O Livro - 4 - A primeira diligência

Vamos começar com a filha Felipe. Não tem outro jeito.

Mas ela era uma criança na época. Não tem como lembrar de muita coisa.

Mas ela se formou em Direito. Seguiu os passos do pai, deve ter pesquisado o caso.

E a viúva, por que não?

Ela está com setenta e dois anos. Vamos tentar poupá-la. Ao menos por enquanto. Certamente esse episódio a fez e possivelmente ainda faz, sofrer muito.

Felipe, policial acostumado com a dureza do crime na prática, estampou um semblante indicando que não concordava com meu ponderamento.

Já o Delegado, me surpreendendo novamente, concordou com a escolha e autorizou que eu acompanhasse o Felipe.

Geralmente não fico confortável em carro de polícia, mas meu conforto não era a prioridade.

Chegamos no bairro Serra. Na parte nobre, mas não muito longe da favela. A maior parte do tráfico de drogas em Belo Horizonte acontece ali. E não sei disso por ter clientes traficantes. Eu nunca aceitei casos do tráfico, porque sei que você nunca só advoga pra eles. Sempre vem com funções ilegais extras. E se não cumprir, é chumbo. É um universo que se você entrar, vivo não sai nunca mais.

Batemos o interfone. Era um prédio de classe média, sem maiores luxos, mas bem aconchegante.

Eu preciso falar com Lara Magalhães.

É ela.

Havia música (boa) um pouco alta no fundo.

Meu nome é Felipe da Delegacia do Bairro Lagoinha, precisamos conversar com você sobre seu pai.

Veio o silêncio, sempre ele.

Um momento.

Ela pareceu se afastar. A música desapareceu.

Conseguiram encontrá-lo?

Infelizmente não. Mas em recentes descobertas, suspeitamos que possa ter alguma ligação.

Tem tanto tempo e já sofremos muito com o que aconteceu. Não queria mais me envolver nisso.

Fiz um sinal para o Felipe me deixar falar.

Lara, aqui é o Francis, sou advogado e estou assessorando o caso. É uma conversa informal. Só precisamos averiguar uma possível conexão.

Mais um pouco de silêncio e a portaria se abriu.

Subam.

Ofereceu água e nos acomodou no sofá de três lugares. Ela ficou no outro de dois lugares.

Um apartamento legal, bem decorado, mas sem maiores luxos. Ela parecia ter mais bom gosto que dinheiro.

Ela tinha dez anos quando o pai desapareceu. Está com trinta e um agora. É uma mulher com jeito de menina ainda. Mas com traços fortes. Muito bonita, mas que já estampa sofrimento.

Estava com uma calça jeans que valorizava suas curvas e uma fina blusa de seda sem mangas. Estava calor. Era fim de tarde. Cruzou as pernas antes de nos lançar o olhar de prossiga. Uma imagem agradável.

Deixei Felipe iniciar. Afinal é a profissão dele.

Ela escutou sobre a descoberta das ossadas e que tínhamos alguns elementos na investigação que nos fizeram entender que poderia ter alguma conexão com o desaparecimento do pai.

Olha, na época, a polícia e a imprensa não nos deixavam em paz. Falamos tudo o que sabíamos. Minha mãe sofreu muito com isso. E eu, tinha acabado de completar dez anos. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Só queria que meu pai voltasse.

Felipe tentou ser mais incisivo, mas percebi que ela ficava cada vez mais acuada. Logo seríamos convidados a sair. Então fiz um sinal com o olhar para o Felipe me deixar tentar.

Senhorita Lara, pelas informações que temos, você se tornou advogada, como seu pai, correto?

Ela olhou surpresa. Aquela pergunta cumpriu a função de sair do protocolar.

Sim, sou Defensora Pública.

Como expliquei, sou advogado criminalista. Estou tentando ajudar a entender esse caso das ossadas que apareceram em Esmeraldas. São mortes que podem ter acontecido no período do desaparecimento do seu pai. Mas não é uma certeza, pois o IML não conseguiu ainda nos dar essa resposta. Mas pelo estado das ossadas, podem sim ser bem antigas.

Aparentemente, uma das vítimas era Promotor de Justiça. E a motivação do crime, parece ter sido por vingança. Enfim, o que é importante sabermos, é se você tem alguma lembrança ou soube posteriormente, de algum desafeto de algum condenado em caso que seu pai atuou. Principalmente algum caso que ele parecia não ter certeza da culpa do acusado.

A perguntou a deixou um pouco atordoada.

Ela chegou a se levantar e foi pegar uma água. Nos ofereceu.

Restabelecida, ela falou firme:

Se já estão estabelecendo conexões e especulando sobre motivação dos crimes, é sinal que encontraram mais que ossada.

Eu e o Felipe nos entreolhamos surpresos. Ela se mostrou mais esperta do que indicava a aparência frágil.

Você tem razão, senhorita Lara. Mas não temos permissão para revelar os detalhes da investigação. Até mesmo para preservar as famílias de possíveis vítimas.

Foi uma boa saída. Ela se mexeu no sofá procurando uma posição mais cômoda diante daquela situação incômoda.

Meu pai comentava com minha mãe sobre alguns processos. Mas eu não conseguia entender muito bem, era muito nova.

De repente, levantou a cabeça.

Vocês procuraram minha mãe?

Felipe se adiantou:

Não, o Francis, exatamente preocupado em poupá-la, sugeriu conversarmos com você antes.

O ombros dela caíram. Alívio perceptível.

Que bom, como já falei, minha mãe já sofreu demais com isso. E não está com a cabeça boa. Se possível, não a procurem, por favor.

Felipe pegou rapidamente dessa vez o meu aquele meu olhar de “deixa comigo”.

Lara, você cresceu com esse trauma e acompanhou todo o sofrimento da sua mãe. E durante anos, imagino, ficaram na expectativa do reaparecimento do seu pai. Certamente isso te marcou muito. E você acabou seguindo os passos dele em parte. Eu especulo que em algum momento, você deve ter começado a investigar por sua conta. Você deve ter escutado coisas na sua família sobre esse caso, que te levaram a buscar respostas; conforme você foi crescendo.

Ela parecia surpresa, mas ao mesmo tempo, hipnotizada.

Sei que deve ser difícil e dolorido pra você desenterrar essas lembranças. Lhe peço desculpas por lhe trazer essa situação.

Ela me olhou, parecia surpresa por estar conversando com um desconhecido que sabia tanto dela.

Você deve estar confusa com todas essas informações sobre um assunto tão penoso. Enfim, vou deixar meu cartão com você. Quando estiver mais tranquila, lhe peço que tente se lembrar de algo que possa nos ajudar para sabermos se essas ossadas de Esmeraldas tem alguma conexão com o desaparecimento do seu pai. Afinal, imagino que a esperança de encontrá-lo vivo, depois de tanto tempo, não deve ser grande. Mas a dúvida, até saber a verdade, vai sempre corroer, mesmo que lentamente.

Me levantei entregando o cartão, ela recebeu em silêncio, mas parecia estar mais à vontade. Ela me olhou com mais interesse. Parece que minhas palavras lhe causaram um certo choque. Felipe também ofereceu o cartão dele e falou algo que nem eu e nem ela absorvemos. Ela demorou a pegar o cartão dele.

Logo estávamos no carro de polícia.

A gente podia ter apertado mais..

Calma Felipe, não é um interrogatório. Ela ficou em choque. Mas acredito que conseguimos deixá-la pensativa. Ela vai acabar ligando. Ninguém quer viver com esse tipo de dúvida pra sempre.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 28/10/2024
Reeditado em 28/10/2024
Código do texto: T8184256
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