curso, tudo era bem diferente.

Nós éramos diferentes.

Há cinco anos, o país vivia outra conjuntura. A universidade pública lutava contra o sucateamento. Somos, portanto, filhos de um período de transição entre uma mentalidade que via no ensino público um peso e outra que vê na educação a saída para os nossos mais profundos problemas sócio-econômicos.

Se me permitem uma rápida análise da conjuntura que marcou nossa graduação: sofremos com os atos perversos do neo-liberalismo que assolou o Brasil pós-ditadura militar.

Mas somos também testemunhas vívidas do processo de implantação de um modelo mais difícil, que é o modelo sócio-democrático.

Sim. Muito mais difícil !

Porque a democracia exige um nível de maturidade política, profissional, pessoal até, ao qual nós brasileiros, (nordestinos, em particular), não estamos acostumados.

Resistimos, a maioria de nós, por ainda estarmos presos aos vícios do paternalismo, do coronelismo, das tradições... e nós, parnaibanos por nascimento ou adoção, podemos falar bem sobre isso.

Fechando o parêntese da análise, ilustríssimos, continuemos com nossa retrospectiva. É difícil para as pessoas que convivem conosco admitir as mudanças, mas a verdade é que mudamos desde aquela tarde do dia onze de março de 2002.

A maioria de nós era apenas adolescente quando subiu a escadaria do velho Ginásio Parnaibano, naquele dia.

Ao atravessar o umbral daquele elegante prédio da Rua Grande, entramos na fôrma da vida adulta.

E, invertendo o ditado popular, depois da euforia de calouros, vieram as crises... pessoais, intelectuais, de convivência, de classes. Não nos enganemos: os preconceitos estiveram sempre ali, como um fantasma a nos atormentar.

Talvez nem precisemos lamentar o fato de que eles continuarão nos acompanhando. De certa forma, eles serão os divisores de água nas nossas trajetórias profissionais... farão a diferença entre uns e outros.

E assim como os preconceitos, caríssimos, os desafios também estão dentro de nós. A frase pode parecer apenas um jargão, mas é a verdade. Cada aula ao longo desses cinco anos foi uma batalha.

Uma batalha travada contra as nossas mais profundas convicções. Fosse por nos confrontar com uma lei com a qual não concordávamos, fosse por ter que aceitar coisas fora dos nossos padrões de “normalidade”.

Já éramos uma turma, com identidade própria, que no nosso caso é marcada pela heterogeneidade, quando perdemos a professora Taumaturgo. E, enquanto corpo, ficamos mutilados sem Alonso. A história dos formandos em Direito do ano de 2006 é incompleta sem essas pessoas.

Por outro lado, aprendemos a sobreviver às perdas. E, como nunca nos resta outra alternativa, a não ser seguir... seguimos!

Seguimos carregando aprendizados e pretensões.

Passando por provações.

Um dos momentos críticos foi a reta final - o estágio curricular. Foi aí que nos demos conta de que somos mais humanos do que gostaríamos.

Admitamos! Quem aqui não se viu muito abaixo do Olimpo ao chegar ao Serviço de Assistência Jurídica, o SAJU?? Quem aqui não sentiu uma certa acidez no estômago ao perceber que estava a anos-luz de distância do grande jurista que imaginava ser ao se deparar com as correções do professor Diógenes, da professora Sara, da professora Maria da Graça e do professor Marco Antônio?

Mas nem tudo foram espinhos.

Existiram momentos especiais.

Afetuosos, mesmo.

Fomos surpreendidos, ou melhor presenteados, em meados do curso por uma pessoa que adocicou nossa peregrinação pelo estudo das ciências jurídicas.

Sua dedicação, demonstrada pela quantidade de doutrinas que trazia para as aulas, denunciava sua face de pesquisadora.

Contudo, ninguém poderia supor que conheceríamos um lado seu que viria a ser sua principal marca. Entre uma lei e outra, como que para enternecer essa lida, poemas e textos cheios de ternura vieram pacificar os nossos ânimos, acalmar as feras que existem em nós... do aluno mais hostil ao mais sensível, todos se renderam ao encanto da inesquecível professora Zulmira.

E se saímos da adolescência praticamente naquelas salas, sob os olhares atentos de nossa querida Neném, é preciso reconhecer a importância de todos os funcionários que fazem a UESPI e, em especial, dos docentes.

De uma ponta a outra, seja dos mais rigorosos, como os professores Mariano e Cajubá, aos mais camaradas, como os professores Telius e Bacelar, cada um, ao seu modo, contribuiu com nossa formação intelectual e (por que não dizer?) nosso caráter.

Todos, dentro de suas peculiaridades, serviram de exemplos para nós.

Assim, caminhamos juntos para a maturidade!

Enfim, chegamos aqui.

Fim dos temores? Da insegurança? Felizmente, não!

— Digo: Felizmente não!

Caros colegas, só mais um pouco, e então, nada mais vai impedir que integremos essa confraria que já atravessa séculos de existência. E ouso dizer que é agora que começa a corrida das tartarugas rumo ao grande Atlântico!

Chegamos ao tempo dos verdadeiros desafios.

O maior deles?

Penso que está em compreendermos a necessidade de pagar nossa dívida para com a sociedade: devolver a ela aquilo que recebemos gratuita e privilegiadamente – o conhecimento científico.

