O FANTASMA DO APITO, Prefácio e Introdução: A hospitalidade do Seu Aristeu

 

Aviso: esta novela pertence ao gênero "história alternativa", ou seja passa-se no nosso mundo como se a História a partir de certa data apresentasse um desvio (no caso a Primeira Guerra Mundial não aconteceu e a tecnologia avançou bem menos) ou se fosse na verdade um mundo paralelo.

 

O FANTASMA DO APITO

 

Miguel Carqueija

 

Prefácio: Marcello Simão Branco

 

Posfácio: Glaucia Ribeiro Lira

 

HISTÓRIA INICIAL DO UNIVERSO DA LIGA MUNDIAL

 

O fantasma do apito

 

Um Autor com Identidade

 

Marcello Simão Branco

 

 

Três novas estudantes chegam a um castelo ao cair da noite. São recebidas com inegável má-vontade e descortesia por parte dos recepcionistas. Ao fundo, ouve-se um misterioso som de apito. Assim é o ponto de partida insinuante da novela O Fantasma do Apito, do escritor carioca Miguel Carqueija.

 

Misteriosos assassinatos passam a acontecer no castelo, que na verdade serve como uma escola-modelo. E no centro dos acontecimentos estão Andreia, Carol e Fátima, as três novas alunas do educandário.

 

Neste novo trabalho ficcional Carqueija demonstra desenvoltura com a construção do enredo – que se situa entre o suspense e o sobrenatural –, com a criação e aprofundamento das personagens e com o desenrolar da trama. Cheia de reviravoltas e surpresas, que prendem o leitor a cada fim de capítulo. No mais tradicional e eficiente recurso do folhetim.

 

Há uma certa novidade temática também, pois causará certa estranheza a você leitor, como algumas situações que se passam de forma diferente neste mundo criado pelo autor. Sem detalhar demais, apenas adianto que chama a atenção o fato de que embora a história se passe em nossa época, o avanço tecnológico tomou um rumo diferente.

 

Mesmo com esta nuance, Carqueija está à vontade em escrever este tipo de narrativa, pois é um dos escritores brasileiros vinculados à FC&F com mais experiência em aventuras infanto-juvenis com ambientação e efeitos fantásticos.

Além disso, há a mistura de um cenário aparentemente gótico, cercado por uma floresta sombria e misteriosas mortes que servem como um bom pano-de-fundo para a exploração de uma de suas temáticas mais recorrentes e bem-sucedidas, qual seja, o papel de protagonismo exercido pelas personagens femininas.

 

Já é célebre na bibliografia do autor, a presença de mulheres fortes, decididas, altruístas e com um quê de saudável ingenuidade, que lutam por seus direitos e ideais – ou daqueles que lhes são próximos – custe o que custar.

 

Rapidamente me recordo de suas personagens, como Neblina, Ninja, Esfinge Negra, Astra, Ilde e tantas outras. A elas se junta agora as figuras das três estudantes e da policial, Irina.

 

O Fantasma do Apito é uma história leve, descontraída e com situações surpreendentes, que pode ser lida de uma vez só ou com suspense crescente, entre um capítulo e outro.

 

Miguel Carqueija demarca com mais este trabalho de ficção e aventura, voltado para jovens – mas que adultos podem ler com prazer – seu estilo e personalidade. Goste-se mais ou menos de seus temas, dos valores que defende e do estilo de sua prosa e de seus personagens, é inegável que o autor tem uma marca e identidade própria. O que, por si só, lhe confere um lugar de destaque dentro do cenário brasileiro de ficção científica e fantasia.

 

 

Marcello Simão Branco é jornalista, de São Paulo, pesquisador de ficção cientifica e editou por anos o fanzine “Megalon” que inicialmente era em papel e depois foi colocado no meio digital.

 

INTRODUÇÃO

 

A HOSPITALIDADE DO SEU ARISTEU

 

​​​

Era uma noite tempestuosa e fria aquela, quando a carruagem estacionou no parque situado na esplanada do castelo, cuja estrutura se destacava medonhamente nas trevas. As três garotas encapotadas saltaram do seu interior, segurando as suas malas, e o condutor, homem enrugado e de aspecto rijo e feroz indicou-lhes o funicular:

 

- Normalmente há gente por aqui para recepcionar as recém-chegadas, mas vocês tiveram que escolher a pior das horas...

