O FANTASMA DO APITO, capítulo 2: Assassinato no Expresso do Ocidente
CAPÍTULO 2
ASSASSINATO NO EXPRESSO DO OCIDENTE
(As primeiras horas das três garotas no Colégio Modelo (?) não foram nada agradáveis. Muita gente esquisita e implicante. Só que coisas bem piores estão para acontecer.
Não esqueçamos que a novela se desenrola num mundo paralelo ao nosso, onde as guerras mundiais não ocorreram e a tecnologia avançou com menos rapidez.)
Cerca das sete horas de uma manhã ainda nublada, ventosa e fria, o trio de garotas foi despertado intempestivamente por batidas insistentes na porta. Elas se remexeram incomodadas, e afinal Andréia se dirigiu, sonolenta e descalça, até a porta, abrindo a janelinha.
Uma mulher ruiva e jovem estava lá fora, acompanhada por outras pessoas que elas não conheciam.
- Abram – disse a mulher, mostrando um distintivo. – Sou Irina, da Polícia de Investigação.
Andréia abriu, perplexa, e uma outra mulher, uma matrona de cabelos grisalhos, falou:
- Eu sou a diretora-adjunta Eduarda Andrade. Vocês são as novas alunas, não é?
- Somos – disse Carol. – Mas o que houve?
- Houve um assassinato – disse Irina – e nós precisamos conversar com vocês.
- Por que nós? – indagou Fátima, pondo-se à frente das colegas.
Nesse momento ocorreu como que um hiato na atitude de Irina. Ela fitou Fátima com a boca entreaberta, por alguns instantes, mais ou menos o tempo que se leva para bater uma fotografia.
- O que foi? – Fátima estava admirada.
- Talvez especialmente com você... sigam-nos até a sala da diretora, no térreo, por favor.
- De pijama? – a pergunta fôra de Carol, a atrevidinha do trio.
- Vistam-se – disse Eduarda secamente. – Nós esperamos aqui fora. E não tentem fugir.
- Fugir? – Carol explodiu. – Do que é que a senhora está falando? Porque é que as pessoas por aqui falam coisas tão absurdas?
- Comporte-se! Você é uma aluna!
- Comportar-me? A senhora me ofendeu! Nós nem sabemos o que houve, o que é que nós temos a temer para a senhora achar que nós vamos fugir?
- Diretora – interveio Irina – vou deixar bem claro que quem está no comando sou eu. Não há necessidade da senhora tumultuar o processo de investigação com admoestações descabidas.
- Mas eu sou a diretora!
- Não é relevante. Todos são presumivelmente inocentes até prova em contrário e se elas estiverem inocentes têm toda a razão em se sentir ofendidas. E não é tão fácil assim escapar de uma investigação que eu conduzo. Se houvesse necessidade de falar o que a senhora falou, eu teria falado. Fui bem clara?
- Sem dúvida – disse a mulher, de má vontade.
- Agora vocês três, por favor, vistam-se e venham.
Fátima sorriu para Irina, simpatizando intuitivamente com ela.
- Você disse que houve um assassinato? Mas quem morreu?
- Um estudante chamado Tiago, e consta que brigou com vocês ontem.
- O tal da sopa de tomate! – exclamou Carol.
- Mas não esmiuçaremos isso aqui, em pé. Tratem de se despachar.
Fátima deu o seu melhor sorriso para aquela que, conforme disse depois às outras duas, “eu já considerava a minha nova amiga”:
- Seria pedir demais que nós quebrássemos o nosso jejum? Interrogatórios costumam ser demorados...
Irina voltou-se para o policial uniformizado que a acompanhava:
- Cosme, pegue um dos serventes do refeitório e prepare uma bandeja de rodas com desjejum suficiente para várias pessoas. Inclusive para mim, pois estive de plantão a noite inteira e ainda não comi hoje... e leve tudo para a sala da Professora Eduarda. Café com leite, torradas, mel, bolo de fubá, pão francês e queijo prato, está bom para vocês?
