Gatilho: O Anjo da Morte

Capítulo 1: Avenida dos Sonhos Despedaçados

Ele acordou sem perspectivas. Sua janela refletia o brilho do sol, mas Gabriel se sentia nublado. Imperava o tédio no ar. Ele não queria levantar, se pudesse, afundaria a cabeça de vez no travesseiro e mergulharia em sono profundo, entregue aos braços da morte. Essa era sua definição de paz perfeita. Só assim se evita a encheção de saco de justificativas e cumprimentos do convívio humano. Drama de jovem. Faz sentido, se jovem não tiver drama tem algo errado. É estranho ser bem-resolvido. Gabriel não era, pelo menos, não se achava assim. Cazuza era seu cantor favorito. Justo: ele era exagerado.

Seria mais um dia vivido pela obrigação de levantar do que pelo entusiasmo de aproveitar o agora. Mais um dia de sacudir a poeira e não de estar bem-arrumado. Mais um dia para aguentar e não aproveitar. Mais um dia de "é o que tem para hoje" e não preparar o amanhã. Ser sugado pela vida e não vivê-la. Coadjuvante de si mesmo, antagonista da própria história.

As pessoas vivem a vida gastando mais tempo em cumprir obrigações do que em perseguir objetivos. O resultado é uma sociedade amargurada. E não há antidepressivo suficiente para todo mundo.

Gabriel era assim: vivia mais no "ante" do que no "avante". Avançar, para que, afinal? Não há duende no final do arco-íris. Não há pote de ouro, ele pensava. Tudo que ele sentia era a mágoa de ser frustrado, incompreendido.

Olhou o despertador: 06:10.

-Por que é preciso acordar tão cedo para ir para a faculdade? Isso é pecado! Mas isso é programado: Torturam seu sono, assim é mais fácil implementar a doutrinação. Meu Deus, da onde veio esse pensamento?

Falou bonito, apesar do devaneio.

Escovou os dentes, tomou banho, se arrumou, não tomou café, deixou a ração de seu gato preparada e foi para a faculdade. Da porta de casa para fora, veio a certeza: mais um dia para suportar.

Gabriel via a vida mais como um peso para suportar do que uma dádiva para apreciar. Ele era ateu, mas entendia o simbolismo. Conforme andava para ir para a faculdade, observava as pessoas ao redor. O mundo era colorido, mas ele só enxergava cinza. Não era daltonismo. Ele fez exame de visão quando mais novo e não detectaram nada, estava tudo certo. Seus olhos estavam fora de perigo. Mas então, por que ele tinha a sensação contínua de estar à beira de um abismo? Fosse só isso, tudo bem, já virou rotina. Mas não era.

Nietzsche errou: o abismo não olhava de volta para Gabriel. O abismo era Gabriel. Conflito entre quem era e o que era. Sempre em metades. Nunca se vendo inteiro.

Não era um garoto duas-caras. Vivia buscando a outra face que lhe faltava.

Nem a maldade de Caim nem o destino de Abel. Ele apenas tinha uma dúvida: Quem sou eu?

O estranho da própria pele, dizia o diabo em seu ouvido. Se no outro ouvido, havia um anjo, então hibernou em sono profundo e esqueceu de lhe dizer mensagens positivas, encorajadoras.

O bem sempre está desprevenido, enquanto o mal está sempre acordado, tramando os próximos passos. É por isso que só tratamos do problema depois que a cura se torna inatingível.

-Qual a cura para quem nasceu em pedaços?

A frase escapou, disse sem pensar. Voltou a si. Chegou à faculdade.

De devaneio em devaneio, a gente encontra tudo, até a verdade.

Gabriel não tinha nada de extraordinário para dizer da faculdade: eram os mesmos zumbis de sempre, dormindo praticamente o tempo todo e não aprendendo aula. Quando não dormiam, matavam aula. Iam fumar um baseadinho, transar no banheiro, dar um rolê pelos arredores. Tudo, tudo, menos estudar. Formandos sem informação. Jovens sem instrução. Crateras abertas em contas de pais que vislumbravam um futuro próspero, mas não percebiam que seus filhos assassinavam esse mesmo futuro em um presente desvalorizado.

