CAPÍTULO 2
MUDANÇA DE PLANOS
(Nesse mundo alternativo, com pouca tecnologia ainda no século 21, três garotas, Andréia, Carol e Fátima, são envolvidas numa trama que envolve organizações mundiais secretas que disputam o poder. Acompanhando a Detetive Irina, seguem numa viagem por um Brasil retrô seguindo a pista do seu inimigo mortal, o Conde Bruxelas - a origem do drama está na novela "O fantasma do apito". Agora veremos como o quarteto, após recolher um cachorro dálmata abandonado, é pego numa furiosa tempestade que obriga a parada numa velha estalagem.)
CAPÍTULO 2
MUDANÇA DE PLANOS
O Labrego tocou seus reumáticos corcéis e a carruagem seguiu caminho. Dentro, Andréia tirou as sandálias e estendeu-se na colcha, divertindo-se com o Malhado.
Ele é muito legal... muito mesmo... adorei esse cachorro.
— Gostei dele também — concordou Carol, esparramando-se também pela roupa de cama.
— Gente, eu acho que vocês estão precisando arranjar namorados — ironizou Irina.
— Não seja obscena — respondeu Carol na bucha. –- Mutatis mutantis, o amor pelos animais é diferente.
Irina não respondeu e nesse momento o vento começou a uivar. Ao longe as nuvens enegreciam, anunciando uma próxima mudança de tempo. Irina calculou que logo a chuva cairia em grossas bátegas, e não se equivocou. Vinte minutos depois já se achavam na área da tempestade, e os coriscos ziguezagueavam ao som das trovoadas, impando o ar de eletricidade e provando os nervos das passageiras.
No restaurante de beira de estrada, fizeram hora esperando a chuva amainar. Andréia conseguiu comprar uma coleira e tomaram coragem para seguir viagem. Infelizmente para o grupo, o tempo não amainou e foi ficando cada vez mais feio.
Logo as torrentes começaram a correr pela estrada de montanha e o tráfego tornou-se mais escasso. Na torre da carruagem, o condutor gritou:
— Está ficando muito feio! Nós vamos ter que procurar abrigo!
— O que? — Irina gritou para se fazer ouvir em meio à ventania uivante que levava de roldão galhadas, terra e objetos, enquanto os bichos procuravam se esconder.
— Não podemos continuar! É demais para os meus cavalos!
— Que estranho... — disse Fátima. — Isso me parece sobrenatural, alguém não quer que cheguemos ao nosso destino!
— Fátima, não diz asneira! Você andou lendo muita história de Edgar Allan Poe! Nosso inimigo não é um fantasma do além! — protestou Carol.
— Além disso — acrescentou Andréia — você nem consultou o caleidoscópio!
— Não importa! Esse caso tem implicações que a Irina evita falar, eu nem faço idéia de quantos são os desdobramentos ou o que é tudo que a Rede mexe. Não sei com o que é que estamos brincando. Não usei o caleidoscópio, mas posso ter pressentimentos.
Bem entendido, este diálogo não podia ser ouvido pelo carruageiro.
Irina comentou cuidadosamente:
— Existem teorias... como a de Thornberry... sobre universos paralelos e sobre o inconsciente coletivo da humanidade. Pode existir, de fato, um imenso poço místico no qual todos os conhecimentos da espécie estejam imersos e misturados, e que as nossas mentes podem eventualmente acessar... no momento, se forças poderosas se opõem às nossas intenções, poderiam talvez dar movimento, inconscientemente, a fenômenos da natureza que nos desviassem... pois eu tenho a certeza de que o Conde Bruxelas, esteja onde estiver, não tem poder para fazer conscientemente uma coisa dessas.
Fátima fitou-a, mortalmente séria:
— Por que está nos dizendo essa coisa tão vaga, Irina? Ou você crê ou não crê, que pode haver algo paranormal em movimento nesse caso. Eu sinto isso nos meus ossos. Você, que é uma vidente tão extraordinária, como Edgar Cayce, deve estar sentindo alguma coisa também.