- Está melhor que a encomenda – disse Andréia, incrédula com a gentileza da policial.
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- Parece que rogaram praga em nós – queixou-se Carol, enquanto se vestiam após rápida passagem no banheiro. – Tudo está nos acontecendo!
- Nada nos acontecerá – respondeu Fátima com segurança. – Irina nos protegerá.
- Como você pode ter certeza disso? Já conhecia ela?
- Eu não, mas ela é uma alma gêmea. Eu percebi isso claramente.
- Você quer dizer... – murmurou Andréia – que ela também é clarividente?
- Tu o disseste – brincou Fátima.
- Isso é incrível... – observou Carol.
- E tem mais: a vidência dela é mais avançada que a minha. Ela não precisa de caleidoscópio. E ela já sabe que nós somos inocentes.
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Irina, com seu costume azul-marinho, era uma policial elegantíssima, e as três garotas não puderam deixar de admirá-la ao adentrarem a sala de Eduarda e observá-la buscar uma poltrona para sentar. As três se acomodaram num sofá e dois outros policiais, que acompanhavam o grupo, arrastaram uma mesa de tampo de metal e ali instalaram seus materiais de gravação e estenografia.
A diretora-adjunta parecia irritadíssima.
A detetive Irina perguntou tudo a elas, com tranqüilidade. Fez com que contassem todos os lances desde a viagem de carruagem, a travessia no funicular, o apitaço ouvido em meio às trevas e à tempestade, o incidente com o funcionário Aristeu, a confirmação de matrícula, o caso da sopa de tomates, a hora aproximada em que elas foram deitar e se desde então permaneceram no quarto até a hora em que a própria policial fôra despertá-las.
Elas só não falaram sobre o caleidoscópio. O lanche chegara e foi devidamente consumido, o que parece ter levado a diretora à fervura. Irina, circunvagando o olhar pelas paredes, parecia sonhar, divagar. A certa altura, enquanto procurava pensar, pousou o olhar em Fátima, que lhe chamara tanta atenção. Algo foi então vislumbrado, com a rapidez de um flash fotográfico. Pareceu a Irina a visão da Justiça, a figura feminina com a venda nos olhos.
Volvendo o olhar para as paredes da sala, buscando raciocinar, Irina monologou em pensamento:
“O que isso quer dizer? Que Fátima é uma pessoa justa? Muitas pessoas são justas e eu não fico vendo isso em toda parte. Ela é, então, um instrumento da justiça?
“Ou vai ser? O que estará reservado para ela, nesse caso?”
- Detetive Irina – cortou Eduarda, secamente, as reflexões da tira – chegou a alguma conclusão?
- Apenas uma: essas meninas não têm nada a ver com o caso.
A mulher explodiu:
- Ora bolas! O que há com a senhora? Não pode proteger suspeitas! E para mim elas são suspeitíssimas!
Irina voltou o olhar para a mulher. Os olhos da detetive brilhavam de cólera:
- O que você quer dizer? Cursou quantos anos a faculdade de investigação criminal? Sabe cotejar os depoimentos de suspeitos e testemunhas? Não percebe que não há consistência alguma em acusar três meninas recém-chegadas e de boa reputação? Quer que eu as acuse porque vários dos seus alunos abusados, cujos excessos a senhora deveria conter, implicaram com elas por tomarem sopa de tomate? Ou porque um funcionário desabusado quis revistá-las porque alguém apitou na escuridão e ele achou que só podiam ser as garotas que vinham no bondinho? Isso é ridículo.
- Posso fazer um aparte? – acenou Andréia.
- Pois não, à vontade.
- Até agora nem sabemos o que houve com a vítima. Somos espertas e talvez até possamos dar uma opinião. Como ele morreu, onde o corpo foi encontrado... essas coisas.
- O corpo foi achado num dos vagões do Expresso do Ocidente, com o crânio esfacelado por instrumento contundente.
