Notas de um homem supérfluo - Parte V

Após um breve tempo sem registrar minhas memórias e sensações neste caderno velho, resolvi voltar a minha rotina de copista do meu próprio submundo.

É difícil de confessar que todo o esforço que estou tentando fazer para sair desta minha enfadonha situação tem sido em vão. A cada esperança que me surge na alma ao amanhecer, se esvai como fumaça ao vento ao entardecer. Parece-me que vivo eternamente buscando uma culpa que é só minha, porém de um crime que eu não cometi. Sou alguém que procura a esmo não o fim, mas o início do caminho do qual já me desviei e me perdi por andar em passos falsos e débeis. Contudo, encaro serenamente a missão a mim imposta pelo meu inato e alado demiurgo, que pode ser eu mesmo, ou um eu-do-avesso. Quem sabe seja um anti-eu quem me aflige, martirizando-me como a um escravo acorrentado em uma masmorra nunca banhado pela luz do dia, um reflexo distorcido em um espelho de água calma, como a que se afogou Narciso.

Sim! Este anti-eu é a parte que me reprime, que me nega e me cega, é a parte que me sussurra dúvidas quando minha fé vacila. Ele conhece meus sonhos mais secretos e meus medos mais profundos. Ele sabe minhas fraquezas e as explora com crueldade. É o crítico implacável que me julga a cada passo, que me impede de ser quem realmente sou. O anti-eu é o ego inflado que busca a aprovação alheia, a necessidade de ser amado e admirado. É a inveja que corrói a alma, a competição que me impede de celebrar as vitórias dos outros. É a máscara que uso para me esconder do mundo, a persona que crio para me proteger da rejeição. Sou a sombra escura de um homem que nunca existiu, o eco de um grito perdido no tempo. Sou, enfim, um palco vazio onde ecoam vozes de personagens feitos por um poeta que finge conhecer a verdade mas que não passam de pensamentos desarticulados e fúteis.

Penso, às vezes, quão belo seria gozar a vida da forma mais simples possível, entretanto, para mim, isto não passa de um sonho louco que me promete alívio e que sempre me dilacera o espírito ao final das fracassadas tentativas de acordar.

Não posso negar, sou um campo de batalha no qual o eu e o anti-eu degladiam-se em uma guerra sem mortos ou feridos, uma guerra que este ser em que habito é o único espectador, um espectador que desconheço totalmente.

Não sei, e talvez nunca saberei, mas escrevo. Escrevo porque é o único ato que parece fazer sentido no meio do absurdo que sou. Escrevo como quem tenta dar forma ao informe, nome ao inominável. Escrevo porque, se não posso ser um, ao menos posso ser palavras – palavras que talvez, um dia, expliquem e ilustrem a vida do homem que escreveu para não existir e existiu apenas no que não escreveu.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 24/12/2024
Reeditado em 24/12/2024
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