— Nada que eu possa identificar — Irina foi lacônica.
— Ou nada que você queira nos contar — opinou Carol. — É como eu sempre disse: não gosto de tiras. Como confiar nelas se elas não confiam na gente?
Andréia interveio:
— Carol! Não seja injusta com a Irina! Sei que você está só brincando, mas... ela é nossa amiga! Eu acho...
Aquele “eu acho” provocou um franzir na testa de Irina, mas ela preferiu não replicar, encerrando o assunto.
— Sei que por aqui tem uma hospedaria — gritou o Labrego, bem alto. — Nessa estrada secundária que parte desse ponto... nós vamos até lá! O perigo é muito!
— Raios... vamos parar num lugar mal-assombrado, com gremlins à solta... — brincou Carol, estirando as pernas.
Andréia reclamou: — Carol, pára com isso! Que mania que você tem de ficar aterrorizando a gente!
Carolina riu. Divertia-se com essas suas tiradas, como se fosse dada a um certo sadismo. Fátima, porém, tinha preocupações mais sérias, e pôs-se a examinar o caleidoscópio. Após algumas tentativas, algo muito estranho apareceu: a jovem teve a impressão de uma paisagem tétrica, coberta por nuvens escuras e amedrontadoras... nuvens de tempestade. Mas tempestade já estava havendo. Existia mais alguma coisa, parecia uma ampulheta, a derramar a areia do tempo, incessante e invariavelmente... o tempo, que vinha do passado longínquo e se dirigia ao longínquo futuro...
As outras olharam e não entenderam nada. Irina mostrou-se circunspecta:
- É uma visão muito vaga. Pode significar que existe alguma coisa muito antiga no caminho.
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Labrego saltou da boleia todo coberto por uma capa de chuva, e enquanto os relâmpagos ao longe pareciam tirar a sua radiografia, desenhando sua silhueta na paisagem escura, as mulheres acompanharam o seu esforço de abrir a porteira para a passagem do veículo em direção ao alpendre da hospedaria.
Fátima se levantou para ajudá-lo, mas Irina a deteve.
— Deixe. Ele não precisa de ajuda. Se você sair vai se encharcar toda e ainda por cima está descalça.
— Ele tem uma capa muito boa — lembrou Andréia.
De fato, o condutor voltou num instante e Fátima, que sempre gostava de ajudar, tranqüilizou-se. Logo a carruagem adentrou no caminho particular e se aproximou da estalagem. Carol, impressionada, tinha a impressão que aquele lugar estragado pelo tempo e pelas intempéries poderia a qualquer momento ruir e ser completamente tragado pelas águas como a Casa de Usher no conto fantasmagórico de Edgar Allan Poe.
— Espero que possamos ir a Aparecida — comentou. Precisamos dar uma de peregrinas, precisamos que o Céu nos ajude.
Elas começaram a se trocar para enfrentar o tempo, e a fechar suas malas.
— Eu temo é que nós venhamos a esquecer a nossa missão... — comentou Fátima.
Andréia perguntou: — Por que diz isso, minha amiga?
— Sei lá. Está me parecendo muito remota a possibilidade de encontrar o Conde Bruxelas. E de certa forma isso é um alívio, pois eu não sei se escaparemos com vida ou o que poderá ocorrer quando o encontrarmos.
— OA!!! — gritou o condutor, e os tordilhos brecaram.
Irina afastou o cortinado da janela e avistou um sujeito macilento, sacudido pelo vento, vestido à moda medieval, que se aproximou de Labrego:
— Sinto muito, senhor, mas não estamos podendo receber hóspedes.
— Está brincando! Não pode nos recusar em meio a uma borrasca dessas!
— Infelizmente...
— Não senhor! Leve-nos ao gerente!
Irina saltou e mostrou o seu distintivo.
