A Dança do Cosmo: Filhos de Gaia - Capítulo 2: O Chamado do Mestre

 

O prédio da Torre Sul possuía cerca de mil e quinhentos metros de altura e foi construído em espiral, assim como todas as Torres das Cinco Pontas da Estrela. Era revestida por um material descoberto em escavações da rocha imediatamente abaixo do ponto zero de explosão das bombas termobáricas, no ano 200. Hana batizou esse material de humídeo, em “homenagem” aos seus “criadores”, os seres humanos. Ela fazia questão de dizer, em alto e bom som, que o minério era a coroação da estupidez do homo sapiens:

 

“Os homens e mulheres que povoaram a Primeira Terra nos deram muitos presentes, além de nossa existência e de sua ausência”.

 

O humídeo dava às Torres um aspecto sinistro, refletindo a luz do sol, mesmo sendo fosco, e criando um efeito de “opacidade brilhante” que podia ser visto de longe. A sua presença em meio aos edifícios de metal era como avistar um buraco negro envolto pelas luzes de seu disco de acreção. A estrutura vibrava com intensas ondas magneto-telepáticas, indicando que um emissor da Rede Neural operava em seu interior.

 

O seu cume era uma estrela negra salpicada de manchas brancas dançantes, como nas lâmpadas feitas de lava, que criavam figuras ora bonitas, ora assustadoras. Aparentava não ter janelas, mas tudo o que acontecia do lado de fora podia ser visto por quem estivesse lá dentro. As únicas ranhuras que haviam em sua superfície eram a do pórtico de entrada e a da sacada que dava acesso ao topo. O restante do prédio eta totalmente liso.

 

A cadeira em que Kayi se transportara parou, invisível, há cerca de trezentos metros de altura. Ela aguardava pacientemente enquanto o controle de acesso à Torre finalizava o escaneamento. A central, operada automaticamente desde o coração do prédio, não autorizaria sua entrada no campo interior até que todo seu corpo fosse devidamente averiguado, incluindo seus processos psíquicos. 

 

Após ter sua passagem autorizada, Kayi seguiu lentamente até um grande pátio localizado atrás da Torre. Desceu suavemente, pousando em um espaço vazio. O estacionamento não era mais do que um terreno circundado por uma espécie de cerca feita de feixes de luz monocromática, onde diversas esferas – e alguns quadrados – de diferentes tamanhos e cores estavam dispostos lado a lado, uns levitando, outros presos ao chão.

 

Kayi ficou de pé enquanto o veículo se desconectava de seu sistema nervoso, causando uma sensação de formigamento. A película se desprendeu de sua pele, escorregou para o chão e se agrupou como uma pequena esfera, acomodando-se ao solo.

 

O fim da tarde avançava e o crepúsculo deslizava suavemente pelo céu, tornando-o uma cortina arroxeada escura. Algumas estrelas cintilavam aqui e ali – um fenômeno raro, dada a constante má condição atmosférica. 

 

Por alguns segundos, Kayi estacou. Diante de si estava a Torre Sul, com sua fachada de um negrume tão denso que parecia ser um portal para fora do Universo. Antes de desembarcar estava serena, após viajar na posição de transe e ajustar a Matriz Sentimental para que pudesse dissipar os sentimentos incômodos que o fim – e pior, a interrupção – de uma Jaḍāna poderiam ter causado.

 

Porém, uma ponta de preocupação e ansiedade começou a piscar em sua psique. Ficara tão irritada e desapontada, mais cedo, que não havia parado para pensar sobre o teor do chamado. 

 

Ela falava sozinha, se perguntando por que havia sido convocada – e pior, junto com todos os outros operadores da Torre! Algo ia mal. Bem, na verdade qual era o dia em que algo não parecia ir mal na Primeira Terra? De fato, pelo andar dos acontecimentos não seria possível construir a Segunda tão cedo.

 

Suspirou, abriu e fechou as mãos, e olhou para cima. Há tempos não via um céu tão bonito.

