A CRUZADA DE CATARINA capítulo 4: A face de Judas

 

CAPÍTULO 4

 

 

A FACE DE JUDAS

 

(No último capítulo vimos como Catarina, agora com vinte anos, impediu que a jovem Lena fosse seduzida por Homer Nightgale. No reencontro após sete anos, Catarina revela a Homer a proteção do Anjo da Guarda e desafia o libertino. Veremos agora como Homer verifica o quadro enfeitiçado que envelhece em seu

lugar, a exemplo do quadro que retratava Dorian Gray.)

 

 

Homer poderia, é claro, ter armado alguma coisa como Catarina imaginou. Poderia ter alertado a polícia sobre uma invasão de sua propriedade, ou poderia ter retornado sorrateiramente e procurado segui-las. Mas temia escândalos com o seu nome e, o que é mais importante, o incidente deixara-o chocado e incerto quanto ao que fazer. Já fôra um choque a reaparição de Cathy, a quem ele já esquecera; a revelação de que ela era protegida por uma força sobrenatural, e que estava disposta a destruí-lo, perturbara-o em extremo. Homer tomou o caminho de volta para sua mansão, para reorganizar as suas idéias.

Encontrou Tommy com aquele ar sombrio que parecia ir se acentuando a cada ano que passava com aquele novo amo. O anterior, o tio de Homer, fôra muito diferente. A mansão, é claro, tinha sido herdada, bem como toda a riqueza de Homer, que jamais trabalhara na vida.

— Senhor, a caixa está lotada – disse Tommy, segurando o casaco que o barão lhe estendeu.

— Muito obrigado, verei isso quando puder.

Referia-se é claro à caixa-Cosmonet, por onde fluíam os negócios de Homer, com os anexos televisofônico e postal, este mais raramente usado. Homer era um tanto displicente com as obrigações, mas contava com advogados de confiança, que tradicionalmente trabalhavam para a sua família.

Naquele momento não pretendia tratar da correspondência. Tinha algo muito mais importante na cabeça: olhar o quadro.

Ficava em seu quarto, é claro. Homer não estaria tranquilo se deixasse o objeto em outro lugar, mesmo quando passava muitas noites fora. Afinal, o cofre de parede era aperfeiçoadíssimo. Nada de segredo: todo o segredo estava nas suas impressões digitais. Primeiro havia um quadro grande, uma paisagem alpina, tapando uma boa parte da parede. Retirando-se aquele quadro via-se a porta do cofre.

Nightgale afastou o quadro, apôs o seu polegar no disco digitímetro e acionou a abertura. Então retirou o quadro pintado por Lúpus, que media um metro de altura e estava envolto em lona. Transportou-o até a cama e entregou-se lentamente à tarefa de desembrulhá-lo. Era algo que ele sempre detestava fazer, mas tinha que fazer.

Finalmente afastou toda a lona e, ainda evitando olhar diretamente, depôs o retrato em seu colo. Só então olhou.

Já sabia, é claro, que a figura se encontrava bastante deteriorada. A beleza e a juventude originais haviam sumido. Lá estava um homem já de certa idade, com os laivos de maldade e decomposição moral bastante espalhados pelos traços fisionômicos. Um bom frenologista sentir-se-ia fascinado estudando aquela estampa sinistra. Lá estavam, no franzir das rugas da testa, no decair dos lábios, nas marcas dos cantos dos olhos, na própria turvação do olhar, os sinais crescentes da perversidade, do egoísmo, de luxúria, de cobiça das riquezas mundanas, da hipocrisia.

Aquilo fazia Homer se recordar de uma antiquíssima lenda que ouvira sua mãe contar, quando criança. A lenda da face de Judas. Certo pintor precisava de modelos para um monumental quadro que planejara para a cena da Última Ceia. Era muito exigente, no entanto deu a sorte de encontrar logo um jovem cuja pureza de linhas o indicava para representar Jesus Cristo. De fato, era um rapaz muito jovem cuja expressão, tranquila e imaculada, transmitia algo da serenidade, majestade e dignidade que buscamos imaginar no rosto e no porte de Cristo.

