Memórias póstumas de um homem morto por uma latrina em queda livre - Capítulos 10 e 11
Capítulo 10 - A faculdade de Jornalismo
Mais uma vez usarei da não-linearidade. Em vez de contar sobre o trabalho, pularei da manhã para a noite. Se o leitor quer saber, não aconteceu nada de muito importante na rotina no emprego. O que aconteceu de interessante eu já revelei no capítulo 7: Eric foi o cara que estava por trás do bandido que me roubou. Então, depois do meu encontro com o cara dos folhetos vou saltar para a faculdade de Jornalismo.
Eu estava no segundo semestre. No primeiro, eu estava embasbacado. Porém, naquele momento, eu estava enfastiado. Logo a rotina universitária caiu na mesmice. As aulas eram variações das coisas básicas do jornalismo: lead, pirâmide invertida etc. e tal.
No entanto, leitor, em um belo dia, o ciclo tedioso se quebrou quando se espalhou pela universidade a notícia sobre um estudante de jornalismo que estava desaparecido há três dias.
Capítulo 11 - O aluno sumido
Eu estava na sala de aula, esperando começar a aula de Teoria do Jornalismo. A algumas cadeiras de distância, escutei colegas comentando sobre o sumiço do aluno, que estava no sexto semestre.
- Eu acho que Luciano deve estar metido em alguma falcatrua… - disse um colega.
- Não duvido. Ele é hacker.
O leitor pode achar que estou escrevendo digressões desnecessárias que desvirtuam o foco do meu livro. Eu objeto: não, senhor. O sumiço de Luciano tem relação com a minha morte. Mas não dá para dizer diretamente como é essa relação. É melhor contar a história. E, contrariando os princípios do lead e da pirâmide invertida, vou contar do começo, não do fato mais importante. Afinal, isso aqui é um livro de literatura, não uma notícia de jornal.
Alan, um amigo que estuda comigo na faculdade de Jornalismo, se aproximou. E, claro, ele tocou no assunto que permeava toda a universidade. Era inevitável não conversar sobre isso. Não apenas por causa do mistério acerca do sumiço inexplicável de um jovem aspirante a jornalista, como também pelo fato desse mistério ser capaz de arar a terra para as sementes da especulação e da teoria conspiratória. Todo mundo tinha a sua própria teoria por trás do desaparecimento. Do zelador aos professores, cada um com suas ideias. Algumas eram mirabolantes. Outras faziam algum sentido.
- Já sabe, né? - perguntou Alan.
- Como não saber? Só não sei como foi que ele sumiu. Em que lugar ele foi visto pela última vez?
- No quarto. Sumiu, de repente. Coisa de louco.
Alan era um aspirante a jornalista de música. Também era um músico de jazz. Tocava saxofone e pensava alto. Queria ser tão bom quanto o grande John Coltrane. De vez em quando, imaginava demais. Só não conseguia organizar essas ideias para escrever críticas "objetivas" de jazz. Ele queria escrever resenhas de álbuns com o uso de adjetivos e descrição de sensações. Coisas abstratas. Contudo, segundo ele mesmo, a imposição da “objetividade” e do “concreto” pelo jornalismo o atrapalhava. Ele se achava incapaz de produzir críticas “objetivas”. Claro que ele tinha a sua própria teoria em relação a Luciano. Porém, não disse nada para mim.
Vou contar ao leitor o que eu não disse ao amigo na hora. A princípio, não acreditei nessa conversa de “sumiu no quarto, de repente”. A frase “quem conta um conto aumenta um ponto” pode ser uma velha máxima, um clichê, mas não deixa de ser verdadeira. Era bem possível que houvesse uma desabalada diferença entre o primeiro e o mais recente relato sobre o sumiço de Luciano. A história que vai de boca em boca passa por significativas mudanças. E como eu fui um dos últimos a ouvi-la, talvez eu tivesse escutado um relato assaz distinto do que realmente aconteceu.
No entanto, como eu vim saber depois: a história era ainda mais impressionante do que aquela que estava na boca de alunos, professores e outros funcionários da universidade. Foi um caso extraordinário que subverte a máxima citada no parágrafo anterior. Ou seja, no caso do desaparecimento de Luciano, “quem contou um conto diminuiu um ponto”. A história contada pelas pessoas não foi exagerada, foi moderada.
Acredito que o caráter mirífico desse desaparecimento torna a história inverossímil. Era algo que ninguém poderia imaginar que fosse acontecer.