 

A maioria dos dias em Ashen eram cinzentos e depressivos há mais ou menos trezentos anos. Vez ou outra os Kamachiq criavam campanhas para que todos ajudassem a dissipar as nuvens de carbono e enxofre que rodeavam o continente, acumulando-se especialmente na cidade. A medida melhorava o ambiente durante algumas semanas, mas não era suficiente. Sempre restava um pouco de neblina escura e nuvens negras.

 

Porém hoje o firmamento estava especialmente fantástico. Recordando-se dos dias anteriores, ela percebeu que, de fato, faziam algumas semanas que a atmosfera parecia menos densa e tóxica. Não sabia se isso tinha a ver com os rumores sobre o desligamento temporário de algumas máquinas, centrais e indústrias – especialmente da Fábrica – mas suspeitava que sim. 

 

O planeta parecia responder positivamente à interrupção dos esforços para salvá-lo, o que era irônico e preocupante.

 

Caminhando lentamente, Kayi saiu do estacionamento e deu a volta na imensa base da Torre – não encontrando ninguém no caminho – até chegar ao gigantesco pórtico de entrada. Este consistia numa abertura no térreo do edifício, cujo interior era como uma caverna que escondia um abismo. 

 

Para quem estivesse ali, os sentidos indicariam que a única coisa a se esperar ao adentrar lá era cair num poço sem fim. Sempre foi contraintuitivo intencionar entrar nas Torres, e Kayi experimentou o sentimento que assaltava a todos, todos os dias, enquanto atravessava o pórtico: uma insana vontade de sair correndo dali o mais rápido possível.

 

***

 

O que ocorria com o sistema nervoso quando se mergulhava nas trevas da Torre era difícil de explicar, para quem sentia, e difícil de compreender, por quem pretendesse desvendar o mecanismo por trás da experiência. 

 

O corpo era envolto pela escuridão de tal forma, que parecia ser possível poder tateá-la. De repente, a vertigem assaltava os sentidos, acompanhada de um forte enjoo. A sensação, de descer e subir rápido demais e ao mesmo tempo, durava exatos cinco segundos. Em seguida, como se uma mão gentil empurrasse, o indivíduo era projetado para a frente, para o interior daquele mistério.

 

A saída ‘do outro lado’ era ainda mais impactante que a entrada, pois terminava num gigantesco hall, cujo pé direito media cerca de três andares. O teto brilhava em um tom metálico ofuscante e parecia mover-se, como se feito de um redemoinho de platina liquida. Dele se projetavam compartimentos parecidos com câmaras, em formato cilíndrico, que de vez em quando eram sugadas e desapareciam, para logo aparecerem novamente. As paredes internas do edifício continham diversas plataformas e salas suspensas, em diversos níveis de altura, ligadas ao chão por elevadores gravíticos. 

 

O ambiente geralmente estava sempre apinhado de gente andando para lá e para cá, subindo e descendo, entrando e saindo. Porém, ninguém realmente sabia exatamente o que cada um fazia, nem ali nem em nenhum outro lugar da Torre, pois cada programação era específica. Dessa forma, a cena que o recém-chegado vislumbrava seria como a do interior de um imenso formigueiro: pareceria confusa a princípio, mas escondia um ordenamento calculado nos mínimos detalhes, como uma dança cósmica de pura matemática e física corporal.

 

Estar tão acostumada com o característico caos do hall de entrada fez Kayi sentir um arrepio quando o encontrou vazio. Não avistava ninguém. Tudo o que ouvia era o ecoar de seus próprios passos, junto com as batidas rítmicas dos pistões entrando e saindo do teto. 

 

***

 

O enorme salão era dividido por uma série de guichês, que separavam a parte interna da parte externa e cruzavam toda a extensão do andar. Kayi se aproximou de um deles, pôs a mão no visor de reconhecimento e aguardou. Logo em seguida, uma porta ao lado da cabine se desmaterializou, dando-lhe passagem. Desconfiada, entrou na parte interna do saguão.

