Notas de um homem supérfluo - Parte III
Esta última noite foi a primeira, em quase duas semanas, na qual tive um tempo suficiente de sono pelo qual creio que me ajudará a pensar minha vida com a mente mais lúcida e não com a sensação inebriante que já me estava saturando e me impedindo de dar mais que três passos para fora da cama. Senti-me um tanto revigorado que me deu vontade de ler umas páginas de alguns poucos livros que me restaram, já que vendi uma boa parte deles, há uns meses, quando precisei de dinheiro para pagar as contas de água e luz, sendo a primeira vez que os livros me serviram para alguma coisa.
Afora o motivo de escrever para não morrer de tédio, nunca entendi a causa que leva as pessoas a escreverem qualquer coisa. Qual a necessidade de serem lidas, de outras pessoas, contemporâneas ou futuras, quererem ler o que foi escrito por tal sofista demagogo? Sim, porque é isso que todo escritor é, um impostor de si mesmo e dos outros. Desejar viver eternamente pela criação de uma obra de arte literária é o cúmulo do egocentrismo humano. “Meu estilo é assim e assado”, “meus personagens agem dessa forma e de outra” – quanta necessidade de viverem no panteão dos fajutos imortais das academias de letras de seus respectivos países. “Quem sabe um dia eu serei indicado ao Nobel” – oh, naturezas sonhadoras, contemplativas da ilusão!
O homem ou mulher, que por algum motivo é superior aos outros em finos sentidos e gostos apurados, deveria ser o último a emitir opiniões ou escrever seus pensamentos aos outros. Quererão, assim, melhorar a humanidade? Nem se fosse para melhorar a mim mesmo me disporia a escrever. Como sou demasiado humano, e por isso covarde, escrevo apenas para suportar essa vida que não tenho coragem de enfrentar de outra maneira a não ser essa. Que completo parodoxo! Escrevo para ser lido apenas por mim mesmo, para agradar ao meu ego dilacerado, inconscientemente tentando retardar o desfecho fatal para qual minha pulsão de morte me conduz, da forma que eu menos perceba, não levando prejuízo algum, por meio de minhas palavras, a nenhuma criatura que sinta prazer em ler minhas verdades insinceras ou de qualquer outro escritor egocêntrico.
Creio que toda pessoa que escreve algo para ser lido tem a ideia de que seus escritos serão necessários na vida de seus futuros leitores, assim como Saint-Exupéry talvez tenha pensado quando cunhou a sua famosa frase “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” - que frase mais otimista para um mundo tão caótico! Afinal, quem precisa de terapia quando se tem uma raposa para cuidar? A ideia de ser eternamente responsável por algo é simplesmente deliciosa. Imagine a praticidade: você se afeiçoa a um cactus, e pronto, passa o resto da vida regando-o e protegendo-o de lagartas famintas. Que maravilha! Mas, e se o cactus resolver florescer de uma cor que você não gosta? E se ele começar a emitir um som agudo e irritante no meio da noite? Terá você se tornado eternamente responsável por essa tortura sonora? A filosofia por trás dessa frase é tão profunda quanto um poço seco: amar significa aprisionar. Ao criar um vínculo, tornamo-nos carcereiros de nossas próprias emoções. E o pior de tudo é a eternidade dessa responsabilidade: não há divórcio para os sentimentos, não há pensão alimentícia para raposas desertas.
Caso esse meu caderno velho, no qual escrevo essas palavras insignificantes, venha a ser lido por uma infeliz e azarada alma, que ele seja esquecido tão rapidamente quanto um sonho ruim, e que as futuras gerações me perdoem por ter contribuído para a proliferação de textos inúteis e egocêntricos. E se por acaso alguém se sentir tocado pelas minhas palavras e decidir escrever um artigo sobre a minha profunda mediocridade, peço apenas que não se esqueça de mencionar a minha incrível capacidade de procrastinar e a minha notável falta de originalidade.