O FANTASMA DO APITO, episódio 1: A polêmica da sopa de tomate
A introdução: "A hospitalidade do Seu Aristeu" - foi publicada dia 11 de setembro.
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Aviso importante: esta novela é de história alternativa, ou seja, passa-se em nossa época mas num mundo paralelo, com desenvolvimento tecnológico menos avançado (os carros são raros, anda-se de carruagem, computadores já existem mas são ainda primitivos e caros).
Na introdução vimos como Carol, Fátima e Andréia chegaram ao Internato Modelo do misterioso Conde Bruxelas e foram acusadas por um inspetor de terem tocado um apito estridente que soou quando elas subiram no bondinho. O estudante George as defendeu com decisão. A briga com o Seu Aristeu deixou uma impressão de estranheza nas garotas.
CAPÍTULO 1
A POLÊMICA DA SOPA DE TOMATE
Ao chegarem ao terceiro andar, nenhuma das três pôde deixar de reparar no bolor nas paredes caiadas de branco sujo, no assoalho de tábuas meio estufadas e nos mosquitos que adejavam pelo ar espesso do local. Fátima, particularmente, sentiu-se algo opressa, abafada pelo ar mofado e pelo aspecto sombrio do imenso corredor, naquele momento vazio e lúgubre. “É estranho”, pensou ela, “como um estabelecimento tão famoso e prestigiado possa ter um aspecto tão mambembe e decadente”.
Carmela entregou-lhes três chaveiros, cada um com três chaves diferentes.
- Esta é para a porta do quarto, esta maior abre o portão da entrada e a menor é do W.C. do andar, se caso estiver fechado...
- Alguém mais terá a chave de nosso dormitório? – indagou Andréia, com propriedade.
- A Administração tem as chaves matrizes de todos os quartos e aposentos, e seus perfis acham-se também na memória do computador.
- Vocês têm um computador aqui? – admirou-se Carol.
- Do que se admira? Este é um estabelecimento moderno. Pode não parecer, mas é.
- No futuro – daqui a uns cinqüenta anos – tudo funcionará à base de computador – garantiu Fátima.
- Bom, vamos entrar.
Assim dizendo, Carmela introduziu as garotas no dormitório, que era bem amplo e um pouco menos feio que o corredor.
As três recém-chegadas puseram-se a circular pelo aposento, olhando as paredes, cortinas, o chão de tacos, as camas, tudo. Repararam no pequeno banheiro.
- É muito conforto, na verdade – admitiu Andréia. – Banheiro particular além do coletivo do andar...
- O Conde Bruxelas esforçou-se para que o seu educandário contivesse a melhor infra-estrutura que pusesse os estudantes à vontade e tranqüilos para
exercer o seu mister que é o de estudar.
Fátima voltou-se de súbito para Carmela, como se aquelas últimas palavras fossem muito importantes para ela:
- Diga, Carmela... esse conde... quem é ele, afinal? Porque se sabe tão pouco sobre esse homem? Onde ele mora?
- O Conde Haroldo Bruxelas é um mecenas, um grande mecenas, um pigmalião... em suma, é um grande homem.
A nenhuma delas escapou o caráter evasivo daquela resposta, e Andréia expressou aquilo com palavras:
- Mas ele mora aonde? Você sabe?
- Não, eu não sei onde ele mora nesse exato momento, se é isso que quer saber?
- Como nesse exato momento? Não estou entendendo...
- Ele é um homem rico, milionário. Pode morar onde quiser, é só o que eu quis dizer. Ele certamente tem residências em diversos países.
Carol, achando que a questão incomodara Carmela, lembrou outro detalhe:
- Ele costuma vir aqui?
- Muito raramente. Afinal ele mantém outras instituições pelo mundo, mas sei que esta é uma das suas favoritas.
- Mesmo assim ele vem pouco? – quis saber Fátima.
- Ele é um homem muito ocupado, como eu sou, aliás, uma mulher muito ocupada. Bem, vou deixar vocês à vontade. Já jantaram?
- Não – disseram as três.
- Conseguem jantar até às nove e meia. Por isso se apressem, no banheiro há água quente ou morna se preferirem para o banho... me dão licença?
- É claro – respondeu Carol.