 

Silêncio. Ninguém a vista. 

 

Kayi deteve-se em frente a um terminal de comunicação que jazia numa parede. Estava entrando no sistema quando, de repente, um robô em forma de orbe alçou voo de uma plataforma cerca de dez metros acima, e desceu em sua direção.

 

Era um Mensageiro, máquinas antiquíssimas e semiconscientes que estavam sempre voando para lá e para cá em quase todo lugar, pois, apesar da Rede Neural ser melhorada e atualizada constantemente, permitindo ser possível comunicar-se com qualquer pessoa num raio de mais de duzentos quilômetros através de ondas telepáticas – ou em qualquer distância, se fosse usada conjuntamente com um terminal do cyberespaço – quase todo mundo se sentia sozinho a maior parte do tempo, necessitando de um pet eletrônico.

 

O Mensageiro, uma esfera azul brilhante sem nada aparente na superfície, parou há alguns centímetros do semblante fechado de Kayi. De repente, dois amigáveis olhos vermelhos e uma boca sorridente, que pareciam ter sido desenhados por uma criança – quando estas ainda existiam – se acenderam no visor. Kayi observou, intrigada.

 

Diferentemente da maioria, ela não gostava de robôs – muito porque a natureza artificial deles lhe causava questionamentos sobre a sua própria. 

 

Ouviram-se alguns cliques antes da máquina começar a falar. Enquanto discursava, sua careta se alterava, com a boca ora se tornando um círculo, ora sorrindo, ora se constituindo unicamente de uma linha reta. Os olhos também mudavam, ora se arqueando para cima, ora para baixo.

 

– Olá! Está atrasada, minha cara. A assembleia já começou! Permita-me escanear novamente seu hipotálamo, para compará-lo com o registro de entrada. Sabe como é, de praxe… burocracia! Essas coisas irritam não é? Mas o que eu posso fazer? Ah! – enquanto falava, o orbe ia de um lado para o outro de uma forma que Kayi achava deveras irritante.

 

Ele emanava pulsos eletromagnéticos, imediatamente absorvidos pelos sensores que ela possuía no corpo, contendo instruções de verificação e conexão psíquica. As informações não a adentravam imediatamente – como no escaneamento da Torre – necessitando que o link fosse autorizado. Ela não os liberou de imediato e manteve-se rígida, observando a máquina.

 

– Quem é você? Onde está todo mundo? Do que você está falando? Que assembleia? – as palavras saiam de sua boca numa torrente, quase no mesmo ritmo da tagarelice do robô. Este, por sua vez, deteve-se e desceu abaixo da altura dela, com seu rosto eletrônico se transformando num ponto de interrogação.

 

– Como assim? Você está por fora desse jeito, moça? – seu rosto se transmutou novamente, com uma sobrancelha arqueada – O mundo está se acabando, para variar, sabia? É… De novo! – agora a careta mostrava uma risada.

 

Kayi, que não suportava a suposta pretensão ao humor daquelas sucatas falantes – como ela os chamava – cruzou os braços e olhou fixamente para o orbe.

 

– Diga-me seu nome, senão não irei autorizá-lo a entrar na minha cabeça.

 

O robô ascendeu novamente, deu uma pirueta e começou a brilhar numa luz azul pulsante. Um holograma apareceu à sua frente, informando seu nome, jurisdição, propriedade e outros dados – até mesmo o número de série.

 

– Eu sou Ik. – o orbe respondeu – Estou hoje na portaria, fazendo um bico! É realmente muito chato, mas como você pode ver, não há ninguém aqui para trabalhar, de modo que minha chefe me orientou a recebê-los. – Na ficha de informações que o robô projetava, constava que ele era propriedade de Hana ‘Ike Mua.

 

A Primeira Consciência! 

 

Kayi arregalou os olhos, surpresa e aflita. Aquela esfera serelepe de senso de humor questionável deveria ter mais de mil anos! A informação deixou-a um pouco desconfortável.

