A CRUZADA DE CATARINA, capítulo 1: Golpe do destino

 

Na introdução desta novela vimos como o jovem Barão Homer Nightgale, decidido a viver para sempre, obtém com o bruxo Lúpus um quadro onde sua figura assumirá o seu envelhecimento, como o retrato de Dorian Gray. E assim, com a assistência do feiticeiro, Homer assume um pacto com o Mal. Agora veremos como surgem na história a jovem Catarina Freitas e sua mãe Jéssica. 

 

CAPÍTULO 1

 

GOLPE DO DESTINO

 

 

O sol declinava avermelhando um céu parado e abrasador, salpicado de nuvens ociosas, que pareciam longínquos e gigantescos flocos de algodão flutuante. A pequena de cabelos compridos e escorridos, negros como alcatrão, subiu correndo a escada externa de madeira que levava ao sobrado, sobraçando a sua pasta de livros e cadernos:

— Mamãe! Eu cheguei! Liberaram a gente mais cedo hoje... mamãe! Que houve?

Debruçada sobre a mesa, uma mulher jovem estava debulhada em lágrimas, rosto vermelho, afogueado, uma expressão de extrema angústia no olhar:

— Catarina... eu... oh, meu Deus! Meu Deus! – e cobriu o rosto com as mãos, sacudindo a cabeça em desespero.

Por um instante a menina de dez anos ficou a olhar estupefata, ora o cachorrinho pardo que fitava intrigado a sua dona, ora a mulher que parecia mergulhada em angústia indizível, que não conseguia expressar com palavras. Uma súbita compreensão atravessou como um relâmpago o cérebro da pequena, que correu ao encontro da mãe:

— Mamãe! O papai! É o papai? Que foi que houve com ele?

 

 

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Dois anos depois.

— O senhor deve nos dar algum tempo – dizia Jéssica, à porta de uma casa modesta, de frente de rua.

O Senhor Jack Coelho, com seu terno rendado de seda chinesa, apontou, com sua bengala cravejada de joias, o aerocarro modelo Turbina:

— Tenho muitas despesas. Só esse carro consome mais de duzentos virtuais por mês. Tenho minha família e meus empreendimentos. Se ficar fazendo caridade em breve eu estarei pedindo esmola, e não a senhora.

Uma garota de cabelos negros e compridos abraçou-se a Jéssica:

— O que está dizendo? Minha mãe não está pedindo esmola!

— Não se meta onde não é chamada! Já estou farto de aturar parasitas!

Jéssica começou a soluçar.

— Mamãe! Mamãe! Pare de chorar!

Catarina voltou-se para o algoz:

— Ninguém é parasita! Mamãe trabalha duro e eu vou trabalhar também para ajudar, nem que eu saia da escola! O senhor aumentou muito o aluguel, como quer que ela pague?

— Ora, se vocês não têm dinheiro que vão morar na favela!

Anoitecia, mas ainda estava um pouco claro; entre as pessoas que passavam e que, admiradas, paravam um pouco ou retardavam o passo para prestar atenção na cena, havia um rapaz extremamente bonito e vestido com total elegância, que após diminuir os passos parara simplesmente a pouca distância. Escutou a troca de palavras e por fim, não se contendo, aproximou-se do trio:

— Basta, meu senhor!

— Hein? Quem é o senhor?

— Sou apenas um cidadão que escutou as ofensas que o senhor lançou contra uma mulher indefesa e sua filha, humilhando-as publicamente, como se não bastasse a sua posição de poder. O senhor deveria se envergonhar!

— E que tem o senhor com isso? Cuide da sua vida que eu cuido da minha. É a mim que elas devem!

Um fenômeno estranho e invisível, na sua verdadeira essência, deu-se paralelamente ao incidente. Agarrada ao braço da mãe, a adolescente Catarina observou com atenção aquele inesperado paladino: admirou-lhe a beleza exuberante, a força física, os cabelos castanhos, cor de couro envernizado, os olhos verdes fascinantes... e algo como um calafrio passou pelo seu corpo. Catarina mordeu o lábio inferior, chegou-se à mãe com mais força, e uma sensação de terror, completamente incompreensível, tomou conta dela; e uma pergunta absurda explodiu no seu íntimo:

“Meu Deus! O que há com ele?”

