Putrescina (Cap. XIII – Conclusão)
Numa opulenta casa na rua …, despertando de ressaca após mais um acesso de embriaguez infrutífero em tentar fazer com que se esquecesse da infidelidade do homem com quem fora outrora casada, uma bela, porém enxovalhada, mulher tentava subir as escadas com passos lentos e incertos, sua consciência ainda obnubilada pelo álcool. Ela chamava pelo filho, com uma voz pastosa, engrolada, mas sem obter resposta. Com muito esforço chegando ao último degrau, tropeçou nos próprios pés, perdendo o equilíbrio e vindo a rolar lance de escadas abaixo, batendo a cabeça no chão do piso inferior e quebrando o pescoço com o impacto. Por compaixão divina talvez, a morte da pobre alcoólatra fora instantânea, e ela nada sofreu ao expirar.
Não muito distante dali, ergue-se uma grande mansão antiga, cujo deprimente estado de dilapidação fazia com que muitos lhe torcessem o nariz – além do mais, em tempos recentes muitos transeuntes começaram a reclamar consigo mesmos que sentiam um tênue cheiro desagradável vindo de lá de dentro. Sem se importar com o burburinho alheio, seu morador, um viúvo solitário, lá passava sua triste vida numa monotonia desoladora.
Toda manhã, assim que acordava (isso quando não passava as noites em claro, sem conseguir dormir), a primeira coisa que fazia era seguir a um pequeno cômodo de sua casa, onde guardava as únicas preciosidades que atenuavam as misérias de sua existência: um singelo retrato que desenhara de sua falecida esposa, velhas cartas de amor do início de seu relacionamento e, sentado numa poltrona qual um ídolo, o cadáver de um garoto adolescente que não aparentava passar dos 15 anos e que, apesar do estado de putrefação deveras avançado, ainda mantinha um pouco de seu frescor juvenil preservado.
O homem circundara o cadáver com lindas flores lilases, de modo que combinassem com a cor de sua pele podre. Então, em meio às flores e envolto por uma nuvem de afrodisíaca putrescina, ele se entregava ao mais sôfrego amor com o corpo morto, beijando ávido seus lábios arroxeados como se o mero ato de amá-lo pudesse trazê-lo de volta à vida, ou lhe ensinar os segredos da Morte que não era corajoso o bastante para investigar por conta própria, incapaz de antecipar sua partida às regiões onde jaziam os objetos de sua afeição, chamando por ele, tentadores, com suas promessas de apodrecerem juntos num derradeiro ménage à trois, fundindo-se ao pó – origem e fim mútuos de tudo aquilo que vive.
(São Carlos, janeiro–fevereiro de 2025)