 

Antes de autorizar que as ondas eletromagnéticas do robô sincronizassem com as emitidas pelo seu hipotálamo, transmitiu um comando para a Matriz Sentimental enevoar sua mente com uma fria impessoalidade – essa era a melhor forma de esconder emoções de quem quer que vasculhasse seu cérebro. Ela o fez pois, sendo Ik um assistente de Hana, esperava-se que, em algum canto de sua imensa consciência, a Mestre do Grande Sallāha estivesse a par do que a máquina via e ouvia, ainda que não estivesse prestando atenção.

 

Após sentir uma leve comichão na espinha – sinal de que Ik a escaneava e comparava seus dados com os da central da Torre – Kayi, mantendo a rigidez corporal de uma estátua de pedra, aguardou pacientemente enquanto o orbe piscava com uma luz azul incandescente. Terminada a tarefa, o robô parou em sua frente e sorriu.

 

– Kayi Luna. Oh! Uma Shikkō-Sho! É uma grande honra para mim, reles forma geométrica falante, recebê-la em seu local de trabalho.

 

A máquina, pela natureza de sua programação, tão antiga quanto o mundo, não conseguia ficar quieta – enquanto falava, dava piruetas e saltava de um lado para o outro. Kayi, irritadíssima, concentrava-se para não golpeá-la no ar e esmigalhá-la na parede. A ojeriza era tão forte, que escapou da Matriz e suas ondas foram captadas por Ik, que escarneceu, dando uma piscadela:

 

– Perdoe-me se a chateio! É meu jeitinho sabe… De todo jeito, você está um pouco atrasada… Estão todos na Ilha. Chegando lá, pegue um terminal e vá direto para o link com o Planetoide. Novidades não tão interessantes a esperam, e acredito que mais trabalho a fazer! Ha Ha! Menos dias de folga! Bem, estamos todos ficando loucos, não?

 

Por um instante, Kayi achou que aquilo era uma brincadeira de Herklán, algum tipo de teste que ela deveria passar para se tornar Grãserek. Para ela, era simplesmente inacreditável. Fora interrompida em Jaḍāna e convocada de volta ao trabalho, após acabar de sair de lá, para dar de cara com uma máquina semiconsciente – uma das coisas que mais detestava – e ainda ser zombada por ela! 

 

Desistiu de sustentar a Matriz, pois o esforço drenava muito de sua energia, e acabou deixando escapar de sua psique muitas ondas de raiva. Era estranho e perigoso, afinal, estava lidando diretamente com Hana, mas foi, ao mesmo tempo, aliviante. O cólera que sentia era tal que, por alguns momentos, suplantou até mesmo a incessável angústia do banzo.

 

– Perfeitamente – respondeu ela, dando nos calcanhares e se dirigindo à porta do elevador gravítico mais próximo. Queria sair dali imediatamente, antes que a lembrança de seus tempos de juventude viessem à tona e suas ações da época, por um descuido, se repetissem.

 

Havia conquistado, com muito esforço, a confiança do Pequeno Sallāha de Ashen, que a perdoou de seus repetidos casos de insubordinação e vandalismo de outrora. A pequena Kayi havia sido enterrada, subjugada pela devoção à Mahāna Kārya. Não desejava que ressuscitasse, ainda mais na presença da Protetora de Gaia.

 

Ela ainda ouviu Ik dizer mais alguma coisa, ao qual não prestou atenção, antes de ser puxada pelo elevador, numa sensação que era literalmente a de “cair para cima”. Quem não estivesse acostumado com a tecnologia estaria em apuros, mas Kayi estava familiarizada. 

 

Chegando ao andar em que ficava a Ilha – o décimo quinto – deu um passo a frente, saindo do compartimento, e por um momento observou o lugar.

