O Livro - 1 - APC
Dever cumprido. Foi essa a sensação que tive, depois dos quarenta.
Até então, uma vida comum. Dois filhos. Um de cada casamento; devidamente fracassados.
Meus filhos estão bem encaminhados. Quero dizer; no sentido, agora vocês vão precisar se virar. Eu não deveria ter lido Os Irmãos Karamazoviski. Mas enfim, a vida não tem marcha ré. Às que têm, normalmente lhes faltam as demais. Passei pra eles toda a minha fortuna. Vivência e valores morais. Os meus é claro. Dinheiro? Quase nada. No máximo uma casinha que deixei pra minha segunda esposa logo no início da separação (não exigindo a venda e a divisão da grana, sacou?). Bonzinho? Justo com o injustiçado gênero? Acho que era só preguiça em lidar com essas coisas mesmo.
Nesse momento percebi que já poderia morrer. Meu boleto para a humanidade estava quitado. Mas dar cabo da própria vida não é tão simples. Coragem ou covardia?
A outra opção seria recomeçar.
Retomei meu curso de Direito. E as duras penas, me formei.
Eu já tinha uma certa intimidade com encrencas judiciais e um apreço por conteúdos de suspense. Meu filme preferido é “Seven”. Rubem Fonseca é sempre uma inspiração e Alfred Hitchock completa o time.
Acabei me tornando um APC - Advogado de Porta de Cadeia.
Se sua formação em matemática não for menos rudimentar que a minha, deve ter percebido que mais de meio século da minha vida já se foram.
Francis, meu velho, deixa eu te mostrar uma parada.
Era o Felipe, um detetive maconheiro da delegacia da Lagoinha, interrompendo meu café com pão de queijo. Fiz um sinal para ele esperar. Tive que colocar meu rayban shopping popular pra amenizar o sol daquela manhã outonal rachando minha testa e aflorando a ressaca. Atravessei a rua e entrei na delegacia.
Cara, chegou um material sinistro aqui. Acharam várias ossadas numa casa abandonada no meio do mato em Esmeraldas. O lugar estava inabitável há anos. Encontraram dezenas de fitas, não me lembro bem como chama. É... fita que grava, que dava pra escutar música, essas meio quadradinhas. Falou emoldurando com as mãos o formato do objeto.
Fita K7. Falei. São retangulares.
Pois é Francis, isso mesmo. O pessoal não tá encontrando aparelho que consiga reproduzir essas fitas com um som melhor. Aí falei pro Delega de você, que é um cara das antigas, conhece de som. Ele pediu pra te chamar.
Felipe abriu a porta da sala do Delegado e me fez entrar. Foi constrangedor. Thiago era um jovem Delegado e tinha gana de colocar todo mundo na cadeia. Ficava enlouquecido quando o judiciário mandava soltar algum “vagabundo”, como ele gostava de descrever. E parte dessas solturas, eram o meu ganha pão.
Sentei, após um gesto dele, e olhei pra frente evitando um olhar fixo.
Seu Francis, estamos com umas fitas K7 de um caso complicado. Utilizamos um gravador antigo, desses retangulares, pequeno, preto (AIKO), mas o pouco que conseguimos escutar, estava ininteligível.
Minha mente se distraiu pensando se a geometria melhor dele em relação à do Felipe, era a responsável pela hierarquia naquela delegacia. Pensamento inútil. Concentra Francis.
O Felipe falou que o Senhor entende de som, que talvez possa ajudar.
É Doutor, realmente trabalhei com música muito tempo, conheço gente que talvez consiga uma reprodução melhor dessas fitas cassetes.
Ele gostou da minha intervenção completando o nome correto das fitas.
Ótimo Francis. Mas eu não posso envolver pessoas fora da corporação nisso, entende? Nem o Senhor eu poderia envolver. O Felipe que falou que o Senhor tem muita boa vontade e é de confiança. Mas infelizmente, não tenho como oferecer nenhum pagamento imediato. Talvez depois, já com o caso judicializado, podemos conseguir uma verba de perícia. Mas não posso garantir.
Existem várias formas de pagamento.
Quando Thiago tirou o “Seu” antes do meu nome, na última fala, percebi que parte da antipatia dele por mim desapareceu. Minha dificuldade em falar com alguns clientes encarcerados ali, certamente diminuiria.
Thiago, pode ficar tranquilo. Ser discreto é minha especialidade. Posso ver essas fitas?
Dentro do saco transparente, estava não menos que cinquenta fitas cassetes. Basf, a maioria. Muitas TDK também. Ele abriu o saco.
Francis, eu não posso liberar todas de uma vez. Vai gerar suspeitas. A imprensa está especulando sobre esse caso. Tem gente graúda envolvida nisso.
Ele mostrou as fitas dentro do saco de linhagem, mas o fechou e em seguida o acomodou em seu solo. Estava me testando.
