Putrescina (Cap. XI)
Após tal episódio, a amizade de Ernest e Theo permaneceu inalterada, não obstante o viúvo ter rompido sua promessa de relegar seus beijos roubados a uma única tentativa; em intervalos bastante espaçados de tempo, conseguia sedar o menino com suas pílulas de modo que ele jamais percebesse, e se deliciava beijando-o e acariciando-o. Ironicamente, Ernest sentia que vivia o auge de sua felicidade – nem com a esposa se sentira tão contente. A cor voltara a seu rosto, suas noites já não lhe eram ocasiões de martírio e o próprio Theo, ignorante, comentava que o amigo lhe parecia muito bem; o viúvo sempre queria lhe responder que era graças ao amor que lhe tinha, mas sabia que era melhor permanecer calado, pelo menos por ora.
Contrapondo-se à sua alegria, no entanto, sua obsessão alcançava níveis alarmantes – não era capaz de imaginar um futuro sem Theo a seu lado. Como sabia que o menino não tinha nenhum outro amigo fora ele, não tinha necessariamente ciúmes, mas, ainda assim, queria passar o resto de seus dias com ele, sem compartilhá-lo com ninguém – seu lindo namoradinho (como a boca lhe ardia num calor vertiginoso ao proferir esta palavra proibida, e tão ainda mais doce por sê-lo!) morto na Vida tal qual ele, um elo entre Cá e Lá…! Talvez Theo seria capaz de retribuir a seu amor à medida que ficasse mais velho e a coisa se tornasse um tanto mais aceitável aos olhos da Multidão, pensava ele; talvez, quando esse dia chegasse, muitos anos depois, lhe contaria a respeito do subterfúgio que empregara para lhe roubar beijos, e seu amado sorriria com a burla… “Por que chegar a tanto?”, responderia o futuro Theo, com extremo carinho. “Era só tê-los pedido…” Ou talvez não – talvez a confissão poria tudo a perder… E assim seguia pensando, cada uma de suas reflexões sempre precedida por um “talvez”, sem que nenhum deles o guiasse a uma conclusão definitiva.
Seja como fosse, tudo ia correndo às mil maravilhas até que, numa tépida tarde de outono, Ernest constatara que Theo não chegara no costumeiro horário marcado; o garoto nunca antes se atrasara. Cinco minutos, depois dez, depois quinze – o homem já começava a entrar em desespero. E se algo de muito ruim houvesse acontecido a ele? Pior ainda – e se ele houvesse descoberto sobre os beijos que lhe roubara, e não mais o amasse? Já se tendo passado mais de meia hora, Ernest estava prestes a sair da mansão, desembestado, à sua procura, quando ouviu as batidas de Theo à porta, indo abri-la às pressas.
Como se caçoasse de sua preocupação, o adolescente aparentava estar radiante: duas rosas lhe davam cor às faces pálidas, e ele sorria um sorriso bobo, encabulado. Ele não se lembrava de tê-lo visto assim tão feliz desde que se conheceram, e isto o deixava ainda mais bonito, em perpétuo contraste com a sujeira das roupas; após admirar sua beleza por alguns instantes, o homem se recordou de sua preocupação anterior e disse-lhe, aborrecido:
“Está atrasado! Espero que tenha uma boa explicação. Fiquei preocupado que pudessem tê-lo ferido de novo!”
“Ninguém mais me bate desde que você me ajudou”, respondeu Theo. “Mas posso explicar por que cheguei atrasado hoje. Vamos entrando?”
“Oh… Sim”, autorizou Ernest um tanto quanto distraidamente, e os dois seguiram à mesa onde tomavam o lanche. O homem desta vez se forçara a não adulterar a bebida do convidado, tendo-o feito pela última vez há pouquíssimos dias. Ambos sentados, disse ele ao garoto num tom de voz um tanto azedo:
“Explique-se.”
Theo, cuja devoção que nutria pelo amigo e cujo entusiasmo não o deixavam entrever as patologias mentais de Ernest, exclamou:
“Estou amando!”