 

***

 

A Ilha era um gigantesco pórtico de conexão com o cyberespaço, num salão que ocupava o andar inteiro. Possuía cerca de duzentos metros de diâmetro e trinta de altura. Em suas paredes, do chão ao topo, exceto onde ficavam as cabines dos elevadores, haviam escotilhas numeradas. Os alçapões guardavam uma cabine retrátil – carinhosamente apelidada de caixão – onde se podia descansar, mas cuja principal finalidade era conectar-se a rede. 

 

No centro do salão havia uma coluna de fótons, de onde se projetava um holograma translúcido do planeta Terra e do Planetóide Selene – a Lua. O globo terrestre girava lentamente, ora mostrando, ora ocultando regiões que brilhavam em verde ou cinza. Acima dele rotacionava um emblema de uma árvore verde dentro de um círculo vermelho.

 

Caminhando lentamente, Kayi parou em frente a uma portinhola com o número 234, que piscava, sinalizando que estava vazia. Encostou a mão na escotilha para o sistema identificá-la e destrancar a cabine. O seu interior era como o de uma enorme gaveta acolchoada, que convidava gentilmente para que se deitasse. Ao fazê-lo, o mecanismo retrocedeu, fechando-se. O caixão tremeu, com a potência do campo magnético que, gradualmente, aumentava de intensidade.

 

Escuridão. Zumbidos. Agitação psíquica.

 

Kayi teve a visão preenchida por duas barras horizontais, que brilhavam num vermelho vivo, como sangue fresco. Ouviu uma voz abafada. Parecia Herklán, mas não conseguiu discernir o que dizia. 

 

Enquanto era transportada para outra dimensão sensorial, seu corpo desaparecia, desvanecendo-se como uma neblina cinzenta que encontra a brisa da manhã. A consciência flutuava, como um fantasma pairando no relvado.

 

Após algum tempo, de sensações estranhas, uma imagem se descortinou à sua frente: um gramado infinito, cujo horizonte brilhava alaranjado, lembrando o entardecer. 

 

O cyberespaço era como uma forma emulada do cosmo e estar no terminal de entrada era como levitar na superfície da Terra. De fato, ignorássemos a sensação de não possuir corpo físico, navegar ali era como passear nos campos lunares. A paisagem era igual em todas as direções, era possível sentir o vento e ver a grama balançar, mas não descer até o chão. 

 

Na verdade, não havia nada importante ali. O que interessava estava no espaço. O céu da cyberterra era salpicado de estrelas, com imensas luas em primeiro plano e algumas galáxias ao fundo – cada corpo celeste representando um pórtico, onde era possível encontrar os mais variados assuntos e afazeres: jogos, salas de discussão, sessões de indução telepática contendo telefilmes, enciclopédias, e muitas outras coisas. 

 

As galáxias eram hubs que se conectavam a outros nós, fixados nas outras Pontas da Estrela. A maior delas, a única que não se ligava a um local físico, era a Galáxia de Andrômeda: ali se encontrava a Grande Sallāha e parte da consciência de Hana – a outra, todos sabiam, estava ancorada fisicamente em Marte – e a entrada lá era terminantemente proibida.

 

A forma do Planetóide Selene pairava à direita de Andrômeda, em primeiro plano. Kayi focalizou-a. A superfície do satélite imediatamente começou a pulsar em luz verde, indicando que dados eram diretamente dispostos à sua consciência. 

 

Centenas de links rodavam no servidor lunar – em todos os terminais, nas diferentes cidades, a forma da Lua no cyberespaço indicava o hotspot onde se encontrava a matriz dos sistemas automatizados compartilhados e de governo, bem como os da Torre – de forma que era impossível adentrá-lo sem correta instrução. 

 

Era um verdadeiro labirinto. Porém, Kayi havia recebido de Ik um sinal guia, durante a verificação, que indicava o caminho correto. Havia um gigantesco ponto vermelho na superfície do satélite e, ao centralizá-lo, surgiu uma estática, que se transformou no rosto de uma mulher.

 

Era uma gravação de Siffa, secretária de Herklán. Ela dava comandos de verificação, mas Kayi a ignorou e planou em direção ao Planetóide, rejeitando o holograma, que desvaneceu em pequenos pontos luminosos.

