A CRUZADA DE CATARINA capítulo 2: Pacto com Deus

 

PACTO COM DEUS

 

(Como lembram, Catarina e sua mãe Jéssica foram salvas de um cruel despejo, pela intervenção do Barão Homer Nightgale, que pagou a dívida do aluguel. Entretanto suas verdadeiras intenções eram nefandas, visando se aproveitar da beleza de Jéssica, mulher ainda jovem. Quando Jéssica engravidou Homer a abandonou e quando ela foi reclamar em sua mansão, ele a jogou do alto da escadaria de acesso. Jéssica perdeu o bebê e Catarina, que conseguiu batizar a criança no ventre, prometeu que no futuro iria combater o mal que Homer estava espalhando em São Paulo. Agora veremos a entrada do lendário Frei Jiri na questão.)

 

 

Passaram-se mais dois anos.

Catarina mudara-se com Jéssica para a casa de uma tia em Teresópolis, mas esta pessoa vivia também em circunstâncias precárias. Cathy era boa para fazer amizades e arranjava bicos de babá, de acompanhante para pessoas idosas e até para levar cachorros a passeio. Escrevia contos e vendeu alguns infantis. Ajudava a mãe de todas as maneiras, e de vez em quando mandavam rezar missa por Alberto, marido de Jéssica e pai de Catarina, e pelo pequeno Jorge. E Catarina era muito popular no colégio, embora tivesse uma natureza melancólica.

As tentativas de levar Homer às barras do tribunal frustraram-se num aranzel de complicações burocráticas e de entraves relacionados com a pobreza das queixosas e a riqueza de Homer. A riqueza e as influências. Homer era um homem da alta sociedade, frequentador das colunas sociais, seu nome era divulgado pela cosmonet e pela Rede Espacial de Televisão, andava por eventos importantes, recepções de luxo, nadava em dinheiro. Uma sinistra fama o acompanhava a boca pequena: certas pessoas se afastavam dele, e comentava-se em voz baixa que todos aqueles que se envolviam mais intimamente com aquele homem que não envelhecia, cedo ou tarde pagavam um alto preço.

Catarina se desgostava quando, folheando uma revista ou um jornal, deparava às vezes com a foto daquele abominável personagem, e geralmente de braço dado ou aos beijos e abraços com alguma beldade. Mas apesar de toda a sua repugnância Cathy ia guardando aqueles recortes e guardando os nomes daqueles casos; pretendia verificar algum dia o que teria sucedido, no decorrer do tempo, àquelas mulheres.

Às vezes até pela Lua ou Marte ele andava, mas sempre retornava a São Paulo, onde estabelecera o seu reinado sinistro. E um detalhe que, aos poucos, ia engrossando o banco de dados de Cathy, e que tornava tudo especialmente assustador, estava no curioso aumento no número de suicídios na alta sociedade paulista. Suicídios de homens e mulheres que aparentemente nadavam num mar de rosas, ricos e bem relacionados. Na maioria das vezes podia-se descobrir que, em alguma época de suas vidas pouco antes dos suicídios, esses homens e essas mulheres haviam desenvolvido algum tipo de relacionamento com o Barão Homer Nightgale.

 

 

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— Ainda pensa nesse caso?

— Sim, Ênio... com frequência...

— Já lhe disse, Cathy. Em tais casos, só justiça pelas próprias mãos. Se nós a conhecêssemos naquela época, se vivêssemos por lá, daríamos um jeito nele.

— Nem pense nisso, Ênio. Isso de olho por olho já passou, é antes de Cristo. Não quero vingança.

— Mas então...

— Espere!

Sentados no sofá, Cathy e seu colega assistiam ao noticiário da holotv. Algo chamara a atenção da moça:

— ... como sempre, inúmeras pessoas simples procuram Frei Jiri para confissão e aconselhamento, ou simplesmente para vê-lo. O carisma desse velhinho de barba branca é algo que desafia a lógica de um século racionalista. É interessante notar que também pessoas mais cultas e de maior posição social procuram Frei Jiri...

— Sabia que ele está em Teresópolis?

— Não, Ênio. Não acompanhei...

Os pensamentos começaram a dançar na mente de Cathy. Pela segunda vez ela sentiu a misteriosa locução interior:

— Procure-o.

A repórter continuava explicando que o frade andarilho tinha-se hospedado no Convento dos Franciscanos, na Várzea. Cathy, absorta com a notícia, olhava as imagens de Frei Jiri... até que ele sumiu, e começou o noticiário de esporte.

— Olha só – disse Ênio – o treino da seleção está uma piada. Aposto como desse jeito...

Mas Cathy não o escutava.

 

 

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Para falar com Frei Jiri só havia um meio: entrar na fila da confissão. Enquanto houvesse a legião de penitentes, era impossível abrir uma brecha até ele.

Cathy aguardou em pé mais de duas horas até chegar a sua vez de se ajoelhar no confessionário. Aí desligou o celular e aproximou o rosto da grade, por onde mal vislumbrava, na penumbra, o rosto do ancião:

— Frei Jiri, eu preciso falar com o senhor, preciso muito, mas não é para confessar...

— Minha filha, eu estou atendendo em confissão...

— Eu sei, Frei Jiri... mas procure compreender... há um homem... o Barão Homer Nightgale... já deve ter ouvido falar dele... que está fazendo um mal imenso à sociedade. Eu acredito que ele fez pacto com o diabo. Ele não envelhece... é extremamente bonito... ele leva as pessoas à loucura, à degradação e ao suicídio... ele engravidou minha mãe e não quis assumir, e depois matou o bebê ainda no ventre, com a maior frieza... Frei Jiri, esse homem tem que ser detido, antes que seja tarde... antes que alguma coisa muito ruim venha a acontecer...

