CONEXÕES

Capítulo II – O aniversário

Rio de Janeiro, 24 de junho de 2019.

— Bom dia, Fábio! – cumprimento o fiscal da loja onde trabalho.

— São sete e meia, Carolina! A Megera já chegou e está perguntando por você -- ele sorri com cumplicidade para mim.

— Hoje pelo visto não é meu dia de sorte, até mais tarde – sorrio de volta e como meu último pão de queijo.

Bato o ponto e olho para a sala da Megera: está vazia, e dou um suspiro de alívio.

Termino de guardar minhas coisas e sigo para o estoque, meu refúgio de toda a loucura que é a loja – e também a minha vida.

Ao chegar lá, noto pilhas e mais pilhas de caixas esperando para serem abertas e armazenadas. Respiro fundo e começo a desembrulhar tudo da minha seção – sou encarregada de armazenar e repor toda e qualquer peça do setor masculino e infantil da loja.

Modéstia à parte, as seções mudaram bastante desde que assumi, e é o setor que mais traz retorno financeiro para a loja, apesar do foco ser o setor feminino. Isso faz a Megera me odiar ainda mais: ela não tem razão para me demitir, já que os regionais, chefes dela, adoram o meu trabalho. Sinceramente, não faço ideia do por quê ela me detesta. Desde que assumiu a gerência da loja, ela me passa tarefas quase impossíveis de serem feitas, troca meus horários a torto e a direito sem razão alguma, entre outros absurdos.

Limpo a garganta, que está seca por conta da poeira das caixas, e tomo um gole de água. Está um calor infernal aqui, já que o estoque fica no subsolo e quase não tem ventilação. Depois de 40 minutos, finalizo tudo e retorno para a loja. Minhas mãos estão imundas, então entro no banheiro para me limpar. De repente, sinto duas pontadas fortes no baixo ventre que me tiram o fôlego por um momento.

"Acho que o pão de queijo não caiu bem", presumo.

Ao sair, dou de cara com a gerente:

— Ah, você está aí! Preciso que faça todo o remarcado da loja hoje.

— Por quê? Geralmente essa tarefa é dividida entre os responsáveis de cada seção – questiono. A lista de itens para remarcar os preços é enorme só no meu setor, e essa doida quer que eu faça a loja TODA?!

— Mas hoje será somente você, e além disso, quero que reponha a parte de underwear, está vazia.

Olho para ela incrédula com tamanho absurdo e meu sangue ferve. Sinto meu rosto queimar de raiva e faço uma força sobre-humana para não desferir um soco nela.

— O que foi? Você consegue fazer de tudo, não é mesmo? – ela sorri com cinismo. – Se não consegue, me avise, coloco outra pessoa para te substituir em um instante. Termine tudo até o final do dia ou estará no olho da rua!

Ela sai e entra em sua sala, sem esperar uma resposta.

"Ah, então é disso que se trata: ela está testando meus limites para ter uma justificativa para se livrar de mim", concluo.

Inspiro e expiro umas três vezes para me acalmar.

— Preciso desse emprego, não posso desistir de tudo agora – repito para mim mesma.

Ergo a cabeça e sigo para meus afazeres.

Ao final do dia, consigo concluir tudo o que me foi delegado com um sorriso de vitória no rosto.

— Carolina, o relatório das remarcações já saiu: parece que você fechou com 100% de sucesso – informa Emily, nossa backoffice puxa-saco.

— Obrigada. Deixe comigo, vou revisar – pego os papéis.

Na verdade, sigo para a sala da Megera e entro sem pedir licença. Jogo o documento na mesa dela:

— Tudo concluído – digo e saio, deixando-a com cara de tacho. Sei que é mesquinho da minha parte, mas não posso evitar a sensação de satisfação que sinto ao irritá-la. Pego meus pertences, bato o ponto e faço a revista de bolsa com o fiscal:

— Fiquei sabendo que colocou a Megera no lugar dela hoje, Carol! – diz Anderson, o fiscal mulherengo que dá em cima de todas as funcionárias, mesmo sendo casado.

— Infelizmente, não da forma como eu gostaria, Anderson – respondo e, antes de sair da loja, acrescento:

— E para você, meu nome é Carolina!

— Sim, senhora! – ele ri e bate continência para mim.

Balanço a cabeça em desaprovação e vou embora. Ele é gente boa, mas precisa de limites para não acabar confundindo as coisas.