Que o façamos, então, comprometidos com a dignidade humana, com a justiça social e com a construção de uma sociedade consciente de seus direitos e deveres.

Que ajudemos a construir um país realmente livre e soberano.

Um país de cidadãos e cidadãs!

Por isso mesmo nessa noite vamos fugir da competitividade que certamente insistirá em nos rondar, logo que ultrapassemos o umbral desta porta.

A estrela de hoje não somos nós. A estrela dessa noite é o Direito, o inexorável Direito. Inexorável como a vida. Inexorável como a morte.

Quem pode dele escusar-se?

Quem dele pode evadir-se?

E essa presença irresistível e fascinante na vida de cada homem ou mulher, do maior ao menor, é que faz muitos de nós almejarmos dominá-lo. Tenho que dizer, triste e feliz ao mesmo tempo, que isso é, caros colegas, impossível!

Para afirmar isso, valho-me do mito grego de Sísifo, o homem condenado a eternamente levar uma rocha montanha acima para, tão logo termine a missão, vê-la despencar novamente.

Qualquer comparação entre a metáfora da tarefa infindável, inacabada, porém jamais abandonada, com as intermináveis e solitárias madrugadas debruçados sobre os livros, certamente não é forçosa.

Eis onde o estudo da ciência jurídica nos lembra também o movimento incessante das ondas do mar.

A natureza perecível do conhecimento da lei torna infindável o dinamismo da natureza jurídica. E isso exige do operador do Direito, uma humildade e uma necessidade de buscar a reciclagem que devem se mirar no exemplo de Sísifo.

Quantas vezes vimos nossos livros serem transformados em meros instrumentos antropológicos, desatualizados semanas depois de adquiridos com tanto esforço?

Por mais frustrante que seja, nunca deixa de ser belo ver o Direito fugir ao controle.

Como um horizonte que jamais se alcança, mas sempre nos chama.

Ele não se deixa possuir. Será que foi essa constatação que levou Gomes Canotilho a dizer que “compreender o Direito em sua totalidade seria o mesmo que parar o vento com as mãos”? Se foi, ele estava com a razão!

A explicação para tal poder pode estar na própria natureza do Direito.

E o que é o Direito?

A resposta, garanto, está na ponta da língua de cada um que passou pelas aulas do professor Robério.

Filosofemos então, um pouco, sobre o Direito. Falemos, ainda que sem os fundamentos de Bobbio, Kelsen e Savigny, de sua natureza. Prestemos a ele a nossa justa homenagem.

De minha parte, só posso reconhecer que por mais que o ame, não posso falar mais dele do que por meio de alegorias. O Direito está para a sociedade, como a água para a vida.

Ambos permeiam todos os ciclos da existência humana.

Do primeiro banho, no nascimento, ao último, antes de descer à terra, a água e o Direito são as únicas companhias certas que os viventes têm.

E como o Parnaíba, o Velho Monge, do poeta Da Costa e Silva, o Direito também é uma fonte perene para a vida. E assim como o nosso barrento rio, o Direito também nasce em mananciais muito tênues. Na fraqueza nascem suas forças. Pois a quem se destina o Direito? Àqueles que dele precisam. Aos injustiçados, àqueles que por alguma razão, estão sem condição de ter seus direitos sozinhos.

Não é por acaso que essa turma de formandos da Universidade Estadual do Piauí se chama “justiça, ética e cidadania’.

Nossa escolha já foi feita:

Optamos por honrar o Direito, renunciando à omissão, à negligência, à indiferença, e à mediocridade.

Como novos bacharéis, comprometamo-nos com o que mais caracteriza o Direito: a defesa incessante dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana: o direito ao Direito.

Pois o Direito é, antes de tudo, um farol para os que navegam nesse mundo.

E o Direito se aproxima de sua finalidade justamente quando cria um efeito prático na vida dos cidadãos que o buscam ou o infringem. Efeito este, advindo do balançar de olhos entre o fato e a norma, parafraseando a elucubração de Miguel Reale quando dissertou sobre a característica tridimensional da ciência jurídica, composta pela repercussão do fato, o valor que a sociedade confere a ele, dando ensejo à lapidação da norma.

A imperfeição da teoria é denunciada pelo esquecimento de Reale, que não atinou para o fator tempo, mola propulsora do Direito, razão de sua retroalimentação. Mérito da vida que se renova sempre.

Mas o nosso Rio Parnaíba também nos remete à outra comparação com o Direito: a solidão de nossos deságües.

Para chegar à plenitude do mar do conhecimento, somos obrigados a suportar as pressões das margens, das limitações quer econômicas, quer sociais, quer pessoais. Só nós sabemos o quanto foi difícil chegar até aqui.

Até mesmo para os que contaram com ajuda.

Foi, inteiramente, uma experiência no deserto.

- Honestamente, será sempre.

Por fim, manifestamos nossa gratidão aos que conviveram conosco durante esse tempo e renovamos o convite para que permaneçam ao nosso lado porque nossa verdadeira batalha está apenas começando, afinal... o Direito, assim, como o tempo, não pára!

OBRIGADO !!!

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 24/10/2008
Reeditado em 24/10/2008
Código do texto: T1245401
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