Entretanto o áspero diálogo continuava. O recém-chegado retirou sua carteira do bolso interno do paletó e ripostou:

— Pois bem! Já vi que a sua linguagem é a do dinheiro! Eu pagarei a dívida desta jovem... que só ela é a devedora, enquanto o senhor tem a baixeza de atribuir dívida à adolescente.

— Tal mãe, tal filha! Tudo uma ralé...

O desconhecido deu uma bofetada no Sr.Jack, atraindo alguns aplausos.

— Como se atreve? – o senhorio estava possesso.

— Cale-se! Eu sou o Barão Homer Nightgale. Aqui está o meu cartão. Isso foi para que você aprenda a respeitar as mulheres... agora prepare um recibo para que eu lhe pague. Aproveite que eu estou de bom humor, porque eu posso acusá-lo de constrangimento ilegal e aí você nem recebe nem consegue efetuar o seu despejo!

— O senhor vai pagar? – Jack parecia esquecido da bofetada.

— Ande logo com isso!

Jéssica interpôs-se.

— Meu senhor... é muita bondade sua, mas... não me conhece, porque pagará a minha dívida?

— Já escutou o meu nome. Qual é o seu?

— Jéssica... Jéssica Freitas... e essa é minha filha única, Catarina.

Homer sorriu. Jéssica fitou, fascinada, aquele sorriso de Apolo, sob o olhar fascinado da filha.

— Agora já nos conhecemos – disse ele. – Portanto, deixe-me ajudá-la.

O Sr.Jack recibou eletronicamente no seu guichê portátil, e Homer confirmou com o seu. Uma cópia eletrônica foi enviada, com AR, para a conta de Jéssica, que não dispunha de recursos para a utilização de caixa pessoal.

— Eu lhe agradeço, meu senhor – disse o Sr.Jack, de cara feia e com a voz totalmente ríspida. – Passe muito bem.

Deu as costas a todos, sem falar com as mulheres, e encaminhou-se para a sua Turbina. Soprando um vapor frio com a sua respiração, Homer observou:

— Patife civilizado. Bem, vocês estão salvas dele por enquanto.

Jéssica, com lágrimas nos olhos, pôs as mãos nos braços de seu salvador e olhou-o embevecida.

— Obrigada, Barão Homer... não sei como lhe agradecer... jamais esquecerei a sua ajuda.

Catarina, mordendo o lábio inferior, numa expressão de perplexidade, não se decidia a abraçar aquele homem. Sentia-se atordoada, com uma estranha e absurda sensação de perigo sinalizando em seu mundo interior, como um silencioso toque de alarme. Então, pareceu escutar uma voz que soava no mais recôndito do seu íntimo:

“Você o combaterá.”

Mas tais vozes íntimas são por demais subjetivas, por demais indefinidas, para que se possa ter certeza a respeito delas. E Catarina sabia que era preciso manter as aparências: viu-se abraçando o desconhecido, e agradecendo-lhe gentilmente e até com sinceridade, pelo favor prestado.

— O tempo dos cavalheiros ainda não passou – disse ele, rindo.

— Barão... o senhor quer entrar para se aquecer um pouco, tomar um chá? Não temos muito a lhe oferecer, mas...

— Obrigado, Jéssica. Eu iria com todo prazer, mas tenho alguns compromissos e não devo me tardar. Mas dar-lhe-ei o meu cartão, podem entrar em contato comigo... e me dêem o seu acesso.

— Nosso acesso é muito simples... eu tenho um cartãozinho.

 

 

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— Você não deve ir vê-lo – disse Catarina.

— Basta, Cathy. O que há com você? Eu sou uma mulher independente, sozinha, que mal pode haver?

— Eu não sei... e nem quero imaginar... mas não vá. Esse homem vai trazer o mal para as nossas vidas, não vá!

— Mas que tolices você está dizendo?

— Eu vi o mal nele, mamãe! Oh, que posso dizer para convencê-la? Você acredita em premonição?

— É claro que não! Isso não faz sentido! Eu acho que você está é com ciúmes de mim! Mas vamos separar as coisas! Você é minha filha, e ele...

— ... é um homem, e bonito, eu sei, mamãe. Esse é o problema! Você não o conhece, não sabe quem ele é, mas o deseja!

— Ele nos ajudou!

— Sim! E sabe por que ele fez isso, mamãe? Porque você é bonita e ele a desejou à primeira vista, por isso ele interferiu na briga! E ele me desejou também, eu senti isso!

— Mas...

— É isso que você quer para nós?