Gabriel não se incluía, ele era bom aluno. Esforçado, se empenhava, tirava boas notas. Mas no fundo, era covarde. Desejava fazer o que os outros faziam, dar uns amassos em lugar público, transar no banheiro, beijar na boca, não se importar com as consequências, fazer besteiras, correr riscos. Seu maior perigo era estar em segurança.

Seus sonhos não eram seus, eram dos outros. Anti-heroi de si mesmo.

A escolha da faculdade de letras causou atrito em casa. Seu pai, Inácio, era advogado, e queria que o filho seguisse o mesmo caminho. Mas Gabriel era um idealista, sonhador, queria ser poeta

-Poesia não dá dinheiro, Gabriel! Como você vai se sustentar? Autor bem-sucedido é de um em um milhão!

- Pai, é o que eu gosto: escrever. Me deixa tentar.

- Enquanto você morar na minha casa e for sustentado pelo meu dinheiro, não tem direito de escolha. Sua vida é minha!

- Então é assim? Eu tenho que fazer o que você quer? O que eu quero não conta?

- Meu filho, pensa um pouco. Eu sou um advogado respeitado, você é inteligente, vai se dar bem na faculdade de direito, poderá ser juiz, promotor, com meus contatos posso conseguir um ótimo estágio. Seu futuro deve ser traçado por coisas concretas, não depender de sonhos.

- Caramba, você já pensou em tudo. Você já viveu minha vida, antes mesmo de perguntar se é isso que eu quero.

- Gabriel, anjinho, eu só quero seu bem. Sempre. Quero que você tenha todo o sucesso do mundo, todas as oportunidades do mundo. E se tudo der certo, você pode chegar em um lugar melhor do que eu.

- Então é fracasso viver uma vida diferente da sua, não ser como você?

Sem resposta. Inácio balançou a cabeça em reprovação e foi embora.

Quando os pais cobram demais, esperam demais, criam expectativas demais, é sinônimo de fracasso pedir um tempo para respirar. Temos sempre que dirigir na porra do piloto automático! Se o futuro é uma dúvida, perder o presente imediato é uma crueldade.

Se lembre de respirar, disse Platão. E se não disse, está dizendo agora!

Gabriel não disse mais nada. Ele nunca tinha algo a dizer para concluir a discussão, e apesar de tudo, sempre achava que estava errado. A hipótese de decepcionar os pais era um martírio em sua cabeça. Era errado errar seus erros e acertar seus acertos.

Chegou na classe, a aula era de redação. A professora, uma ruiva gordinha de olhos castanhos e óculos de grau, escreveu na lousa o tema: "O que você espera de você daqui a cinco anos?"

Porra! Gabriel não falava palavrão, mas no fundo, dentro de seu amâgo, o diabo em seu ouvido ressurgiu:

" Não espero porra nenhuma!"

O pensamento nasceu e morreu em questão de segundos, deixando como lembrança o arrependimento. Palavrão não é bonito. Sarjetas linguísticas não podem ser ditas. Desrespeito.

Antes o desrespeito oral do que o desrespeito da integridade. Ele não sabia disso.

Olhou ao redor, perdido. Encarou a página em branco do caderno, à espera de ser escrita. E percebeu uma semelhança entre ele e o objeto inanimado em sua frente: assim como o caderno, Gabriel não tinha nada para contar. Talvez nem os próximos cinco anos para viver. Pior. Absolutamente nada para escrever.

Pegou a caneta e foi sincero:

"Espero ser capaz de preencher uma folha em branco daqui cinco anos."

Entregou a folha e saiu da sala.