 

Elas se entreolharam, já com os guarda-chuvas abertos, e a mais alta e magra, cuja expressão, como as de suas colegas, parecia dizer “o que é que o senhor tem com isso?”, respondeu com uma pergunta:

 

- E o senhor, o que vai fazer? O tempo está muito ruim para os seus cavalos, coitados...

 

Pelo modo como ela falou, devia estar se lixando para os incômodos do próprio carruageiro, contanto que os pobres dos cavalos estivessem bem. O homem respondeu secamente:

 

- Passarei a noite aqui. Temos abrigos, em casos como esse. Afinal, a companhia tem uma longa tradição de bons serviços à casa do Conde. Good night, meninas...

 

Ele tocou os cavalos e a carruagem se afastou lentamente, enquanto as três garotas, ainda paradas, aguentavam a chuva:

 

- Que homem estranho, esse seu Bernardo... – disse Carol, a mesma que se preocupara com os cavalos.

 

- Vamos logo para o bondinho, ou ficaremos ensopadas com todos esses capotes – observou Andréia, a garota negra e baixa.

 

- É, vamos – concordou Fátima, a loura de olhos verdes. – Vamos viver nossos últimos minutos de aventura em comum...

 

Carol admirou-se:

 

- Do que é que você está falando?

 

Fátima sorriu, os olhos brilhando:

 

- Durante horas, desde o Rio de Janeiro, ficamos juntas sem nunca nos termos conhecido antes, e durante esse tempo partilhamos nossas vidas e nossas experiências passadas, no pequeno mundo da carruagem, e agora vamos nos diluir num mundo bem maior, entre dezenas ou centenas de pessoas, e já não vai ser possível nos darmos mutuamente a mesma atenção...

 

- Epa! – admirou-se Andréia. – Você é muito filósofa!

 

- Filosofia de botequim, isto sim. Vamos logo!

 

As três se dirigiram ao bondinho, uma estrutura predominantemente azul e que parecia aguardá-las sob o aguaceiro, inteiramente vazio. Não havia, naturalmente, necessidade de um condutor, pois o funicular podia funcionar como um elevador automático.

Carol por um instante observou a Lua que surgira por uma nesga das nuvens, e assumiu uns ares sonhadores:

 

- É noite de lua cheia. Isso quer dizer que as criaturas malignas – vampiros, lobisomens, lamias, sacis, zumbis... – estão em grande atividade. Ainda mais com esse temporal, é claro!

 

- Você é doida – respondeu Andréia. – Entremos!

 

Fátima abriu a porta envernizada do vagão e deu passagem para as companheiras, entrando ela própria a seguir. Ajeitando-se no banco, deixaram seus guarda-chuvas no porta-chapéus em frente, e Carol acionou o movimento ascensional. O veículo pôs-se a mover com um certo ruído, que logo em seguida abrandou. Em poucos instantes o funicular foi se erguendo, acompanhando a elevação dos trilhos, que logo se afastaram do chão e ganharam altura. Evitava-se assim a subida pela encosta demasiado íngreme.

 

Andréia bocejou:

 

- Ai, não consigo me conformar em começar minha vida na Faculdade Modelo assim fora de hora, só porque meus pais me retardaram ao máximo que puderam! O resultado é que nós não poderemos nem confirmar nossas inscrições hoje!

 

- Mas eu acho isso bom – observou Fátima, serenamente. – Não nos teríamos conhecido em circunstâncias tão especiais. E podem crer que seremos grandes amigas neste estabelecimento.

 

- Você acha?

 

- Você duvida? Há coisas que estão no destino... como o fato de termos tomado o mesmo carro, e escutado as mesmas fofocas do mesmo carruageiro... o que teria desanimado a maioria das alunas, mas não a nós. Mesmo com todo aquele papo sobre os fantasmas que habitam os velhos casarões...

 

- Fantasmas! – riu Carol. – Isso aqui tem mesmo aspecto fantasmagórico! Vejam como sobrevoamos um pequeno bosque apavorante nessa noite e nessa chuva!

 

- Nós não sobrevoamos. Não estamos voando... – corrigiu Andréia.

 

- Você é sempre tão certinha, tão detalhista? – assim dizendo Carol deu um tapinha carinhoso no ombro da colega.

 

- Esperem... – murmurou Fátima. – Não escutam?

 

- O que, Fátima?

 

- Não parece um apito?

 

- Também estou escutando! – disse Andréia.

 

- Que estranho... longo e agudo, incomoda os ouvidos... e mesmo com o barulho da chuva...

 

- Isso não é hora para ninguém apitar! – explodiu Carol.