A bofetada estalou no rosto de Catarina. Espantada, ela alisou a face atingida e fitou Jéssica, sem ocultar a perplexidade em seu olhar.

Jéssica abraçou-a.

— Você me desculpe, Cathy. Eu não quis fazer isso.

— Você nunca fez isso antes, nunca...

— Desculpe, meu amor... mas por que você me irritou? Bem, deixe eu ir. Não quero me atrasar.

Depois que ela saiu Catarina sentou-se num banco e fitou Bomer tristemente.

— Ele já começou, Bomer. Já introduziu o mal em nossas vidas.

Catarina aproximou-se da “verônica” emoldurada que encimada uma arca envernizada e fitou a face de Cristo.

— Por favor, impeça-o. Não deixe que ele faça mal à minha mãe.

 

 

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Seis meses depois.

Uma Jéssica com aspecto mais desesperado ainda que na primeira cena, e com o ventre avolumado, sobe a escada de uma residência luxuosa e ampla. De braço dado com ela uma garota de treze anos, cujo semblante, embora tenso, revela um equilíbrio interior bem mais efetivo.

— Mamãe, por favor, se acalme!

— Se eu tivesse conseguido um revólver... se tivesse conseguido...

— Pare de dizer essas coisas! Nós vamos falar com ele!

Mas a empreitada não era tão simples. Tommy, o mordomo neozelandês, informou secamente que o patrão não poderia recebê-las.

— Se ele não me receber eu farei um escândalo aqui mesmo na escadaria! Pode dizer isso a ele!

— Espere, por favor – e ele fechou a janelinha.

Jéssica fitou Catarina:

— Por favor, não me olhe com essa cara de “eu não disse?”

— Eu não falei nada, mamãe – respondeu Cathy, com os olhos marejados de lágrimas.

— Numa hora dessas não aparece um amigo! – gritou Jéssica, batendo o pé no chão. – Porque eu tinha que passar por isso, meu Deus?

— Mamãe! Por favor! Vamos esperar!

E esperaram. Depois de uns quinze minutos, Tommy veio abrir a porta:

— Entrem, mas sejam breves.

O mordomo, com uma cara de sabujo humanoide (bochechas e papadas à farta), retirou-se com gélida dignidade, enquanto Homer surgia do outro lado, com um casaco elegante tipo pinguim e uma longa piteira segura na mão direita. A despeito do vício de fumar, sua juventude continuava impecável.

— Boa noite. O que deseja?

Ele era frio, e nem cumprimentou Catarina. Jéssica avançou em sua direção:

— Sabe o que eu quero. Estou grávida de um filho seu e você vai ter que assumi-lo.

— Não é meu filho e você sabe disso.

— Mas ele é. Oh, por favor, Homer...

— Barão Homer, por favor – cortou ele, lançando uma baforada.

Jéssica perdeu as estribeiras:

— Não era assim quando rolávamos na cama! Você me deixava até chamá-lo de gato e de amorzinho! Onde é que foi parar tudo isso? Ou você faz sempre assim com as mulheres, aproveita delas enquanto lhe interessa e depois as deixa na rua da amargura? Já me contaram que é isso que você faz!

Ele fez um gesto de desdém.

— Por que não faz o aborto? Já lhe falei isso antes. Há médicos que fazem com mais de cinco meses. Se é dinheiro que você quer...

Catarina, até então parada, pulou para a frente e passou adiante da mãe:

— Basta, senhor Homer! Não vai mandar matar o meu irmão! O senhor é sujo, é vil...

Cathy foi lançada para trás, colidindo com Jéssica. Homer recuou a mão que esbofeteara:

— Cadelinha! Bem se vê de quem é filha!

— Não toque em minha filha! – Jéssica avançou e recebeu um forte empurrão, só não caindo porque a menina a amparou.

— Vamos embora, mamãe! Vamos, por favor! – e Cathy foi puxando Jéssica como se ela fosse uma criança. Jéssica forcejava; o barão abriu a porta e apontou a saída;

— Não posso perder o meu tempo com gente problemática. Sou um homem ocupado! Queiram me desculpar, mas volto para os meus afazeres.

— Seu patife! Canalha! Vou colocá-lo na justiça! Vou falar à imprensa! Você vai ver!

— Acho bom pensar mil vezes antes de tentar alguma coisa. Não sabe com quem está lidando!