— O senhor não pode nos impedir de ir até o saguão do estabelecimento.
— Está bem, venham, mas o Sr. Aristarco lhes explicará a situação.
Seguindo o empregado e o carruageiro, as quatro mulheres apressaram o passo naquela chuvarada de vento. Irina estava meio irritada:
— Não gosto de sacripantas — comentou reservadamente. — E não gostei desse lugar.
Ao se aproximarem da entrada após um alpendre, Irina teve de repente um dos seus rasgos de visão: uma mão em garra, e dois olhos arregalados, esbugalhados, olhando cheios de ódio...
Deteve um instante o grupo e sussurrou a Fátima:
— Você trouxe o caleidoscópio?
— Mas evidente que sim.
— Então logo que puder faça uma varredura, tem qualquer coisa que eu não estou gostando.
— OK.
Ao entrarem no saguão viram uma mulher velha e macilenta, com nariz de abutre e sem um olho, sentada atrás da escrivaninha da recepção. Andréia, sentindo o chão de tacos furados ranger sob suas botas, não acreditou no que o sentido da visão lhe dizia: a mulher escrevia com uma pena de ganso que molhava num anacrônico tinteiro.
“Estamos no século XXI, onde já se pensa até em conquistar os ares. Mas de que século é essa espelunca aqui? É um pardieiro.”
— Vocês vão querer se hospedar? Não gostamos de polícia nesse estabelecimento. Polícia é sinônimo de encrenca.
Irina encostou no balcão quase com violência, agastada com aquele comentário.
— Quem nos atendeu falou que o Sr. Aristarco nos atenderia. VOCÊ é o senhor Aristarco?
— A senhora está querendo me insultar?
— Oh, não. Não creio que seja possível. Quero só saber por que vocês não estão em condições de receber ninguém. A casa está tão lotada de hóspedes?
— É por causa do adiantado da hora... — respondeu a mulher, buscando um horroroso e encardido cachimbo e riscando um fósforo sem segurança no tinteiro.
— Boa noite — disse uma voz cavernosa.
As quatro se voltaram e viram chegar um homem vestido aparentemente como um Napoleão empobrecido, e cuja perna direita era de pau. Ele portava um chapelão de bandeirante ou mosqueteiro, era gordo e de barba por fazer, com um nariz imenso e rubicundo e um rosto vermelhão e rechonchudo, cheio de verrugas e papadas. Falou e veio se aproximando das recém-chegadas.
TOC! TOC! TOC! TOC! TOC!
— Senhor Aristarco? — quis saber Irina.
— Sou eu mesmo. Temos um quarto que pode ser usado apesar de não estar muito bem preparado, cabem quatro e um cachorro, mas terão de pagar dobrado...
— E meus cavalos? — indagou Labrego, parecendo meio espantado com o ambiente.
— Temos um abrigo, agora o senhor... acho que tenho um quartinho que posso lhe ceder.
— A Detetive Irina pagará — explicou ele, atrevidamente.
— Como queira. Gervásio, leve as senhoras para o quarto 13.
— Espero que vocês não sejam supersticiosas — murmurou Carol para Andréia e Fátima.
— O que eu queria saber — respondeu Andréia — é por que em toda parte onde nós nos metemos, só deparamos com esses pascácios, figurinhas difíceis, malucos e pernósticos...
— Eu também já notei isso... — observou Fátima — e esse mocorongo aí da perna de pau não é lá muito animador.
Como a corroborar a assertiva, o Malhado latiu... duas vezes só, mas muito expressivamente.
(As três garotas e a quarta mosqueteira foram parar num local muito estranho. Pelo caleidoscópio Fátima sabe aproximadamente onde está Bruxelas, mas agora elas se atrasarão. Entretanto, haverá problemas sérios na estalagem, com risco de vida inclusive.
Em breve nesta escrivaninha:
CAPÍTULO 3
A LONGA NOITE)
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