 

Fátima, que estava à direita das outras duas, perscrutou as trevas buscando identificar a fonte daquele ruído, mas em vão. Além do mais, o vidro as isolava do exterior. O bondinho aéreo já manobrava para descer na estação do castelo. Uma estação coberta por imensa marquise, e iluminada por luminárias a vapor de sódio. Algumas pessoas lá se encontravam, principalmente estudantes de ambos os sexos.

 

Uma sensação opressiva pareceu dominar silenciosamente as três jovens. Tacitamente, elas emudeceram. Algo parecia pesar no ambiente. Mais tarde, Fátima cogitaria se naquele momento elas estariam tendo alguma espécie de premonição... “um pressentimento”, no seu modo de dizer, “dos acontecimentos tenebrosos que já se emboscavam à nossa espera”.

 

Mas enfim, o solavanco da parada do funicular alertou-as que a pequena viagem chegara ao fim, e que estava na hora de desembarcarem. Saltaram as três, uma após outra, elegantemente, e ao olharem em volta em busca de alguém que as recepcionasse tiveram a surpresa de serem abordadas rudemente por um indivíduo de cara quadrada como um paralelepípedo e feições ainda mais enfezadas que as do “seu” Bernardo:

 

- Confessem! Foram vocês, não foram?

 

Elas fitaram, perplexas, aquele homem de uniforme azul escuro desbotado e feio, que se destacara das outras pessoas.

 

- Não foram? – insistiu ele.

 

- Mas do que é que o senhor está falando? – quis saber Carol.

 

- Não se faça de inocentinha! Sabe muito bem do que eu estou falando! Vamos, mostrem!

 

Elas se entreolharam, sem nada compreender, até que uma garota cheia de sardas, um pouco mais distante, esclareceu:

 

- O “seu” Aristeu acha que vocês é que vieram apitando pelo funicular!

 

Carol começou a dar sinais de irritação:

 

- Nenhuma de nós tem Q.I. de ameba, senhor Aristeu, se é isso o que está pensando de nós. Aliás, quem é o senhor?

 

- Sua atrevida! Então, mal chegam aqui para estudar e já querem bancar as abusadas, com brincadeiras de mau gôsto e malcriações? Estudantes têm que se manter no seu lugar!

 

Elas olharam em volta e perceberam como vários dos circunstantes se divertiam com a cena, talvez por já conhecerem as idiossincrasias daquele “seu” Aristeu, e por estarem curiosos em ver as reações das garotas. Carol insistiu:

 

- Nada do que o senhor falou respondeu à pergunta justa que eu fiz. Quem é o senhor, para falar assim com a gente?

 

- Quer saber? Eu sou inspetor de classes nesse educandário, e exijo respeito das alunas!

 

- Nós também exigimos respeito – disse Andréia, com decisão. – Também escutamos o apito, e certamente não fomos nós.

 

- Não mesmo? – ele sorriu sadicamente. – Então consentirão, certamente, em ser revistadas. E se eu encontrar o apito certamente vocês três sofrerão sanções disciplinares antes mesmo de se instalarem aqui! Vão aprender a não ser espevitadas!

 

- Ora, chega! – explodiu Fátima, dando um passo à frente. – Eu tenho uma idéia melhor. Como o senhor é, no mínimo, tão suspeito quanto nós do crime de ter apitado alto, vamos nós revistá-lo para ver se encontramos o bendito apito!

 

- O QUE?!!!

 

- Isso mesmo – completou Carol, triunfante. – E pode acreditar que nós saberemos revistar os locais mais imaginosos!

 

Ele parecia não caber mais em si de tanta raiva, e vociferou:

 

- Não pensem que vão me desrespeitar por serem carinhas bonitas e filhinhas de papai! Eu sei tratar pirralhas atrevidas! Gente como vocês eu quebro os dentes! - e assim dizendo ele ilustrou a ameaça, erguendo o punho direito fechado.

 

- Não posso acreditar – disse Andréia, falando deliberadamente em voz perfeitamente audível mas dirigindo-se especificamente às amigas. – Mal acabamos de chegar e já arranjamos encrenca!

 

- O que vocês acham? – perguntou Carol, colocando propositalmente as mãos nos bolsos.

 

Fátima, que já tinha um narizinho atrevido, respondeu:

 

- Querem saber? Eu acho que nós três juntas podemos com ele facilmente. E aí, vamos encarar?