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- Que mulher estranha – disse Carol, depois que Carmela saiu.
- Você acha isso de todo mundo? – indagou Fátima, divertida.
- Não, é claro que não. Mas já acho que nesse lugar existe muita gente estranha!
- E chegaram mais três hoje... – ironizou Andréia, provocando o riso das outras duas.
Elas tomaram seus banhos, trocaram de roupa e desceram para o refeitório, situado no andar térreo. Preferiram ir pelas deescadas, que eram amplas, com degraus de mármore.
Encontraram facilmente o restaurante, no final do corredor. Era no sistema de bandejão, com fila, e isso elas gostavam. Entraram na fila, já com poucas pessoas pelo adiantado da hora, aparentemente sem chamar muita atenção; a chegada de novas alunas devia ser coisa bastante comum.
- Parece haver bastante variedade... – sussurrou Fátima, que vinha depois de Andréia e Carol.
- Que horror... essa porcaria de novo?
- Argh!!!... A Lenita não perde essa mania...
- É, o jeito hoje é deixar a sopa...
Essas últimas observações, feitas por estudantes que seguiam na frente delas, intrigaram as garotas. Andréia perguntou do que se tratava à garota logo à sua frente.
- É que hoje a sopa é de tomate, uma porcaria. Quase ninguém gosta disso, é um nojo.
- Sopa de tomate! Que maravilha, logo no primeiro dia! – exclamou Andréia, com os olhos brilhando.
- Como disse?
- Eu também gosto – falou Carol.
- Eu idem – apoiou Fátima. – É uma sopa ótima e muito saudável!
- Vocês estão brincando – disse um rapaz vesgo, que entrara na fila depois das garotas. – Como podem gostar de uma coisa dessas?
Como quase todo mundo passara pela sopa sem pegá-la, Andréia já estava se servindo, enchendo o prato de sopa em sua bandeja. Carol e Fátima fizeram o mesmo e as três passaram para os demais acepipes: havia purê de batatas, brócolis, feijão manteiga, talharim em cano, muita carne vermelha que elas não pegaram e filé de peixe. Havia sobremesas, elas pegaram doces e refresco de uva e seguiram adiante.
O vesgo abordou-as:
- Vocês são muito esquisitas. Não comem carne e tomam sopa de tomate em quantidade.
- O que você tem com isso? – perguntou Carol, cujo pavio certamente não era muito comprido.
- É como eu disse. Esquisitas. Esquisiiitas... – e se afastou.
- Vamos. Tem mesa vazia ali – disse Fátima, já também irritada.
Uma estudante gordinha e sardenta olhou-as bem nos olhos:
- Vocês são mesmo do contra, não é? Eu vi a cena com o Aristeu. Pelo jeito vocês três fazem liga, mas é bom não porem as manguinhas de fora...
- Escuta aqui – disse Carol – será que não se pode gostar de sopa de tomate nessa casa?
- Vocês fizeram isso para contrariar a gente, quando ouviram que estávamos reclamando – disse uma mulatinha alta e magra. – E nós não gostamos de atitudes desse tipo.
Fátima tocou o braço de Carol:
- Ignore-a.
O vesgo se aproximou de novo:
- Que gracinha. Vão nos ignorar, é?
- Ignore-o – insistiu Fátima. – Ele é invisível e inaudível. Você não o vê e não o escuta. Ele não existe.
- Tá, Fátima, o problema é que ele pode ser invisível e inaudível mas não é inodoro. O cheiro dele eu estou sentindo e forte.
E assim dizendo Carol apressou-se em ocupar seu lugar à mesa, afastando-se do odorífico.
O caolho ficou branco como vela, e vários estudantes riram com gosto. Um deles, de óculos e mais velho que os outros, não se conteve:
- Ouviu o que elas disseram, Tiago? Ainda bem que amanhã é sábado! Não come perto de mim também, vai prejudicar o cheiro da comida!
Tiago disse uns palavrões mas logo outras pessoas entraram na gozação em torno do seu hábito de não tomar banho.
Mais uma vez elas haviam ganho a parada com sua tranqüilidade e começaram a se ocupar da refeição, inicialmente pela sopa. Uma mulher de avental, rosto meio chinês, se acercou delas:
- Oi, eu sou a Lenita, a dona da cantina. Vocês são novas aqui?