— Sei sim! É com o homem mais sujo deste país! Mas você é o pai do meu bebê, escutou? Esse menino é seu! Tem que ampará-lo!

Assim dizendo ela se libertou das mãos de Catarina e atacou o aristocrata, batendo os punhos em seu peito.

Os seguranças da mansão já se aproximavam pelos jardins, mas não chegaram a interferir: apenas viram a mulher ser jogada escada abaixo, acompanhando a queda com um grito lancinante. Exclamando “Mãe!”, Catarina correu a socorrê-la e viu o sangue em seu vestido.

— Miserável! – murmurou.

Num assomo de cólera ela galgou os degraus e se lançou por sua vez contra o nobre. Homer tentou jogá-la longe com a mesma displicência com que jogara Jéssica; foi nesse momento que ele teve a primeira surpresa com Catarina. Não conseguiu arrojar de si a adolescente que se atracara com ele. Catarina era forte, surpreendentemente forte. Mas afinal era uma menina de treze anos e, fazendo um esforço maior, o libertino logrou empurrá-la. Cathy desequilibrou-se na borda da escada, do que se aproveitou Homer para chutá-la no flanco esquerdo; a garota voou escadaria abaixo, repetindo a trajetória de Jéssica. Mesmo bastante machucada Cathy encontrou forças para amparar a mãe, ajudá-la a se levantar.

— Vocês são testemunhas – disse Homer aos seus capangas – como essas duas loucas me atacaram. Agora, vocês duas vão embora, ou será pior para vocês!

— Cathy, por favor, me leve daqui... o meu filho... acho que rompeu a bolsa d’água.

— Eu vou levá-la a um hospital. Mas primeiro... vamos lá mais adiante.

Amparando a mãe, Catarina afastou-se da escadaria. Existiam duas escadarias laterais que terminavam em grades junto à entrada principal e afunilada da mansão. Levavam aos jardins, que rodeavam o palacete. Outros palacetes, de paredes limosas, existiam naquela região, e viam-se poucas pessoas na rua. Cathy sentou Jéssica no meio-fio e retirou de sua mochila uma garrafa plástica com água, bendizendo o calor que fazia.

— O que vai fazer? – perguntou Jéssica.

— Não diga nada, não se esforce. Só faça o sinal-da-cruz.

Catarina aspergiu água fria no ventre de Jéssica e pronunciou:

— Jorge: eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

— Meu filho! Meu filho! – soluçou a pobre Jéssica.

— Vamos, mamãe. Vamos procurar ajuda.

Por um momento a brava pequena fitou aquela grande porta que tornara a ocultar o Barão Homer Nightgale.

— Ele não perde por esperar. Você verá, mãezinha.

— Não, Cathy! Pelo amor de Deus! Você nada pode contra ele! Afaste-se dele... ou ele a magoará e muito. Ele é um homem diabólico...

— Eu sei, mamãe. Mas o que ele fez conosco, fará com outras e com outros... só Deus sabe o mal que esse monstro é capaz de fazer. Mas quando eu for adulta, mamãe, eu agirei. Não sei ainda como, mas Deus me indicará o caminho.

— Cathy, não pense nisso! Esqueça esse homem, fuja dele!

Como explicar à mãe sobre a voz interior?

— Não se preocupe por mim, mãezinha... não tenha receio... eu não temerei o mal.

 

 

imagem freepik 

 

 

(Muitas coisas aconteceram neste episódio, onde a adolescente Catarina testemunha o mal que Homer Nightgale fez à sua mãe. E o caso culmina na terrível cena da escadaria. 

Catarina faz então seu juramento de lutar contra Homer Nightgale e dete-lo de alguma forma. 

Nos anos que seguiram Catarina se dedica a pesquisar a vida de Homer e sua sinistra influência na sociedade de São Paulo. E um dia, em Teresópolis, ela encontra o misterioso Frei Jiri, que terá uma grande importância em sua vida.

Em tempo: a Igreja Católica admite, em artigo de morte, que qualquer pessoa possa batizar, desde que utilize água natural, dê um nome à pessoa e pronuncie as palavras rituais. E também admite o batismo de nascituros em risco de morte iminente. Por isso Catarina, vendo que seu irmão morreria no aborto provocado pela queda de Jéssica, tratou de batiza-lo.

Leia no próximo episódio:

CAPÍTULO 2:

PACTO COM DEUS)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 11/06/2024
Reeditado em 14/06/2024
Código do texto: T8083190
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