Putrescina (Cap. XII)

Eventualmente, o homem acabou sucumbindo mais uma vez a uma agonia infinda; ele não podia suportar a realidade de dividir Theo – que, de fato, passara a frequentar sua residência de forma menos assídua, e quando vinha já não trajava mais as roupas imundas nem ostentava seu cheiro de coisas mortas – com outra pessoa, que retirara dele a atração pela Morte que fora o que alimentara sua paixão, afinal de contas. Era essa fascinação pela Morte, somada às reminiscências físicas que dividia com a esposa, que fazia com que Ernest ansiasse por seu amor; a ausência de um anulava o outro.

Seu último ligamento para com a Realidade fora rompido: o viúvo agora passava seus dias obcecado com a ideia de seu próprio óbito, pois agora a Vida lhe parecia ainda mais repugnante. Como agora nada mais o apetecia, sentia que poderia muito bem deixar este plano, e chegou à conclusão de que deveria se suicidar.

Preparou uma taça de vinho, à qual misturou veneno, e contemplou-a com solenidade por alguns instantes – tão logo sorvesse daquela taça, suas privações terrenais acabariam! Finalmente se reencontraria com a mulher, doçura e consolo de sua juventude, que tão tolamente ousara projetar num simulacro… Criou coragem para levar a taça aos lábios, mas antes que pudesse libar qualquer gota do líquido foi interrompido por batidas na porta. Em irritação extrema, pulou para atendê-la e teve uma agridoce sensação em seu peito ao ver que era Theo, bem-vestido e cheirando maravilhosamente, como vinha sendo seu normal.

“Olá, caro amigo!”, disse o garoto. “Há quanto tempo não nos vemos!”

“Que boa surpresa…!”, replicou Ernest, tentando fingir contentamento. “Gostaria de entrar?”

“Pois claro!”, exclamou Theo. O homem mal o reconhecia; aparentava estar no ápice de uma alegria juvenil que até então lhe fora negada. Por não viver mais sujo, como outrora, Ernest já não o achava tão atraente, no entanto. “Ter uma namorada não é nada fácil… Por isso já não dou tanto as caras. Mas vale a pena – adoro minha Elisa…! Andamos ocupados com atividades da escola também, mas creio que dentro em breve posso trazê-la aqui para que se conheçam…”

“Certo, certo, certo”, redarguiu o irritável viúvo. “Como não adivinhava que viria não tive tempo de preparar nada…”

“Não faz mal”, atalhou o garoto. “Só quis visitá-lo para demonstrar que não me esqueci de você – e nem teria como! Talvez um dia você também vai encontrar alguém que o motive a encarar além das paredes de sua casa… Pode até ser que seja eu esse alguém!”

“Sim… Pode ser”, repetiu Ernest, desanimado. Os dois então foram se sentar em seu lugar de costume, e Theo pôs-se a conversar como sempre o fazia, mas o homem já não lhe prestava atenção – sua mente, em frangalhos, devaneava difusa com saudades de seu garotinho tristonho e imundo pelo qual se apaixonara. O tempo pareceu congelar enquanto ele sonhava ali acordado, tanto é que mal percebeu que Theo chamara sua atenção mais de três vezes.

“Ernest!?”, gritou, preocupado, o menino. “Está tudo bem com você? Não me ouviu?”

“Hã…!?”, respondeu ele, acordando abruptamente de seu transe. “Sinto muito… Apenas me vi entretendo algum pensamento.”

“Dizia eu que sinto sede. Seria incomodá-lo pedir que preparasse algum daqueles refrescos que só você sabe fazer, se possível?”

“Ah… Que nada”, anuiu ele, de forma absorta. “Já retorno.” E saiu.

No meio do caminho, porém, teve uma macabra ideia – sua derradeira ideia para manter Theo a si, lembrando-o daquilo que quisera… Voltou aonde deixara a taça envenenada, e com o mesmo suor frio e ansiedade do primeiro dia em que começara a entregar bebidas adulteradas ao coleguinha, tornou à sala, passando-a ao menino.

“Obrigado!”, agradeceu ele, bebendo tudo de uma só vez e fazendo uma careta ao terminar. “Que gosto ruim!”

“É de uva”, mentiu ele.

“Que horror! Lembra-me de vinho.”

“Já experimentou vinho?”

“Sim. Quis entender por que minha mãe bebe tanto certa vez, e experimentei um trago. Detestei – quem dera nunca mais bebesse uma gota de álcool sequer…”

“Eu o amo”, interrompeu-o o homem, louco.

“Ora, eu também o amo”, disse Theo com alegria. “Gosto de ser seu amigo…”

“Não assim. Eu o amo.”

“Mas como…?”, questionou o garoto, confuso, e já sentindo seu estômago arder devido ao veneno. “Não estou… o entendendo…”

“Logo entenderá”, continuou o alucinado Ernest enquanto Theo sentia a cabeça leve e, ao tentar levantar-se, suas pernas travaram e ele tombou ao chão com estrépito. Levado aos mais abjetos extremos por sua loucura, Ernest pulou sobre Theo, que estrebuchava indefeso, beijando e mordiscando-lhe os lábios enquanto o pobre garoto lutava em vão para desvencilhar-se. Dentro em breve, o efeito do veneno fez com que o adolescente expelisse torrentes de um vômito avermelhado, sujando a si e a um Ernest triunfante; por fim, após se debater com intensidade cada vez mais decrescente, a vida deixou o corpo de Theo.

Mudo e estático, passado seu frenesi animalesco, Ernest contemplava o cadáver de Theo como outrora contemplou o da esposa, seu coração ardendo em culpa e em voluptuosidade por satisfazer sua sede de morte e de luxúria após ter extinguido, pelas próprias mãos, a centelha de vida de um ser humano, e só pôde chorar, como outrora chorara pela esposa, ao ver que, definitivamente, não tinha coragem para dar cabo da própria existência – este era o castigo que recebera de Deus, e sem qualquer atenuante haveria de sujeitar-se à sua punição até o dia em que Ele determinasse.

[Continua no Cap. XIII]

Eutychus Euphorion
Enviado por Eutychus Euphorion em 07/04/2025
Reeditado em 13/04/2025
Código do texto: T8303933
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.