- Somos – respondeu Andréia.
- Eu gostei da atitude de vocês. A sopa de tomates é boa e gostosa, alguns implicam só porque não gostam de legumes e verduras, gostam de carne e
frituras, refrigerantes, tudo que não presta.
- Eu sei, é gente que se cristaliza em maus hábitos – observou Fátima, sorrindo para a mulher. – Mas a sua comida é muito boa!
- Vocês não comem carne?
- Cada uma de nós já decidiu por conta própria que carne vermelha não faz bem ao organismo. Mas nós até comemos quando não há opção...
- Eu também acho o filé de peixe mais saudável, ou carne de ave. Mas não posso fazer tudo o que quero aqui. De vez em quando coloco até feijoada, que muitos adoram, mas eu mesma não como isso. É muito pesado para o organismo.
- Eu detesto feijoada – disse Carol.
- Vocês são pessoas bem marcantes, sabem? E parece que pensam igual entre si.
- Temos muita coisa em comum, mas nos conhecemos faz pouco tempo – disse Fátima.
- Eu gostei de vocês, mas devo alertá-las de uma coisa: aqui a gente facilmente faz inimigos. É um lugar estranho por causa disso.
- Não viemos aqui fazer inimigos, mas estudar Letras – Andréia foi taxativa.
- Inimigos muitas vezes aparecem gratuitamente, por isso tomem cuidado e gravem bem qualquer um que as hostilize de saída. Já é um inimigo a evitar... a se prevenir.
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Mais tarde, no dormitório e já em trajes menores, elas resolveram conferenciar um pouco. Sentiam-se inquietas, desambientadas.
- O que vocês acham de tudo isso? – foi dizendo Carol, preocupada. – Será que esse lugar está cheio de gente brigona, que inventa motivos para criar caso, que não gosta de recém-chegadas ou sei lá o que? Qual é a filosofia do ensino que se pratica aqui? Os meus pais dizem maravilhas da Faculdade Modelo.
- Isso aqui é muito grande, pode ser que a maioria seja normal e afável. Ainda vamos conhecer os professores... vamos com calma – observou Andréia.
Fátima buscou um objeto em sua bagagem.
- Vai usar o seu caleidoscópio? – inquiriu Carol.
- Sem dúvida. Já é tempo.
Fátima deitou-se na cama que escolhera, recostada em dois bojudos travesseiros, e pôs-se a mover o caleidoscópio diante de seus olhos. As peças coloridas foram se movendo e ajustando dentro do tubo. A garota concentrou seu pensamento em todas as coisas anômalas que vinham acontecendo ao seu redor desde a travessia na carruagem, incluindo o comportamento de Bernardo, as grosserias estúpidas do Aristeu, a ambígua atitude de Carmela, as implicâncias no refeitório só porque elas se haviam servido de uma sopa de tomates, e outras coisinhas como a discrepância entre a fama e prestígio do estabelecimento e o seu estado de manutenção. O que haveria de mais sério, que elas devessem se por em guarda?
Então as formas geométricas no interior do caleidoscópio se cristalizaram em algo definido.
O que você está vendo? – quis saber Andréia.
Fátima hesitou, sem muito ânimo para responder.
- Vamos – reforçou Carol. - O que você vê, Fátima? Você vê alguma coisa?
- Eu...
- E então?
- Não sei... não sei se estou vendo direito...
Andréia arrancou a peça das mãos da amiga e espiou por sua vez.
- Veja você mesma – e passou o objeto à Carol.
A moreninha Carol segurou o caleidoscópio e espiou, como se espia num binóculo.
- Meu Deus – foi tudo o que conseguiu dizer.
- Vocês viram? – indagou Fátima.
Todas tinham visto a figura de uma foice em vermelho.
(Fátima, ficamos sabendo, tem o dom da vidência com o uso de um caleidoscópio. E o que ela viu não é nada tranquilizador. Na sequência veremos como um assassinato acontece no internato e como a diretora acusa as três garotas pelo crime. Entra em cena a Detetive Irina, da Polícia de Investigação.
Em breve:
CAPÍTULO 2
ASSASSINATO NO EXPRESSO DO OCIDENTE)
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