Entendi Thiago, essas fitas geralmente possuem um adesivo para escrever algo pra identificar dos dois lados. Lado A, lado B.
Vocês perceberam se existe alguma identificação? Quem sabe tem alguma sequência.
Não encontramos sequência Francis. Foi o que procuramos inicialmente. Aparentemente, evitar sequenciar, foi uma estratégia. Mas todas tem algo escrito em códigos. Alguns são fáceis de interpretar, como iniciais de nomes, cidades e até situações. Essa por exemplo.
Me mostrou a fita com as letras: “pres der” no lado” A e “pção” no lado B. Tentamos escutar no gravador, mas foi impossível entender as palavras. Mas no lado B detectei gritos.
Peguei a fita com as mãos um pouco trêmulas. Parte é do alcoolismo, mas também já tinha efeito da mensagem. Olhei o lado A e falei: precisa aprender. Virei o B: punição.
Exatamente o que pensei Francis.
Olhei nos olhos dele.
Crimes de vingança com tortura?
Ele me lançou um olhar que poderia indicar, “será? e provavelmente”, ao mesmo tempo.
Thiago, você pode me passar o que já apuraram?
O caso está correndo sob sigilo. Mas não é por isso que vou lhe ocultar as informações que tenho. Não quero que você fique influenciado pelo excesso no momento que começar a decifrar as fitas. Caso consiga. Precisamos de critérios.
Olhei para aquele jovem Delegado com simpatia. Muito mais inteligente do que eu imaginava. Modéstia às favas, me vi nele no passado.
Entendi. Você tem razão Thiago. Parece intrigante. Confesso que estou curioso e interessado. Quantas fitas vai me liberar no momento?
Vamos começar com quatro. Não é critério técnico, é apenas meu número da sorte. Falou com um leve sorriso.
Mas antes, preciso da sua garantia que não vai compartilhar isso com ninguém.
Refleti por um momento.
Thiago, se vocês não conseguiram escutar nada inteligível em um gravador comum, certamente vou precisar de amigos técnicos em som e de estúdios para essa tarefa. Vou ocultar o máximo possível, mas pode acontecer alguma situação que eu não tenha como evitar que alguém ouça. O que posso prometer, é que, se chegar nessa situação, antes de expor o material, trarei a pessoa aqui para você autorizar.
Ele me olhou com admiração pela segunda vez.
Entendi Francis. Esse caso, conforme já falei, acredito que tenha envolvido muitas famílias de gente importante. Acredito que não só aqui de Minas, mas de vários outros pontos do país. Nada pode chegar para a imprensa que não seja passado por nós.
Entendi perfeitamente Thiago. Pode confiar. Sei muito bem o estrago que a imprensa pode fazer com especulações.
Você já tem as quatro fitas iniciais selecionadas?
Sim. Dentro de uma ideia que quero ter explicar. Pensei em te passar com estilos de códigos diferentes. Porque talvez seja uma forma de classificar o material para posteriormente se chegar a algum tipo de sequência cronológica.
Certamente Thiago. Com o que temos, acredito ser a melhor opção.
Ele manuseou aquela Basf preta com adesivo pautado laranja escuro.
Pra mim, soou como uma máquina do tempo.
Bem, já temos essa “pres der” no lado” A e “pção” no lado B, que indica alguma ação.
Essa outra, (me mostrou uma fita do lado A escrito “FOR” e nada escrito no lado B), pode indicar localidade. Fortaleza por exemplo. Porque tem outras com a mesma característica. BSB é uma delas. Nos olhamos pensando em peixes grandes, obviamente.
Pegou outra. Essa que tem o lado A “Nat” e o lado B “Vag”, pode ser referente a nomes de pessoas.
Fiz um gesto concordando.
Algumas, acredito que só serão compreensíveis após encontrarmos uma sequência.
Essa por exemplo. Me mostrou o lado A escrito LDK e o B SFDG.
E tem algumas que parecem designar planejamento. Lado A: Juz e B: Protor.
Peguei a fita, olhei intrigado.
Sequestro?
Bem que o Felipe falou que você poderia ser útil Francis. Pensei exatamente nisso.
Cocei a cabeça.
Juiz, Promotor. Só peixe grande.
Vamos começar com essas quatro.
Guardei no bolso interno do meu surrado paletó. Foi minha forma de mostrar pra ele que entendi a importância do sigilo. Ele se levantou e me estendeu a mão.
Francis, sei que já fui duro com você aqui muitas vezes. Espero que compreenda, é meu trabalho. Não é fácil manter a ordem em uma delegacia.
"Quanto mais aqui na Lagoinha onde a delegacia fica praticamente na entrada do Morro".
Só pensei.
Apertei a mão dele com firmeza.
Compreendo perfeitamente Thiago. Precisamos ser profissionais.
Continua....