O homem quase veio a e engasgar com um biscoito. Ele jamais esperava que o menino proferisse tais palavras – a menos que fossem dirigidas a ele… “Amando… a quem?”, perguntou-lhe ele, com medo da resposta.
Theo olhou para os próprios pés com um doce rubor de adolescente. “Já faz algum tempo, em verdade…”
“E por que me conta só agora?”, interrogou Ernest, amargo. “Pensei que, como amigos, não esconderíamos nada um do outro!”
“É que tudo aconteceu tão repentinamente que nem mesmo eu ainda pude processá-lo… Não faz nem duas semanas, recebemos uma aluna nova em minha classe…”
Ernest se sentiu como se um raio o fulminasse. Como Theo não conseguia amá-lo – a ele, que o salvara e que o entendia? A quem abrira as portas de seu sepulcro e dava-lhe o privilégio de compartilhar de sua morte-em-vida? Como, depois de tanto tempo, o garoto não podia enxergar a faúlha de sua esposa nele adormecida? Para o homem, era como se ouvisse da boca da própria defunta que esta lhe fora infiel! Theo continuou, mas Ernest prestava muito pouca atenção às suas palavras, tamanho era seu choque:
“Ela é uma garota tão bonita! Tem cabelos pretos, pretos, e olhos tão escuros quanto – parece uma criança da Noite. Se chama Elisa. Tão logo ela nos foi apresentada por nosso professor, senti que ela me observou com muita curiosidade, afinal sempre sento afastado dos outros – nossos olhares se cruzaram, e foi uma sensação tão gostosa…! Elisa então sentou-se perto de mim, e me devorou com os olhos por toda a aula…
“Ao intervalo, ela foi à minha procura e sentou-se ao meu lado novamente, me encarando com aqueles olhos enormes… Depois de algum tempo ela simplesmente me disse: ‘Acho-o interessante, até mesmo bonito. Por que anda assim tão sujo?’ Senti-me seguro da mesma forma que com você e falei a ela da Morte; ela, em resposta, falou-me da Vida! Tantas coisas bonitas, ainda mais por terem saído de sua boca, e pela primeira vez desde a infância senti vontade de viver – viver com ela… É a única amiga que tenho no colégio todo; ela me segura as mãos e sempre me diz coisas maravilhosas! Diz que não se importa com meu cheiro, mas acho que já não tenho mais vontade de ser um morto na vida…”
Cada palavra dita pelo garoto era uma facada no coração de Ernest; era como se visse a esposa adoecer lentamente, dia após dia, mais uma vez. Por mais que houvesse se esforçado… ele não poderia pertencê-lo, e, por consequência, jamais reaveria sua amada esposa. Tentando se controlar o máximo possível para não deixar transparecer sua ira, o viúvo questionou, com todo o sang-froid que conseguia reunir dentro de si:
“Seu atraso de hoje teve algo a ver com esta Elisa?”
“Sim…”, confirmou Theo. “Hoje ela e eu quisemos dar um breve passeio juntos, e acabamos perdendo a noção do tempo… Espero que não tenha sido nada de muito grave…”
“Ora… Que nada”, dissimulou o homem. “Fico feliz que… esteja expandindo seu círculo de relações.”
“Pode ser que eu já não possa visitá-lo todo dia… Pretendo continuar passeando com Elisa. Mas seguirei vindo assim que possível; o que acha de conhecê-la?”
Ernest já não ouvia mais nada. Sua mente girava e girava num maelström que engolia tudo aquilo que lhe restava de sanidade – tanto é que, em retrospecto, não conseguia se lembrar de nenhum dos eventos que levaram ao fim daquele dia; até que Theo se despedisse, o homem passou o resto do encontro como um autômato, sem que mais nada lhe importasse além do fato de que lhe estavam roubando aquilo a que amava mais uma vez – primeiro a Morte lhe roubara a esposa, e agora a Vida lhe roubava Theo.
[Continua no Cap. XII]