- Expresso do Ocidente? O que é isso?
A pergunta fôra feita por Carol. Cosme encarregou-se de responder:
- É o nome do trenzinho que percorre aqui por cima os espaços abertos da faculdade e liga os pavilhões separados.
- E porque um nome tão pomposo?
- Suponho que é uma alusão a um romance famoso – disse Aderbal, o policial estenógrafo.
- O Expresso do Oriente, sim... – murmurou Fátima. – Ora! O trem daqui deve ter um percurso tão curtinho... que comparação presunçosa!
- Podemos ver o local? – perguntou Andréia. – Queremos colaborar e afinal, ficamos com pena do Tiago! Jamais o mataríamos só porque ele não gosta de sopa de tomate...
- Eu não quero mais ouvir falar em sopa de tomate – Irina alterou por um instante o seu humor. – Vamos tratar desse assunto com a seriedade que ele requer. Já tomaram seus depoimentos. Agora eu quero olhar o quarto de vocês.
- Pois não – disse Carol.
Irina voltou-se para Cosme:
- Prossiga nas investigações e na vida pregressa da vítima. Eu vou até o quarto delas.
- Sozinha? – perguntou Eduarda, levantando-se com sinais de alarme.
- Se eu não sair em meia hora tragam a tropa de choque e arrombem a porta – ironizou Irina, com violento sarcasmo.
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Depois que as quatro entraram, Irina pediu a chave e passou-a na porta por dentro.
- Assim teremos privacidade. Vocês duas, quero que fiquem uns três minutos no banheiro.
- Ué! E essa agora? – Carol estava perplexa.
- Quero falar uma coisa com a Fátima em particular. Vão agora mesmo!
As duas se entreolharam e olharam para Fátima, que confirmou a ordem de Irina:
- É melhor vocês irem.
Elas foram, hesitantes, e encostaram a porta do banheiro. Como a distância era razoável, Irina virou-se para Fátima e falou em voz baixa, sem chegar ao sussurro:
- Eu sei que há algo diferente em você e quero que admita.
- E o que seria?
- Não vamos brincar de gato e rato. Eu estou disposta a ajudar vocês mas quero que colaborem. Até porque a polícia não sou só eu e não poderei segurar facilmente a barra de vocês se não colaborarem. Vocês são pessoas diferentes, talvez sejam tão bondosas e puras que despertam ódios e rancores gratuitos e imediatos dos maus e dos simplesmente mesquinhos e pequenos, em poucas horas vocês granjearam, sem nada terem feito de mais, pelo menos três inimigos aqui dentro. Temo que surjam inimigos de vocês também na polícia, em departamentos que eu não controlo, e aí temos o caldo entornado. E aí?
- O que você quer saber de mim?
- Quero saber o que você tem de diferente.
- Você é vidente, não é, Irina?
- Sou. E você também é.
Fátima sorriu:
- Eu já sabia. Bem, eu uso o caleidoscópio.
- Suas amigas sabem disso?
- Eu contei a elas.
- Não conte a mais ninguém. E se alguém vir o seu caleidoscópio, diga que é só uma curiosidade. Jamais – pelo menos enquanto esse caso não for esclarecido – admita a quem quer que seja, mesmo da polícia, que possui dons paranormais.
- Na polícia... não sabem dos seus?
- Não, ninguém sabe nem deve saber. E vá por mim... é a melhor política. O que foi que você viu no caleidoscópio?
- Uma foice, e mostrei a elas.
- Um aviso, sem dúvida, do que ia acontecer. Podemos fazer um trato? Qualquer coisa diferente ou significativa que você enxergar em seu instrumento... me comunique. Não deixe de fazer isso, porque você pode ver coisas que eu não vejo e vice-versa, vamos nos completar. E pelo amor de Deus, leve a sério o que estou dizendo. A sua vida, as vidas de suas colegas, a minha própria e as de outras pessoas, podem vir a depender desse nosso acordo.