 

O homem pareceu ficar por um instante perplexo com a atitude das garotas, mas uma interferência desviou sua atenção. Um rapaz louro e de físico avantajado chegou-se a ele e falou com decisão:

 

- Agora chega, Aristeu. Se você continua com esse abuso com as moças, eu lhe parto a cara.

 

- Como assim? Não admito que me fale assim!

 

- Ora, chega de palhaçada! Você é só um inspetor de alunos, está a serviço de nós, que lhe pagamos o ordenado! Você não é professor e nem pode acusar ninguém sem provas, ainda mais três meninas que acabam de chegar! Você se excedeu ameaçando bater nelas, quem sabe o Conde gostaria de saber deste seu procedimento...

 

- Olha aqui, eu...

 

Mas não pôde completar o que quer que pretendia dizer, pois uma baita vaia abafou a sua voz. Sentindo-se prestigiadas, as três recém-chegadas engrossaram o côro das vaias até que Aristeu, derrotado, afastou-se ainda fazendo uma banana para todo mundo.

 

Elas se acercaram do rapaz louro e o rodearam:

 

- Obrigada pela ajuda – disse Fátima, e seu agradecimento foi reforçado pelas outras.

 

- Não foi nada, sempre gosto de calar a boca de um valentão. Eu sou o George, e vocês?

 

Elas se apresentaram, veio a sardenta e também as cumprimentou, apresentando-se como Lilian, e Andréia pediu um esclarecimento:

 

- Aquele homem... ele costuma fazer essas coisas?

 

- Ele é um abusado – esclareceu George. – Mas não se preocupem: é tudo questão de colocá-lo no seu lugar!

 

Uma mulher jovem, porém bem mais velha que as três amigas, achegou-se ao grupo:

 

- Desculpem interromper, mas vocês seguramente são Andréia, Fátima e Carolina, não é isso?

 

- Somos – disseram elas.

 

- Então me acompanhem, sou Carmela, da Secretaria, e tenho de cadastrá-las e instalá-las. Depois vocês conversam com seus novos amigos.

 

- Está bem – disse Andréia, com seu espírito prático. – Estamos cansadas e logo precisaremos dormir.

 

Elas já se encontravam matriculadas, mas sua efetiva chegada requeria um cadastramento específico, com localização de dormitório inclusive. Ao digitar dados Carmela, que mantivera o tempo todo expressão fechada, observou de repente:

 

- Ah, é bom que saibam de uma coisa: a direção da casa não vê com bons olhos estudantes que desrespeitam funcionários, ou que procuram jogar alunos contra funcionários, espalhar a cizânia e o desrespeito...

 

- O QUE VOCÊ DISSE?

 

Ela olhou para Carol, que fizera a pergunta indignada:

 

- Eu não disse que o “seu” Aristeu agiu bem. Ele já está meio esclerosado. Só estou aconselhando a não se aproveitarem do incidente para ganhar popularidade... obter vantagens... seja lá o que for.

 

- Não acho necessário a senhora nos dizer isso – Andréia foi sêca.

 

- Bom, vamos evitar polêmicas, foi isso que eu quis dizer. Isso aqui é um local complexo, uma estrutura de estabilidade meio frágil... bom, nós aqui temos dormitórios com três camas. Alguns ainda se acham inteiramente vazios. Já que vieram juntas, querem um só para as três?

 

Os olhos delas brilharam.

 

- Certamente – disse Fátima, logo secundada pelas outras.

 

- Está bem. Ficarão na ala oeste, que é a feminina, e no dormitório 26, no terceiro andar. Agora me acompanhem e tragam as suas bagagens!

 

Carol estava contente:

 

- Viu só, Fátima? Afinal nós não vamos nos diluir totalmente!

 

- Que bom! – concordou Andréia.

 

- Do que é que vocês estão falando? – admirou-se a secretária.

 

- Nada, não... nada de importante... – desconversou Fátima.

 

A introdução da novela já coloca as três protagonistas Andréia, Carol e Fátima diante de uma situação de todo desconcertante. Duas coisas enigmáticas: o comportamento indesculpável do Seu Aristeu e a real origem do toque de apito. 

Que mistérios oculta esse estranho colégio?

A seguir leiam nesta escrivaninha:

CAPÍTULO 1

A POLÊMICA DA SOPA DE TOMATE 🍅 

 

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Miguel Carqueija e Marcello Simão Branco (Prefácio)
Enviado por Miguel Carqueija em 11/09/2024
Código do texto: T8149565
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