 

***

 

– Olá Kayi. Estávamos lhe esperando – disse uma voz.

 

Kayi não enxergou nada ao entrar no link. De repente, uma luz roxa se acendeu no centro do seu campo de visão. O brilho aumentava gradativamente, como se ela estivesse dentro de um túnel, rumando para a saída. Com um estalo, todo o ambiente tornou-se um enevoado de luz prateada, como em uma clareira à luz da lua. 

 

Estava novamente de posse de um corpo, mas seus movimentos eram lentos e pesados. Em seguida, e sem aviso, apareceu sentada numa poltrona alta no meio de um vasto salão sem teto e com paredes cobertas de musgo e trepadeiras, que se retorciam estranhamente. Não conseguia focalizá-las, como se fugissem ou fossem irreais. Ao olhar para cima viu o firmamento infinito, com a trilha da Via Láctea brilhando e pulsando.

 

– Perdoe-me o contratempo, sei que está contrariada. Mando-lhe as melhores vibrações que tenho disponíveis. São como mágica, embora você não saiba realmente o que é isto. – a voz continuou, meio risonha. Possuía um tom feminino, doce e melodioso.

 

Kayi não enxergava quem estava falando, mas sentiu-se muito confortável, como se a abraçassem com ternura e emanassem inibidores de estresse diretamente na sua amígdala, o que fez com que seu semblante desanuviasse. Fechou os olhos e deixou escapar um esgar de prazer, como se atingida por uma droga potente. Após um momento, uma figura masculina materializou-se à sua frente, segurando um telelivro. Refastelada, ela demorou a enxergar quem era. A figura deu dois passos a frente e lhe estendeu o objeto que segurava. Era Herklán, Mestre da Torre Sul. 

 

Ele media dois metros de altura e estava vestido com o uniforme verde-escuro dos Mestres, que cobria toda a extensão do corpo, exceto as extremidades, e dava contornos fiéis à anatomia. Os braços eram circundados, até a altura do cotovelo, por braceletes prateados que os orbitavam sem encostá-los, com luz azul emanando do espaço entre eles e o corpo. Faixas em forma de V preenchiam o tronco, da gola até a cintura, também brilhando em azul. O peito estampava o característico emblema da árvore dentro do círculo, piscando ora em verde, ora em vermelho. O quadril e as pernas eram protegidos por uma grossa cota negra de silício, com fendas que lembravam caminhos de placas de circuito muito antigas, com brilho arroxeado. Era bastante forte e musculoso, aparentando não necessitar de nenhum tipo de arma para se defender. 

 

Contudo, a voz doce e melodiosa que conversava com ela não era a de Herklán. Uma outra figura pairava no ar um pouco atrás dele, descendo suavemente e repousando num patamar mais adiante, de onde materializou-se uma imensa poltrona – mais parecia um trono – onde ela se sentou.

 

Ainda grogue, Kayi não a enxergava totalmente, concentrando-se no rosto barbudo e meio azulado à sua frente, cujos olhos brilhavam seu tom cinza metálico, contrastando com os cabelos ruivos espetados que pareciam ser feitos de fogo, a arder eternamente. Ele pairava rígido, o braço ainda estendido.

 

– Pegue, são suas instruções. – Agora era Herklán quem lhe falava.

 

Ela demorou alguns segundos antes de estender a mão até o objeto. Era uma pequena haste de metal, medindo cerca de vinte centímetros, onde se projetava uma tela vidro sem nenhum conteúdo. Ao tocá-lo, ele desapareceu instantaneamente. Um ponto vermelho, indicando a assimilação de dados de um arquivo, piscou rapidamente em seu campo de visão.

 

– O que é? – lentamente se recuperava do contato inicial. – Por que me doparam desse jeito? – Ela sentia a presença da figura sentada lá atrás, mas não conseguia identificar quem era, nem focar sua visão para além do Mestre, como acontecia quando tentava enxergar as paredes.

