Memórias póstumas de um homem morto por uma latrina em queda livre - Capítulos 1, 2 e 3

Capítulo 1 - Biografia ou Memória?

Algum leitor perspicaz vai se perguntar como eu pude ter aberto as memórias que compõem esta obra. No meu lugar, acredito que qualquer outro hesitaria. No entanto, todas as religiões estão erradas. A única coisa que diferencia a vida pré-morte da pós-morte é a perda do senso do ridículo. É por isso que este livro foi possível. Depois que morri, perdi a vergonha de ser alvo de chalaças. E por isso mesmo vou contar logo o fato principal. Pode rir da minha cara se quiser, leitor.

Fui morto por uma latrina em queda livre, jogada do sétimo andar de um prédio.

Esta obra tem o objetivo de contar os eventos que levaram ao desfecho trágico da minha vida. Portanto, acredito que este livro está mais para um livro de memórias do que para um livro autobiográfico. Acredito que a memória é um recorte de uma biografia. Ademais, não creio que minha vida seria interessante a ponto de se tornar livro. O que torna a minha vida um tanto interessante foi a causa singular da minha morte. Se eu ousasse publicar minha biografia, só o último capítulo dela seria atrativa. O resto deixaria o leitor enfastiado.

Aprendi com Brás Cubas que é uma boa ideia começar uma memória póstuma contando sobre meu enterro. Entretanto, só o imitarei nesse detalhe. A vida do defunto autor certamente era muito mais interessante que a minha. Daí a obra dele ser autobiográfica, apesar do “memórias” no título acabar gerando mal-entendido. Então, eu não vou, como ele, contar desde meu nascimento até morte. Repito, trata-se dos acontecimentos que levaram à minha morte.

Vamos ao enterro.

Estava lotado! Mas não pense o leitor que isso significa que eu era uma pessoa querida. Não! Estava todo mundo curioso em saber sobre o “homem que morreu esmagado por uma latrina”. Meu funeral era mais uma atração de entretenimento do que um evento triste. Quem estava sofrendo foi a minha família e mais alguns entes queridos. O resto foi ao local depois de ter lido sobre minha morte em vários jornais. Sim, eu acabei virando notícia até mesmo em um telejornal local.

Meus familiares logo notaram que muitos não estavam ali para “dar pêsames”. Isso os deixou furiosos. A situação piorou quando chegou um repórter do jornal “Barra Pesada”. O sujeito que ficou incomodando minha família para querer saber a marca do vaso sanitário que me atingiu.

- Lá vem o filha da p…! - disse meu pai, o velho Henrique.

Ele não deixou nem o jornalista se aproximar do caixão.

- Você vai embora daqui, vagabundo! - disse meu pai.

- O senhor precisa entender… O meu editor está me pressionando… ele quer saber a marca…

- Você e ele podem ir se f…!

Uma confusão teve início e meu pai acabou pegando o cara pelo colarinho.

- Quer saber a marca? Latrinex! - disse meu velho, antes de dar um soco no repórter, o que gerou indignação contra o autoritarismo que ameaça a liberdade de imprensa.

Sobre as consequências do ato de meu progenitor, discuto depois. Horroriza-me saber que fui morto por uma marca fuleira de vaso sanitário. Se o meu assassino quis matar com algo assim, poderia ter escolhido uma marca melhor!

Capítulo 2 - O jornalista

O jornalista socado pelo meu pai se chamava Eduardo di Paula. 45 anos. Antes de se mudar para Salvador, ele trabalhava no jornal paulista “O Destruidor”. O leitor talvez se pergunte o porquê desse nome. Eu poderia dar uma resposta direta, mas não quero que esse capítulo fique muito curto - vai ficar curto, porém não quero que piore. Além disso, é preferível a resposta concreta em vez da abstrata. Uma explicação que teorizasse a origem do nome da publicação jornalística poderia acabar se tornando algo genérico. Melhor o exemplo concreto, ainda que seja vago. E melhor citar o personagem que o título deste capítulo remete, pois ele estará no centro das práticas que motivam o nome do jornal onde ele trabalhava.

Antes deixo claro o seguinte: o que vou relatar agora não é preciso. Os rumores que ouvi vieram com lacunas - aliás, não existe rumor sem lacuna factual. Coube a mim preencher esse espaço vazio. Então vamos lá.

Capítulo 3 - O Destruidor

Acredita-se que a primeira coisa que o editor de “O Destruidor” perguntou a Eduardo foi:

- Você tem celebridades e subcelebridades como fontes?

- Sim, tenho.

- Mais importante: você conhece podres dessas pessoas?

- Conheço!

- Está contratado!

A credencial do jornal permitiu que Eduardo frequentasse os lugares da classe burguesa de São Paulo. Dentro das festas e eventos, Eduardo coletava fofoca, rumores e anedotas envolvendo gente famosa. “O Destruidor” publicava tudo. O jornal possuía um manual de redação que dizia: “se uma fonte afirmar um fato, pergunte a outra para confirmar a informação. Se a outra negar, publique, pois a informação é verdadeira”. O editor do jornal dizia que no meio dos escândalos dos abastados, se outras fontes negam a fofoca, então ela é verdade; porque esse mundo está tão afastado da sociedade que ela serve como um espelho dessa mesma sociedade.

- O espelho reflete o contrário. - disse o Editor a Eduardo, que ainda tentava entender o raciocínio. - Logo, se a negação de fontes de outros setores implica na mentira de um rumor, na alta sociedade, a negação significa afirmação. Entende? O jornalista especializado em celebridades precisa compreender isso ou está condenado ao fracasso.

Mas nem tudo era o inverso. Assim como as demais classes sociais, se alguém difama ou calunia, leva processo judicial. O jornal “O Destruidor” levou tanta condenação por danos morais que acabou sendo arruinado. Eduardo não foi diretamente processado porque outra regra do manual de redação dizia: “não publicamos textos assinados. É para te proteger, jornalista”. No entanto, Eduardo teve que sair correndo de São Paulo porque muita gente o via nas festas e ele costumava dizer coisas que apareciam em seus textos.

A sagacidade dele, porém, foi fundamental para seu sucesso como destruidor de reputações. Era um homem bonito. Provinha das classes baixas, mas sabia se infiltrar como poucos. Foi em festas na Faria Lima que ele aprendeu o linguajar dos investidores. Não demorou para que usasse esses termos para impressionar peruas, coroas e mulheres jovens. Com habilidade inaudita, arrancava fatos constrangedores de várias personalidades e ainda usava disso como chantagem.

E havia nessa relação um paradoxo que agora vou contar ao leitor. Como a elite paulista poderia ter aberto as portas para um jornalista e um jornal que a expunha ao ridículo apenas para vender edições? Ora, porque muitos ali se divertiam com a vergonha alheia. Todavia, chegou um momento em que os abastados perceberam que poderiam aparecer na próxima edição semanal. Isso levou a um clima incomum de paranoia. A queda de “O Destruidor” está diretamente associada a isso.

Ao sair de São Paulo, Eduardo veio em busca de emprego em Salvador. Começou a trabalhar no semanário “Barra Pesada”, um jornal de crimes. O editor de “Barra Pesada” gostava de marcas. Em todo texto sobre assassinato, o repórter tinha que descobrir a marca da arma, da faca ou do vaso sanitário.

Continua....

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 10/05/2024
Código do texto: T8060362
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