Memórias póstumas de um homem morto por uma latrina em queda livre - Capítulos 13, 14 e 15
Capítulo 13 - Um homem desconfiado
Durante a aula de Teoria do Jornalismo, notei que Alan parecia estranho. Em relação à aula, ele estava disperso. Sua atenção estava incomum e centrada na tela do seu celular. Só vi ele levantar a cabeça em direção ao professor umas duas vezes. E ele ficava o tempo todo digitando. Era evidente que se envolvia em alguma discussão em rede social.
Em determinado momento, ele levantou e saiu. Mesmo durante essa ação, ele não parou de digitar. Esperei cinco minutos e depois saí. Encontrei ele no corredor. Desta vez, o celular dele estava no bolso.
- Aula chata, né? - perguntei.
- É, cara. - ele respondeu, visivelmente desanimado.
Eu ia perguntar qual o problema. Mas não precisei. Ele tomou a iniciativa de me contar.
- Acho que minha namorada está me chifrando. - ele disse.
- Por que acha isso?
- É o Ricardo.
- Quem?
Alan contou tinha ido com sua namorada, Mariana, a uma festa organizada por esse tal de Ricardo. Ela tinha dito a ele que Ricardo era apenas um amigo de infância. Mas na festa, pareciam bem mais íntimos do que Mariana sugeria. Tempos depois, ele estava tocando no show de jazz em um barzinho quando viu Mariana sair com esse cara.
- Eu queria ir atrás. Só que me senti impotente. - afirmou Alan.
Desde então, ele não viu Mariana pessoalmente. E os dois discutiam pelo Whatsapp. Ela está negando todas as acusações.
Alan tem razão ou seria paranoia de um ciumento? Para usar de uma metáfora, depois do sapato finalmente se encaixar, outro pé também estaria querendo calçá-lo. Meu amigo estaria sentindo ou imaginando o intruso. A namorada demonstrava intimidade “demais” com o seu suposto adversário, o Ricardo. Contudo, é de se perguntar se o ciúme, talvez irracional, não estaria influenciando sua narrativa, o que levaria a um conto tendencioso. Lembra, leitor, do que eu falei do “quem conta um conto aumenta um ponto”? Poderíamos facilmente adaptar para o seguinte: “quando conta um conto, o namorado ciumento aumenta um ponto, ou seja, exagera em retratar a namorada como uma vilã”. Portanto, não posso dar razão de imediato a Alan.
Depois desse devaneio, me lembrei que tinha que responder as mensagens e ligações de Sofia ao meu celular.
Capítulo 14 - Uma mulher desconfiada
Sofia estava furiosa. Pelo cronologia dos áudios, ela foi da preocupação para a raiva. Uma dos primeiros áudios dizia:
- Marcelo, por que não responde minhas mensagens e telefonemas? Retorne pelo amor de Deus!
Outro, pouco depois, dizia:
- Amor, não me deixa preocupada! Diz alguma coisa. Você está bem?
Um outro áudio mostra, com precisão, a transição da preocupação para a irritação:
- Não vou te mandar mais áudios! Você que trate de entrar em contato!
No entanto, ela continuou mandando e manifestando desconfiança:
- Se você estiver com alguma vagabunda, eu vou saber!
Depois de ouvir os áudios, liguei para ela. Tentei uma, duas, três. Ela não atendeu, como se quisesse me punir. Todavia, cinco minutos após a última vez que liguei, ela retornou. Na conversa, disse para ela me encontrar no shopping próximo à minha universidade.
No local marcado, contei tudo: falei da Lei da Serialidade, dos eventos repetidos, do assalto forjado pelo Eric etc.
- Agora tenho certeza que você está com outra! - disse Sofia.
- Não! - respondi.
- Você inventou uma história maluca só para esconder que preferiu dormir com uma puta. Para de inventar bobagem e admite logo!
- É a verdade. Posso contatar o Eric, se você quiser. Além disso, fiz um boletim de ocorrência.
- Em qual delegacia?
- Em uma que fica na Cidade Baixa.
- Vamos lá agora!
- Quê?!
- Vamos perguntar ao delegado. Quero saber se você mente!
- Meu Deus do céu!
Claro que não fomos à delegacia. Aliás, transamos na mesma noite. No entanto, senti que não era a mesma coisa. Ainda percebia a desconfiança exalar de Sofia. Através do sexo a gente consegue notar quando uma mulher está ressabiada. Pensei que tínhamos feito as pazes. Infelizmente parecia que não. É por isso que menciono novamente metáfora do calçado. Porém, nesse caso, não se trata de dois pés tentando se encaixar no mesmo sapato. Só há um pé, mas quando ele anda, algo incomoda, como se estivesse uma pedrinha lá dentro do sapato.
Capítulo 15 - Um trabalho chato
Na manhã seguinte, de cara fechada, Sofia saiu para trabalhar. Entrei em pânico, pois pensei que os eventos estavam se repetindo de novo. Olhei o corredor. Nada de entregador de folhetos. Fiquei aliviado. Aliás, o entregador também não estava na entrada do prédio.
Fui ao trabalho. Na hora do almoço, Eric reclamava da “chatice do emprego” para mim e para Flávio.
- Já estou enjoado disso aqui! - afirmou Eric.
- Todos nós estamos. - eu disse.
- Você não entendeu. Sinto vontade de colocar fogo nisso aqui. Meu tédio está me deixando inconsequente.
Lembrei que Eric ganha muito dinheiro de forma inexplicável. Ou seria explicável? Vamos lembrar que ele chamou um bandido, com uma arma de verdade, para tomar meu celular.
- Cara, você parece ter mais dinheiro do que eu e Marcelo. Acho que você não precisa desse trabalho. - disse Flávio.
- Engano seu. Eu preciso, mas não apenas para ganhar mais dinheiro. - respondeu Eric.
Essa fala deixou eu e Flávio intrigados. A fala seguinte foi ainda mais enigmática e despertou mais curiosidade.
- Imaginem um travesseiro. - disse Eric. - Um travesseiro imundo, velho e fedorento. Então, o que a gente faz? Cobre-o com um tecido novinho. Pronto, é um travesseiro novo!