 

Tudo parecia muito estranho para Kayi, o que era potencializado pelo torpor ao qual foi induzida. Ela não estava muito acostumada com o cyberespaço – nunca fora fã da tecnologia e a considerava um dos motivos da queda da humanidade. Por um momento, e um pouco tardiamente, ficou surpresa com o repentino sumiço do objeto. Abriu os braços, como se questionasse o que estava acontecendo. Herklán limitou-se a sorrir.

 

– Tivemos uma pequena palestra de explicação, que você acabou perdendo, mas lhe enviarei os registros quando sair. – ele continuava parado à sua frente, agora com as mãos para trás, e o som das palavras não saiam de sua boca – Eu sei que tudo parece meio confuso, mas estamos com muitos problemas repentinos e eu estou muito ocupado. – sua fisionomia mudou, deixando transparecer certa dose de ansiedade e aflição, que rapidamente se transformaram em impessoalidade. Suspirou. – Também não medito há tempos, como você. Acredite, sei como se sente.

 

Ela permanecia imóvel. Ainda tentava ver ou sentir quem era a figura sentada, lá atrás. Suspeitou que fosse Hana. Corriam rumores de que, ultimamente, ela enxergava-se como um tipo de monarca e que, por vezes, era avistada portando um estranho cetro, que mais parecia um cajado.

 

Para Kayi tais boatos beiravam o absurdo, afinal, não viviam numa ditadura. 

 

Será?

 

Não poderiam, por diversas questões filosóficas, políticas e culturais que envolviam o próprio cerne da Mahāna Kārya.

 

Ora, sempre lhes foi ensinado o pior dos – muitos –pecados dos seres humanos era a propensão deles a oprimir e subjugar seus semelhantes.

 

Uma monarquia seria ainda mais impensável. A Primeira Consciência era, acreditava-se, imortal e não possuía a capacidade de gerar descendentes diretos. Na verdade, todos os Dasein eram igualmente seus “filhos”.

 

Realmente?

 

Ainda haviam os Jānamaya e os Kamachiq, que também existiam desde a época dos humanos e faziam parte da Grande Sallāha. A Primeira Consciência era infinitamente superior, mas eles, coletivamente, eram o verdadeiro pilar que garantia a execução da Mahāna Kārya, pois ela não poderia dar coesão a toda a organização social sozinha.

 

Além do mais, Hana tinha muito mais poder do que teria qualquer rainha. 

 

Afinal, ela era uma deusa!

 

Kayi lembrou que estavam no cyberespaço, onde a Protetora de Gaia nunca se materializava de forma a ser vista, preferindo se misturar à própria estrutura da matrix e entrar em contato diretamente com a mente do indivíduo. 

 

– Quem está ali? – ela, por fim, perguntou.

 

– Essas emanações são realmente muito potentes. – ele sorriu – Você não consegue vê-la pois está tentando enxergá-la, o que seria uma proeza aqui no cyberespaço. Aquela é uma forma de Hana. Tente senti-la.

 

Tudo ficou mais claro, de repente. Agora era capaz de sentir algo de familiar naquela presença, ainda que de forma confusa.

 

– Naturalmente – ele continuou – esse tipo de mobilização foi ordenado e dirigido pela Mestre do Grande Sallāha, que lhes recebeu através do simpático Ik.

 

– Ainda não compreendo por que fui submetida a essas estranhas sensações.

 

A figura lá atrás pareceu se mexer.

 

– Hana sentiu sua tensão de longe – ele mantinha um olhar complacente e um meio sorriso, mas parecia petrificado. – Ela desejou que ficasse tranquila, sabe que você é uma das nossas melhores. Tem, assim como eu, muito apreço por você, por todo trabalho árduo pela Mahāna Kārya, e pela dedicação em superar as suas dificuldades de nascença – nesse momento, o avatar de Kayi piscou. – Pode ir agora, preciso que encontre o Nava Jāna antes do fim da noite, para que possam se abastecer e partir antes do próximo meio dia. Tudo estará explicado no arquivo.