***

É segunda-feira, e o shopping não está muito cheio. Vou para a praça de alimentação e compro uma torta de maracujá, a preferida do meu namorado. Hoje é aniversário dele e quero fazer uma surpresa – mesmo tendo custado o resto do meu salário do mês.

Moramos juntos faz seis meses e nossa relação já tem cinco anos – entre altos e baixos e idas e vindas. Nosso relacionamento nunca foi tranquilo, e cheguei a terminar com ele mais vezes do que posso contar - por causa das diversas traições dele em flagrante, entre outras humilhações.

Mas desta vez será diferente, como ele me disse após ficarmos separados por sete meses. E realmente tem sido diferente... Pelo menos é nisso que eu quero acreditar.

Saindo pela lateral do shopping, esbarro em um cara que fala ao telefone, totalmente desatento:

— Olha por onde anda, quase derrubo a torta no chão! – reclamo.

Ele para e me olha por longos minutos, como se estivesse hipnotizado.

Sustento seu olhar, sentindo uma sensação estranha, como se estivesse sendo magnetizada e ele fosse um ímã. Parece que o conheço há muito, muito tempo.

Ele é lindo: um pouco mais alto que eu, em torno de 1,70 metros, cabelos castanhos escuros e moldados em um coque tipo samurai perfeito. É magro e atlético e se veste muito bem. Lábios finos e rosados contrastam com a sua pele branca. Seus olhos pretos feito breu trazem um olhar penetrante – tão penetrante que me sinto nua, como se ele enxergasse dentro de mim.

— Me desculpa – ele fala por fim, e por alguma razão, sua voz grave e levemente rouca reverbera dentro de mim. Fico arrepiada e uma eletricidade percorre todo o meu corpo.

Meu celular toca: o Uber acabou de chegar para me levar até em casa. Desfaço nosso contato visual e o encanto se quebra.

Vou até o carro e sinto seus olhos em mim. Antes de fechar a porta, ouço ele voltar para a conversa no telefone:

— Oi Holly, desculpe, eu me distraí! O que você disse mesmo?

"Safado", penso ao fechar a porta do carro.

— Falando com a namorada e flertando com outra mulher ao mesmo tempo!

— A senhorita falou comigo? – pergunta o motorista.

— Não, estava pensando alto.

O motorista dá partida no carro e inicia a corrida.

Me recosto no banco e checo as horas: são quase sete e meia da noite. Penso em avisar ao meu namorado que já estou chegando, mas resolvo fazer surpresa.

Além do aniversário, comemoraremos outra coisa: a chegada do nosso primeiro bebê!

Fiquei muito surpresa quando descobri minha gravidez (minha nossa, já faz seis semanas), mas logo uma onda de alegria preencheu meu coração.

"Talvez esse seja o recomeço que estamos precisando", penso acariciando minha barriga. "Qual será a reação dele?"

***

Conforme o carro se aproxima de casa, meu instinto me diz que tem alguma coisa errada e uma onda de pânico toma conta de mim. Conheço esse sentimento: um formigamento começa no fundo do estômago, com uma pontada, e vai subindo até meu peito, deixando todo o meu corpo em estado de alerta. E o pior de tudo é que meu instinto nunca falha.

Desço do Uber e vou na direção de casa. Ao chegar na porta, vejo dois pares de sapato na entrada: um par de tênis conhecido e um par de scarpin vermelho, que não pertence a mim. Minha cabeça começa a doer com o zumbido que soa dentro dela e fico tonta. Respiro fundo, entro na sala de estar e encontro meu namorado aos beijos com a sua chefe.

Derrubo a torta no chão e saio em disparada de casa, tropeço e caio no meio da rua.

Estou ofegante e meus olhos ardem com as lágrimas prestes a cair. De repente, sinto algo quente saindo no meio das minhas pernas e as pontadas de hoje mais cedo voltam com força: quando olho para baixo vejo que uma poça de sangue se esparrama pelo chão.

— Meu bebê... – digo em choque, com a mão na barriga.

Caio em um abismo de dor e desespero. Um som gutural sai da minha garganta, como se eu estivesse sendo dilacerada...

Realmente, hoje não é meu dia de sorte.

Amanda Brasiliano
Enviado por Amanda Brasiliano em 21/06/2024
Reeditado em 06/07/2024
Código do texto: T8090289
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