Entre a Tradição e o Sonho
A força da herança de Anselmo Monteiro e o brilho de independência de sua filha Carla.
A fazenda do coronel Anselmo Monteiro era uma das maiores e mais prósperas da região, conhecida como "Fazenda Santa Clementina". Erguida no coração de uma vasta planície, ela se destacava pela imponência da casa-grande de dois andares, construída em estilo colonial, com alpendres largos e colunas de madeira de lei esculpidas. O telhado de telhas coloniais, já desgastado pelo tempo, ainda protegia uma estrutura que exalava tradição e poder. Ao redor da casa, pequenos jardins com roseiras e pés de manacá misturavam-se às cercas de madeira que delimitavam o início do território dos pastos.
A sala de jantar, onde o cheiro da comida quente preenchia o ambiente, era iluminada pela luz tremeluzente de velas dispostas em um candelabro de ferro forjado. O teto baixo com vigas expostas de madeira escura criava uma atmosfera aconchegante, enquanto as paredes eram decoradas com quadros de paisagens rurais e retratos dos ancestrais do coronel. Ao centro, uma mesa de madeira maciça ocupava boa parte do espaço, coberta por uma toalha de linho branco cuidadosamente bordada à mão. Os pratos de cerâmica esmaltada e os talheres de prata refletiam a chama das velas, enquanto tigelas de feijão tropeiro, arroz soltinho, carne de sol e farofa de manteiga eram dispostas ao alcance de todos.
Os familiares e convidados do coronel já estavam sentados, com as mãos cruzadas sobre o colo e o olhar fixo na cadeira principal, ainda vazia. A esposa do coronel, Dona Matilde, uma mulher de expressão severa e trajes impecáveis de algodão engomado, organizava os detalhes com uma criada que lhe trazia um jarro de água fresca. O silêncio era quebrado apenas pelo tique-taque do grande relógio de pêndulo encostado na parede, marcando a passagem do tempo com precisão quase solene.
Quando o coronel finalmente entrou, ajustando o cinto de couro sobre a camisa de linho levemente amassada, todos os olhares se voltaram para ele. Sem dizer uma palavra, ele caminhou até a cabeceira da mesa e acomodou-se em sua cadeira de espaldar alto. Um breve silêncio caiu sobre o ambiente antes que ele soltasse, com sua voz grave e autoritária:
— Vamos começar logo com isso, que amanhã tem muito pasto pra plantar.
Com um gesto simples, ele deu permissão para que os pratos começassem a ser servidos. Seu olhar sério, fixado na vela que tremulava à sua frente, demonstrava que sua mente já estava nos afazeres do dia seguinte. O campo o aguardava, e para ele, a terra e os bois eram tudo o que importava.
Ao redor da mesa de jantar, o coronel Anselmo Monteiro ocupava sua posição de autoridade na cabeceira, com Dona Matilde sentada ao seu lado, sempre vigilante sobre o comportamento dos filhos. À direita do coronel estava Carla, a mais nova, com seus 20 anos recém-completados. Era evidente que ela ocupava um lugar especial no coração do pai, algo que transparecia em cada olhar de orgulho que ele lançava na direção dela. À esquerda, estavam os outros dois filhos: Álvaro, de 25 anos, já envolvido nos negócios da fazenda, e Artur, de 22, um jovem introspectivo e mais inclinado aos livros do que ao gado.
Carla destacava-se na família, não apenas por ser a caçula, mas por sua presença marcante. Seus cabelos cacheados caíam até a cintura, reluzindo sob a luz das velas, e seus olhos castanhos claros pareciam carregar uma determinação inabalável. Vestia um vestido azul simples, mas elegante, que acentuava sua personalidade equilibrada entre a simplicidade da vida no campo e o refinamento que trazia da cidade grande.
Ela estudava na Faculdade de Direito em Campinas, uma cidade que começava a despontar como centro intelectual e econômico da província. Essa decisão foi um orgulho para o coronel, que fazia questão de alardear à vizinhança que sua menina estudava para "ser gente grande". Era por Carla que Anselmo Monteiro movia montanhas, enfrentava quem fosse preciso e até quebrava suas próprias regras.
Porém, havia algo na postura de Carla que Dona Matilde percebia, ainda que o coronel parecesse cego a isso. Um brilho de independência nos olhos da filha, um silêncio carregado de pensamentos que ela jamais compartilhava na mesa. Carla já tinha planos para o futuro, planos que ela sabia que seu pai não aprovaria. Seus estudos de direito não eram apenas para trazer prestígio à família; eles eram a chave para um mundo muito maior, que ultrapassava os limites da fazenda e as expectativas do pai.
Enquanto todos comiam, Carla desviou o olhar da mesa e fitou a janela, observando a escuridão da noite que tomava o campo. Em sua mente, ela já vislumbrava uma vida diferente, longe do peso das tradições que seu pai tanto venerava. Mas, por ora, guardava esses pensamentos para si, mantendo-se em silêncio enquanto a conversa ao redor da mesa girava em torno do trabalho no pasto e do planejamento para a próxima feira de gado.
Anselmo, sem perceber a tensão que se formava em pequenos detalhes, levantou a voz para elogiar a filha:
— Minha Carla vai ser doutora! Daqui a pouco, vai estar defendendo a nossa terra desses políticos que não entendem nada de gado!
Carla apenas sorriu, um sorriso leve, quase ensaiado, e voltou a comer. Era cedo demais para revelar seus verdadeiros planos. Por ora, deixaria o coronel acreditar que tudo estava exatamente como ele desejava.
Continua...
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