Os demais apóstolos tiveram os seus modelos – São Pedro, João Evangelista, Tomé, todos eles. Com maior ou menor dificuldade, o pintor foi localizando homens que serviam como adequados modelos para os discípulos do Messias. Entretanto, um ficou faltando: o traidor, Judas Iscariotes.

Nenhum candidato satisfazia ao artista. Ele queria encontrar um semblante que refletisse, de forma insofismável, toda a decadência espiritual do homem que atraiçoou o Salvador. Judas deveria ter em si a marca da maldade, do vício, da podridão moral. E o pintor simplesmente não encontrava quem fosse tão asqueroso. Assim se passaram dez, vinte, trinta anos, e o retrato permaneceu incompleto.

O autor já se conformara em deixar sua obra inacabada quando uma noite, passando por uma miserável viela, avistou um sujeito estendido na sarjeta, embriagado, segurando ainda a garrafa. Por um instante os dois se entreolharam – e naqueles olhos injetados, naquela face inchada e vermelha de bebida, naquelas rugas de envelhecimento precoce, naquele esgar diabólico dos cantos da boca, o pintor enxergou a infâmia e a decadência da fisionomia do Iscariotes.

Entusiasmado por aquele espetáculo repugnante – tal é a natureza humana! – o artista acercou-se do rebotalho humano e pediu-lhe para ir posar em seu ateliê. O decaído fez um preço, é evidente, como é evidente que o preço foi aceito. O modelo de Judas tinha afinal aparecido.

O processo levou vários dias, pois o criador do retrato era um perfeccionista. Porém um curioso fenômeno foi se desenvolvendo: dissipados os torpores alcoólicos, o homem, a princípio debochado, foi ficando cada vez mais sério e mesmo angustiado. Por fim, no dia em que o quadro finalmente ficou pronto, ele não se conteve e, presa de uma aflição mortal, entrou numa crise convulsiva de choro.

Apiedado, o pintor abraçou-o e perguntou:

. — Que foi, meu filho? O que é que tanto o aflige? Talvez eu possa ajudá-lo...

— Pois o senhor não se recorda? Não se lembra de mim? Há muitos anos atrás, quando eu era um rapazinho, posei para o senhor... para esse mesmo retrato... eu fui o seu Cristo.

Era uma história de arrepiar os cabelos. Algo como a transformação de Apolo em Quasímodo. Agora, porém, voltando ao retrato de Homer, parecia ter surgido mais um detalhe sutil: um quase imperceptível arregalar dos olhos, combinado com uma impressão de respiração em suspenso, ou ofegante. Era como se a figura da tela estivesse com medo.

Medo? Ele, o Barão Homer Nightgale, com medo? E de quem? De uma garota?

A sua consciência tentara – como já o fizera outras vezes, em crises de remorso – aflorar à superfície, para tirá-lo daquela vida de infâmias. A própria Catarina tentara convence-lo à regeneração. Mas o orgulho machista falou mais forte. Ser suplantado por uma garota, ele que tripudiara sobre tantas (e como se entregavam fácil) era algo que o enchia de fúria. Homer desprezava as mulheres. Não, pensou, não podia se deixar vencer por Cathy. Mas havia um fator que ele não podia ignorar: a ajuda metafísica que a filha de Jéssica obtivera. Em que condições teria sido feito aquele pacto? Como enfrentar aquilo? Homer pensou, pensou, e afinal concluiu que teria de procurar por Lúpus, a quem nunca mais tornara a ver.

Mas onde estaria agora o mago negro?

 

(As coisas começam a não correr bem para o Barão Homer Nightgale! A interação de Catarina com um guardião espiritual é algo com que ele não contava. Enquanto ele cogita recorrer a Lúpus a sua oponente Catarina obtém novas informações sobre Homer, chegando à conclusão de que o barão manipula sexualmente as pessoas, mulheres e homens, e suas vítimas podem chegar ao suicídio. Ao que parece, Homer gosta de fazer sofrer. E Catarina está disposta a impedir, no que lhe for possível, que Homer faça novas vítimas.

Em breve:

CAPÍTULO 5:

O RESGATE)

 

imagem pinterest: Dorian Gray e seu quadro (o protagonista do romance de terror "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde).

 

 

 

 

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 28/06/2024
Reeditado em 28/06/2024
Código do texto: T8095564
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