Minha Gata Borralheira

Isso já faz uns dez anos. Meu filho me chamou na fábrica pra mostrar um novo método de armazenar chapas de aço pelo qual ficamos com mais tempo de sobra para a data de entregas. Vi o desenho e lhe disse: - Por que não pensaste nisso antes?

Rindo, ele me respondeu: - Não fui eu! Foi uma mocinha operadora de empilhadeira!

Recebíamos chapas de aço de tamanho padronizado que os operadores de empilhadeira retiravam dos caminhões e empilhávamos num balcão coberto. Esse empilhamento causava empenamento, micro aderência e oxidação das chapas que ficavam por baixo. Geralmente tínhamos que descarta-las, vendendo de volta a siderúrgica como sucata. Dinheiro perdido.

A ideia da menina foi preparar um engradado com rolamento e barras de contenção onde as chapas era colocada em pé lado a lado. Assim mantivemos a máxima da administração de material que é " o primeiro que entra é o último que sai". Meu filho orientou o soldador de acordo com o desenho dela.

- Você patenteou essa gerigonça?

- Não! A invenção é dela. O problema é que ela não tem nenhum certificado técnico. Não me sinto bem em patentear.

- Onde está ela agora?

- Trabalhando, ué!

- Ela "bola" uma coisa dessas e voce ainda a mantém trabalhando aqui? Amanhã de manhã quero vê-la no escritório.

Eu e a sra. Rafferty olhávamos para a criatura acanhada sentada a nossa frente. Pessoa comum.

- Estou aqui pra te oferecer um bolsa de estudo. voce aceita?

Ela elevou os olhos e me encarou não entendendo o que tinha escutado. Possivelmente aquele olhar me dizia que ela me fuzilaria se eu estivesse de troça com ela. Cabisbaixa, balançou a cabeça afirmativamente.

- Voce tentou entrar em qual delas? As federais e em que disciplina?

- Sim... as federais. Engenharia. Mas não tinha como. Nunca tinha ouvido falar de certos cálculos...

- Claro! voce não tem conhecimento!

Nesse momento, a senhora Rafferty me lançou um olhar de desaprovação e notei que a mocinha tremia levemente.

- Nosso fundo aqui das industrias vai bancar voce com as despesas da faculdade e com mais meio salário do que voce recebe aqui...

Não tinha acabado de falar quando a mocinha começou a soluçar e a chorar baixinho. A sra. Rafferty não a abraçou, apenas segurou a mão dela. Entre soluços, ela nos agradeceu. Levantou-se e foi caminhando pra porta.

- Hei! Aonde voce vai? - meu filho exclamou

- Vou trocar de roupa e trabalhar...

- Nada disso! Voce está despedida!

- Voces dois bem que poderiam se candidatarem como atletas do hipódromo!

Se formou em Engenharia de Produção. A sra. Rafferty foi a madrinha. A mocinha perguntou porque eu não estava lá. Minha mulher adora me colocar em bico de sinuca. Quando atendi o telefone ela passou pra mocinha.

- Pensei que estivesse orgulhoso por...

- Estou. E muito! Mas não ia largar meu happy-hour com os amigos por essa chatice de colação de grau! Meus parabéns!

- Espero algum dia ser convidada a um desses happy!

- Nem pensar!

Trabalha numa multinacional e os números que ela apresenta são coerentes com a programação da área comercial. Durante três anos foi assistente do diretor de gerenciamento de risco e o substituía eventualmente quando ele tinha que viajar.

Meu filho aprimorou a "geringonça" com captores eletromagnético. Patenteou em nome dele e dela. Nosso fundo filantrópico passou a receber parte dos dividendos doados por eles.

O cabelo do meu filho parou de cair e está saudavelmente mais magro.

As empilhadeira se tornaram obsoletas e compramos outras mais modernas. Mas, a dela está no hall de entrada da fábrica, suja como da última vez que operou e com seu nome estampado na carroceria. Uma vez por semana se passa o aspirador de pó nela.

Se a Renata voltar a trabalhar conosco, pode escolher qualquer dessas mais modernas.

Eu não tenho um décimo da capacidade do meu filho ou dela. Dei sorte por eles cruzarem meu caminho.

Quando fizer cem anos talvez eu a convide pro nosso happy-hour e somente pra tomar um único drinque. Mas já antevejo o que ela vai me responder.

- Uma garrafa inteira é um drinque só, não é?

Foi por isso que me tornei escritor