Memórias IV
Para organizar pensamentos e lembranças, escreverei um diário, ou melhor, dois. Um para mim e outro para anotar as lembranças do doador, cujo título será ‘A memória de Doctor’. Iniciarei pela dele, pelo volume de fatos. Minha memória recente, adquirida depois do enxerto, ainda está vazia, comparada com a de Doctor.
Reservarei um horário pela manhã para escrever e terei sempre a mão um bloquinho para registrar lembranças aleatórias que surgem inesperadamente.
Tenho dificuldade em me concentrar, os livros na estante aguardam leitura, e são, para mim, como livros novos, ainda não lidos. Espero que o Doctor tenha lido algum. A maioria mescla ficção e história. Devo ter sido professora, talvez de literatura.
Tenho que aprender a lidar com a situação Abro o guarda roupa e não reconheço os vestidos. O conteúdo das gavetas não me diz respeito, sejam papeis, roupas de cama e mesa, perfumes, maquiagem, sapatos etc.
Sinto que minha vida se partiu. O passado de Doctor, agora me pertence e o presente esta sendo construído aqui e agora. Renasci com a cirurgia - 11 de setembro. A minha idade atual é a soma de todos os dias, a partir desta data.
Estou em quarentena, em casa. Saio apenas para os exames de imagem no hospital. Uma ambulância me transporta. Ida e volta.
Deixei com um de meus irmãos uma procuração para administrar meu patrimônio e resolver qualquer questão. Transformou-se em meu tutor, ou curador.
Os primeiros dias foram caóticos. Dores de cabeça, confusão mental e um vazio existencial.
Esquizofrenia.
continua