Será que cinco anos é tempo suficiente para aprender a pensar por conta própria? A dúvida aniquilava Gabriel. Ele era uma dúvida: não sabia viver e nem chegava a existir. Vagava perdido entre o nada. Literalmente nada.

O movimento nos corredores era frenético. Alunos tagarelando, alunos indo para a sala de aula, alunos fugindo da aula, alunos beijando, rostos bonitos, feios, meninas lindas, garotos bem-vestidos, uma miscelânea de universos humanos. Algumas garotas despertavam a atração de Gabriel, mas ele não tinha coragem de se apresentar e puxar assunto. Sempre foi assim. Desde os 13 anos. A perna começa a tremer, as palavras se embaralham, não é capaz de pronunciar o básico e acaba fazendo papel de palhaço. Ele tinha um bloqueio, mas bloqueio contra o que? O clássico chavão de que o não você já tem é a mais pura verdade, mas o que o impedia de correr atrás do sim? E por que não um talvez? Ele olhava as meninas, queria tomar uma atitude, precisava de uma ação, mas terminava sempre imóvel, como uma estátua, sem valor nenhum.

Talvez Gabriel se achasse indigno de ser humano. Sempre via as outras pessoas como superiores a ele, não era merecedor de tê-las em seu redor. Bloqueio de si mesmo. Não jogava vôlei, mas cortava inúmeras jogadas, fazia parte da rotina já.

Havia uma garota na faculdade em especial. Michelle, ruiva da pele alva, olhos escuros. As únicas informações que ele sabia sobre ela era que ela tinha 21 anos e prestava o curso de direito e tinha o sorriso mais lindo que ele já viu. Direito, a profissão de seu pai. Seu pai trabalhava com direito, a garota que o atraía cursava direito, então por que ele era todo errado?

É como a música do Charlie Brown Jr, mas não tem final feliz.

Em meio a multidão de rostos bonitos, ele foi para o banheiro, lavou o rosto, e no espelho, viu o único rosto feio que destoava de todos os outros presentes no local: o seu.

Olhar os outros é mais fácil do que olhar para o próprio reflexo. Nos outros, vemos projeções. Raiva, inveja, ódio, alegria de ter 20 anos, o tempo é um amigo, inspiração, respeito, orgulho. Bem ou mal, vemos tudo que queremos e não queremos ser. Mas quando olhamos para a nossa própria imagem, vemos o abismo de tudo que não somos, a falha e a angústia de ser imperfeito. As projeções não alcançadas, mais fracassos do que sucessos, vontades não realizadas, o fardo de ter 20 anos, o tempo é um ladrão, a ampulheta das possibilidades se esvaindo. A dor de ser o que é.

Inveja é o sentimento que mais acompanhou Gabriel durante toda a vida. Ele era invejoso mesmo, tudo bem. Inveja não é fatal, mas insegurança, sim.

Podia estar tendo uma crise de ansiedade, mal que o acometia desde os 16 anos. Podia estar tendo um tique nervoso, ele era problemático, nada mais justo. Podia estar com medo de viver, a resposta mais óbvia.

Chorou, mas até as lágrimas tinham um preço para sair de seus olhos, nada era de graça. Nem o fardo de se sentir um desajustado.

A realidade de ser invisível.

A aula ainda estava acontecendo, ele deveria retornar para a sala. Mas não tinha vontade. Gabriel tinha que assistir às próximas aulas, teria prova em breve. Prova de faculdade é sempre uma mentira. Nem sempre o melhor aluno tem o melhor destino. Porém, de novo, ele não queria voltar para aquele lugar.

O que fazer: voltar para o mundo e ser um ninguém? Ou ir para lugar nenhum e tentar ser alguém?

Secou o rosto. Definitivamente, não era um bom dia de aula. Saiu do banheiro. Foi embora da faculdade.

Matou aula pela primeira vez.

Foda-se!

Precisava de ar puro ou menos culpa?

O pior veneno da convivência não é a deslealdade, xingamento, crueldade nem nada do tipo. É a comparação. A porra da maldita comparação!

