Notas de um homem supérfluo - Parte IV
Passei o dia todo de hoje me sentindo meio diferente, estranho, esquisito, embora esses adjetivos possam muito bem se encaixar a minha pessoa segundo a opinião de algum vizinho mexeriqueiro que me vê saindo de casa apenas uma ou duas vezes por semana para fazer algo que, de jeito nenhum, consigo fazer da minha residência, se é que posso chamar assim o lugar em que vivo.
Desde quando acordei, próximo ao meio-dia, estou com a impressão de que minha alma está deslocada para fora do meu corpo. Tenho a sensação de me ver em terceira pessoa, como se eu fosse uma espécie de marionete de mim mesmo. Meus movimentos físicos, vistos deste ponto de vista extracorpóreo, pareciam uma dança macabra e bizarra, feita de gestos lentos e quase imperceptíveis, de modo que meu corpo parecesse estar repelindo o contato de algo que estivesse tentando se aproximar pelo ar rarefeito e sufocante de dentro do meu quarto empoeirado. Minha alma, por sua vez, parecia alheia a tudo aquilo, como se estivesse assistindo a um filme mudo e antigo, sem conseguir compreender a trama e o drama do personagem principal, que éramos nós.
A aura que envolvia o presente momento me fez estar em um universo totalmente ambíguo. Sentia-me jovem e velho, homem e mulher, vivo e morto ao mesmo tempo. Essa atmosfera confusa e enigmática não me parecia um mero estado de espírito, mas a própria tessitura da realidade. Vivenciava, espantado mas calmo, esse instante em que eu parecia estar em um simulacro feito pelo próprio diabo, no qual eu era a cobaia de algum experimento seu, onde toda a sanidade transformara-se em loucura e tudo que me era conhecido tornara-se incognoscível.
Essa coexistência de contrários não se limitava à percepção individual. Estendia-se ao próprio tecido do tempo, que se dobrava e se retorcia em espirais incompreensíveis. O passado e o futuro se fundiam no presente, criando uma confusão labiríntica onde a causalidade perdia o sentido. Lembranças de infância se misturavam a vislumbres de um futuro incerto, como se a própria linha do tempo estivesse em colapso.
Por incrível que pareça, toda essa gama de sensações me deu uma liberdade extraordinária. Contudo, não era a liberdade convencional, a liberdade de ir e vir, de escolher entre caminhos preestabelecidos. Era uma liberdade mais profunda, uma libertação das próprias amarras da identidade e do tempo. Era a liberdade de ser tudo e nada ao mesmo tempo, de habitar todos os espaços e nenhum, de transcender as fronteiras do conhecido e mergulhar no oceano ilimitado do desconhecido.
Essa expansão, essa dissolução dos limites do ser, trazia consigo uma vertigem existencial profunda. Se tudo era possível, então nada importava. Se todas as identidades eram válidas, então nenhuma tinha significado. A liberdade, em sua forma mais radical, se aproximava perigosamente do niilismo, um abismo onde o sentido se esvaía e restava apenas o vazio.
Seria a vida, afinal, um eterno paradoxo, uma dança constante entre opostos inconciliáveis? Esta foi a principal indagação que me surgiu e que me fez transcrever esta minha experiência vespertina nestas linhas que agora escrevo.