- Está bem, Irina. Não poderia deixar de colaborar com você. E direi às minhas amigas para fazerem o mesmo!
Irina deu-se por satisfeita:
- Pode chamar suas amigas.
Quando Carol e Andréia vieram, Irina comunicou-lhes o trato recém concluído com Fátima e recomendou:
- Agora, se vocês são dignas da amizade da Fátima, escondam de todo
mundo esse assunto de vidência, e do caleidoscópio. O assassino de Tiago não deve ficar sabendo ou a vida de vocês todas correrá perigo.
- Não falaremos a ninguém – respondeu Carol. – Mas você me impressiona. O que há de tão tenebroso nesse caso? Ou você acha que haverá mais crimes?
- Há um assassino à solta e assassinos matam.
- Tiago era repugnante. Cheirava mal, devia ser muito grosso... devia ter seus inimigos.
- Num colégio modelo? Não, garota, há qualquer coisa sob a superfície desse caso. Eu sinto isso na minha medula.
- Não há nenhuma pista? – quis saber Andréia.
- Por enquanto não. Mas vou recomendar mais algumas coisas a vocês. Primeiramente, quero que fiquem juntas o máximo que puderem. Procurem não se separar, fiquem sempre à distância de um grito, uma das outras. Além disso, verifiquem sempre se não há aparelhos de escuta ou gravação neste quarto, quero que fiquem com esses aparelhinhos.
E estendeu para elas, tiradas de sua bolsa, três continhas amareladas, parecendo de âmbar.
- O que é isso? – Carol sopesou a sua.
- O transistor que está aí dentro pode localizar qualquer aparelho de escuta, ele começa a piscar se houver um por perto. Vejo que vocês usam cruzinhas, medalhas no pescoço, é fácil acrescentar uma bugiganga qualquer. Nesse exato momento não há nada de errado nesse dormitório, se houvesse eu teria percebido. Mas eu temo que a direção desse estabelecimento ou quem quer que tenha interesse em inculpá-las ou prejudicá-las queira escutar suas conversas particulares e isso deve ser evitado. Se vocês localizarem qualquer microfone ou coisa parecida, destruam-no ou desliguem-no imediatamente e sem medo, pois ninguém tem o direito de fazer isso.
- E como nós podemos saber, Irina, se isso é isso mesmo... se na verdade essas bolinhas não são transmissores para que você escute até os nossos pensamentos?
- Não existem transmissores tão simples assim, de qualquer modo vocês precisam confiar em mim. Até mesmo você.
- Até eu? O que quer dizer?
- Que você, Carol, é uma garota temperamental e desconfiada, mas assim mesmo podemos tentar ser amigas, estamos com um problema muito sério para resolver e eu confio em vocês, portanto espero que confiem em mim.
- Carol, ela está do nosso lado – interveio Fátima. – Eu ponho a minha mão no fogo. Se Deus deu a ela esse dom da vidência, é porque se trata de pessoa altruísta e rara.
- Está bem – disse Carol, com os braços cruzados atrevidamente. – Aprendi a não confiar em tiras, mas tentarei abrir uma exceção.
- Carol! – ralhou Andréia. – Seja mais gentil!
Irina sorriu, encarando Carol:
- Não se preocupe, Andréia. Sua amiga não é o que procura mostrar. Ela apenas se finge de antipática. Já peguei qual é a sua personalidade. Vocês três serviriam para um ótimo estudo da psicologia humana. E agora chega, vou revistar os seus pertences para justificar minha vinda até aqui, quem sabe eu encontro o tal apito...
Elas riram, cumplicemente...
(Na sequência, a Detetive Irina segue sua investigação em ritmo ágil e direto. Entretanto ela parece enxergar ou saber que por trás de tudo existe alguma coisa mais profunda que um assassino comum. O que esconderá este colégio sinistro?
Em breve:
CAPÍTULO 3:
IRINA INVESTIGA)
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