Ser você não basta, você precisa ser o outro. A grama do vizinho é sempre mais verde. A sua grama é sempre mais merda!

Que merda!

Algo inédito em seu cotidiano: estava agindo como um jovem. Completamente irresponsável. Descumprindo obrigações e se lixando para as consequências. Teria algum custo? Ouvir a própria voz custa caro? Gabriel já estava acostumado com o silêncio. É de graça e ensurdecedor. Valia a pena arriscar. Se algo der errado, ele só perderia um dia. Amanhã a rotina retornaria, e ele voltaria ao seu estado de sonambulismo voluntário.

Mr Tambourine Man era uma de suas músicas favoritas: "Deixe-me esquecer do hoje até amanhã."

Da porta da faculdade para a rua, outro devaneio: se fugir do que está programado, estará sozinho. A vida não é gentil com improvisos. Aceitou. Ninguém nunca havia sido gentil com ele antes.

Não tinha dinheiro, cartão, nem celular. Não gostava de sair com o celular, achava perigoso. Tinha medo de ser assaltado, até morto, por causa de um celular. Que ironia: as pessoas na rua roubavam suas coisas e os pais em casa roubavam seus sonhos. O mundo está violento mesmo!

Começou a caminhar, sem destino. Para quem está perdido, qualquer caminho serve, já dizia aquele gato drogado da Alice. Único felino maconheiro!

Gabriel só queria chegar em algum lugar, sentir paz em alguma vez. Quanto mais se afastava da faculdade, mais tremia. Por mais que soubesse o caminho de volta, a constatação de estar fazendo algo "ilegal" o apavorava. Não era capaz disso! Não conseguia! Voltou para a faculdade. Assistiu à aula. Prova em breve. Tinha que estudar. Tinha que estar no controle. Ou melhor, tinha que fingir ter tudo sob controle.

Pagou para ver e quebrou a cara. Tudo bem. Pertencer a si mesmo exige tombos.

Quantos ele evitaria tomar?

A mentira protege, mas enfraquece. A verdade mata, mas fortalece. Qual escolher? O fardo da covardia ou o fardo da consciência?

Eram muitas perguntas para responder e Gabriel não era capaz. Algum dia teria que estar pronto. O grande problema era se ele iria querer estar pronto…

A gente se evita demais e esquece de se permitir.

Pós aula, hora de voltar para a casa. Passou pela sala, pegou um livro, seu gato (Caju era seu melhor amigo, inseparável), e foi para o quarto. O livro era O Apanhador no Campo de Centeio. Se identificava com Holden Caulfield. Era o seu livro favorito quando tinha 15 anos. Hoje, tem 22 anos e continua sendo. Carecia de mudanças.

Dormiu no meio da leitura. Acordar cinco horas da manhã todo dia para ir para a faculdade é cansativo. Caju também dormiu, em seu peito. Mais tarde, acordaria e faria trabalho, arrumaria o quarto, esperaria a hora do jantar e viveria o hoje no amanhã de novo. Ele não era feliz e sabia disso, mas não conseguia fazer nada para mudar o cenário. Figurante, não serve para porra nenhuma, só enfeite de encenação e falsidade.

Até quando iria ser assim?

Não sabia. Sócrates foi o homem mais inteligente da história porque reconhecia a própria ignorância. Tinha consciência de que não somos nada em um universo tão vasto. Mas não saber era exaustante demais para Gabriel. Ele sabia que não sabia de nada. Quando iria saber de alguma coisa?

Quando estivesse disposto para sacrificar sua ignorância…

No dia seguinte, replay. Green Day é a trilha sonora perfeita para sua vida, uma de suas bandas favoritas e faz sentido: ele era apenas um jovem covarde atravessando eternamente a Avenida dos Sonhos Despedaçados.

Linx Bonarde de Oliveira
Enviado por Linx Bonarde de Oliveira em 22/08/2024
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