— Minha filha...

— O senhor precisa me acreditar. Eu escutei uma voz... no meu interior... que me disse que eu devia combater esse homem. Como eu não sei, mas essa mesma voz me disse para procurar o senhor.

Frei Jiri procurou pensar rápido. Estava acostumado a lidar com pessoas de tendência histérica, visionários que se julgavam portadores de revelações e de missões sagradas, excentricidades de toda sorte. A garota não parecia nervosa; a solução seria convencê-la a ir embora, para não retardar a fila dos confidentes. Assim pensando, o sacerdote abriu a portinhola do confessionário e disse a Cathy para se levantar. Frei Jiri se pôs de pé, saindo do confessionário. Cathy também se levantou e encarou-o.

E então ele viu.

Havia um halo de luz em torno de Catarina. Uma luz branco-azulada emanava de todo o seu corpo, tornando-a especialmente visível naquele ambiente semi-escuro. Muitas pessoas se encontravam no templo, mas, fora o frade, ninguém se dava conta do fenômeno.

Frei Jiri adaptou-se à situação. Também conhecia coisas extraordinárias e reconheceu de imediato o significado daquilo. Sabia agora que devia levar a garota a sério.

— Eu tenho que falar com você em outro lugar, com mais calma. Pode me procurar amanhã às três da tarde? Não marcarei confissões.

— É claro que posso, padre.

— Então está combinado. Mas não deixe de vir, porque foi Deus quem a enviou.

— Meu nome é Catarina – disse ela, e se retirou.

 

 

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O dia seguinte era um domingo. Catarina foi pontualmente ao convento e pediu na portaria para chamarem Frei Jiri, observando que tinha hora marcada.

— Ele já deixou seu nome aqui – disse o porteiro, e discou o bip do religioso. Em seguida Frei Jiri apareceu, pois aparentemente já estava à espera.

Catarina foi ao seu encontro e beijou-lhe a mão.

— Vamos para o bosque – disse o frade. – Precisamos de solidão.

Foram caminhando pelos jardins, que pouco a pouco assumiam o aspecto de um pequeno bosque. Cathy vestia-se simplesmente, com calças azuis, blusa branca e mocassins informais; o frade vestia-se ainda na tradição de Frei Damião, com seu hábito escuro e sandálias franciscanas. Caminhou devagar e em silêncio, e isso começou a incomodar Catarina:

— Padre, eu preciso lhe contar o que houve.

— Você vai contar. Vamos sentar naquele banco.

E Cathy contou tudo. O desastre que matara seu pai, a miséria, as sucessivas mudanças, o aparecimento de Homer travestido em samaritano, e finalmente a cena terrível da escadaria.

— Eu sabia que, em artigo de morte e mesmo no ventre, qualquer pessoa pode batizar.

— Então você batizou seu irmão. Foi um gesto abençoado.

Ela contou o resto da história e as suas pesquisas.

— Existe algum mistério tenebroso em torno desse homem, Frei Jiri. O poder que ele exerce na sociedade é imenso e assustador. É como um câncer devorando a sociedade paulista, e atinge outros locais também. Quem é esse homem e por que faz essas coisas? E o que eu devo fazer?

Frei Jiri se ergueu.

— Está na hora de lhe revelar uma coisa.

— Como, padre?

— Venha.

Foram andando pela grama, até que Frei Jiri parou perto de uma árvore bem provida de galhos e folhas.

— Diga-me, Catarina, está ciente dos invisíveis que nos acompanham?

— Os anjos da guarda? Sim, padre, eu creio neles.

— Crê que você tem o seu anjo da guarda?

— Acredito, padre.

— Já o viu alguma vez?

Catarina arregalou os olhos de espanto.

— Não, frei Jiri... isso nunca... é possível?

Ele ergueu a mão esquerda.

— O sol está naquela direção. Cuidado, não o focalize diretamente. Focalize aquele galho mais comprido, as folhas, e logo abaixo. Olhe.

Catarina virou-se e olhou – e caiu de joelhos.

Frei Jiri obrigou-a a se levantar: a jovem tremia sob violenta comoção.

— Não se ajoelhe. Você não é serva dele. Ele é quem a serve. Ele protegerá a sua honra. Você vai lidar com o homem que carrega em si a maldição de um Don Juan ou um Dorian Gray: o homem que seduz e destrói. Mas agora você pode ver o seu anjo e isso a fortalecerá. Não tenha medo: você tem uma missão a cumprir.

Abraçada a Frei Jiri, que a enlaçou paternalmente, Catarina estremecia convulsivamente e chorava copiosamente.

 

(O poder sobrenatural demoníaco que até aqui vem garantindo as sucessivas vitórias do Barão Homer Nighthale na alta sociedade paulista parece ter encontrado um poder oposto à altura: Catarina Freitas, agora adulta, recebeu de Frei Jiri o dom de enxergar seu próprio Anjo da Guarda e falar com ele, além de se tornar imune a ataques de natureza sexual. O pacto com Deus estabelecido por Cathy anuncia o início de um grande confronto entre o Bem e o Mal. Acompanhem nesta escrivaninha, em breve, a sequência:

CAPÍTULO 3

CATARINA DÁ INÍCIO À CRUZADA)

 

imagem pinterest/freepik

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 18/06/2024
Código do texto: T8088797
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