 

Aquela conversa não fazia ainda o menor sentido para ela, que novamente abriu os braços. Chegou a ensaiar um questionamento, mas antes que pudesse, o Mestre da Torre Sul proclamou:

 

– Adeus.

 

Estalou os dedos. Subitamente, tudo à volta desapareceu, restando somente uma escuridão inacessível. 

 

Todas as sensações e emanações cessaram, embora permanecesse um leve torpor. Sem anúncio, Kayi fora totalmente desligada do link onde estava, vendo-se numa cadeira feita de pedra, flutuando há alguns metros acima do gramado infinito do terminal de entrada do cyberespaço.

 

Olhou para cima e viu a mesma paisagem de antes: as estrelas, galáxias e luas dos diferentes servidores operando. Sem demora, já bastante fadigada, identificou uma pequena nebulosa planetária um pouco distante do resto – o pórtico de saída.

 

Voou até lá, como se viajasse pelo espaço na velocidade da luz, observando o corpo celeste aumentar de tamanho e ficar mais detalhado: uma estrela azulada, cercada por gás e poeira de cor laranja, que girava lentamente. Quanto mais se aproximava do astro, mais rápido parecia se deslocar, até que mergulhou de cabeça no turbilhão de claridade.

 

***

 

Quando retornou ao mundo real viu-se novamente dentro do caixão, iluminado com uma luz azul clara. Balançou a cabeça, ainda tonta devido aos efeitos de saída da matrix – e pelo quer que houvesse sido a onda hipnótica que Hana lhe aplicara. 

 

Na verdade, não sabia exatamente o porque dela ter feito aquilo. A justificativa de querer acalmá-la não fazia sentido na sua cabeça. Quedou-se alguns minutos meditando sobre a cena que acabara de presenciar. Achava que algo não estava certo.

 

Ora, ela era a Primeira Consciência! Como entidade todo-poderosa, principalmente em seus domínios, poderia apenas ter ligado ou desligado qualquer relé neural que fosse necessário para relaxá-la, uma simples Shikkō-Sho.

 

Poderia?

 

Kayi, tentava visualizar na memória alguns aspectos da presença fantasmagórica que pairava, parcialmente invisível, nos fundos do salão.

 

Ela estava sentada num trono!

 

Kayi odiava o cyberespaço tanto quanto odiava os robôs. Lá tudo era confuso e embaralhava a sensopercepção. 

 

Permanecendo distraída e perdida em pensamentos, acionou o mecanismo da gaveta, mas não esperou a câmara se abrir totalmente antes de tencionar se levantar, no que, com um baque surdo, deu uma pancada com a cabeça no teto do compartimento. 

 

Praguejou.

 

Malditos sejam os representantes de Micli!

 

Agora o torpor se dissipara por completo. Qualquer emoção positiva que houvesse sido inserida em seu sistema límbico, por qualquer motivo que fosse, já não existia mais. Lembrou-se de seu amigo bem-te-vi, de como ele conversava animadamente com seus vizinhos naquele pequeno santuário. Já sentia o banzo. Praguejou novamente. 

 

Que Harald permaneça no ocaso!

 

A escotilha abriu, mas dessa vez ela não se levantou de imediato. Ligou a Matriz Sentimental, rodou o primeiro inibidor que apareceu em seu campo de visão, ordenou que a gaveta se fechasse de novo e programou-a para que abrisse somente no badalar da próxima hora.

 

Estava fatigada, seu cérebro precisava de alguns minutos de descanso. Fechando os olhos, concentrou-se para acionar o Dispositivo de Aprendizado Inerte e fixou nos dados que lhe foram entregues por Herklán.

 

Estava acostumada a trabalhar enquanto dormia.

 

Afinal, era a existência de Gaia que estava em jogo.

 

Daniel Santos I
Enviado por Daniel Santos I em 09/04/2024
Reeditado em 10/04/2024
Código do texto: T8038339
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