O Livro - 3 - Audição

“Você não pode usar seu poder pra destruir a vida das pessoas. Escolhas e consequências, por isso você está aqui. Você não fez justiça. Você condenou e essa não é sua função. Você sabia a verdade”.

Essas foram algumas frases que anotei do lado A. O som era muito ruim e confuso, então me dei o direito de deduzir alguns trechos.

Coloquei a observação nos intervalos com gritos, choros agonizantes em grunhidos. Era óbvio que a vítima estava com a boca tampada. As frases eram de uma só voz masculina. Também havia sons de pancadas com algum objeto. Possivelmente um pedaço de pau ou ferro. Alguns desses sons sugerem atingir ossos, sempre seguidos com gritos e choros agonizantes com voz embragada. E havia também outros sons de pessoas que provavelmente presenciavam a violência. Eram choros e tentativas de gritos, certamente também com a boca obstruída, de vozes masculinas e femininas.

O lado B foi pior. “Você vai pagar”. Foi uma das poucas frases que foram possíveis entender (ou deduzir). Mas todos os sons remeteram a uma execução lenta, vingativa, e principalmente, punitiva. O lado B parece terminar com o fim da vida do torturado. Faz-se um silêncio depois de uma sequência impressionante de pancadas. Depois é possível escutar alguns gemidos. Entre os sons embargados, um mais desesperado, parecia ser do gênero feminino. Essa foi a pior parte.

Capone gravou no pen drive e me deu. Combinei com o Thiago de não enviar nada por internet.

Entreguei o pen drive para o Thiago. Ele espetou no notebook e gravou o arquivo. Alertei que havia um relatório que fiz em Word e ele gravou também. Escutou atentamente no fone. Não fez comentários sobre o lado A. Quando estava escutando o lado B, não conseguiu disfarçar a agonia. As lágrimas queriam vir, como aconteceu comigo, mas ele manteve a postura profissional e os olhos permaneceram secos. Leu o relatório e finalmente me olhou gravemente.

Essas também foram minhas impressões iniciais. Mas vou escutar mais vezes. Embora sem nenhuma satisfação.

Eu fiz o relatório em Word pra você editá-lo, caso queira.

Obrigado Francis. Bom, agora temos um ponto de partida. Eu já havia pesquisado alguns desaparecimentos e casos não resolvidos que possam estar ligados a este. Vou pedir o Felipe pra lhe passar as cópias desses processos. Tente verificar se há alguma ligação entre as gravações.

Percebi o abatimento dele.

É o gemido da voz feminina no final do lado B, certo?

Ele concordou com um olhar e comentou:

É impressionante a capacidade do ser humano de conseguir torturar e matar um semelhante. Muito triste.

Capone já foi um dos meus melhores amigos. Por um longo tempo, nos encontrávamos quase todos oos dias. Amigos desde a infância. Depois tivemos bandas de Rock juntos nos anos 1980 e início de 1990. Sempre saíamos pra beber. Depois fomos nos afastando conforme as mudanças em nossas vidas. Leia-se casamento, e no meu caso, filhos.

Esse trabalho com as fitas cassetes, resultaram na volta da rotina de irmos em butecos. Hábito que eu mantive, mas que ele já havia erradicado. Fomos para um bar no Carlos Prates, perto da casa dele, com a desculpa de não levantar suspeitas da Raquel, esposa dele, nos reunindo com tanta frequência no estúdio.

Mas havia algo mais. Aquelas fitas estavam mexendo com todos nós. Ele, que já sempre fora circunspecto, parecia ainda mais que o habitual. Havia uma tristeza em seu olhar parecendo fazer uma pergunta: “A humanidade vale a pena”?

Eu trazia um envelope com as cópias dos casos que o Thiago tinha me passado. Resgatei um caderno e três canetas. O Capone conseguiu um MP3. Escutamos os áudios e tentamos juntar as pontas. Nesse momento ele já havia masterizado três fitas.

Eu fazia as anotações. Ele lia os documentos e fazia observações. Até que ele parou e me olhou surpreso.

Olha isso.

“Promotor de justiça desaparecido em Belo Horizonte desde 2002, nunca foi encontrado”.

Peguei os papeis na mão dele.

Pode ser uma conexão. Preciso mostrar para o delegado.

Thiago ficou pensativo lendo aquele processo e o relatório atualizado.

É Francis, concordo. Pode ter ligação sim. Alguém que foi condenado e preso, talvez injustamente, depois de solto, resolve se vingar.

As ossadas estão no IML. Em um estado muito deplorável. Ainda não sabemos se será possível a identificação das vítimas.

Delegado, talvez seja interessante conversar com a família do Promotor. Pode ser que a gente consiga alguma informação relevante.

Sim, enquanto não sai nenhum resultado do IML, vamos usar o que temos. Mas é preciso ser muito discreto. A família precisa ser preservada. Afinal, casos de desaparecimento, normalmente, para a família, é mais traumatizante do que a própria morte confirmada.

Vou pedir para o Felipe pesquisar os parentes vivos e escolhemos com quem começar.

Ok Thiago, vou continuar com as fitas.

Continua...

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 20/10/2024
Reeditado em 20/10/2024
Código do texto: T8177959
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