A Dança do Cosmo: Filhos de Gaia - Capítulo 1: A Conexão.

 

Ano 890 E.H1 (3970 DC)

 

Fim de tarde em Ashen, capital da Zona Verde do Hemisfério Austral.

 

Cálidos raios de sol penetram entre as folhas das amendoeiras, dando à praça um aspecto bucólico que contrastava com os arredores, compostos de enormes torres, cujo revestimento metálico agredia a vista e a paz de espírito.

 

Ali, naquele pequeno Santuário, forrado por um macio tapete de grama recém-aparada e irrigada, se encontravam, sempre àquela hora, as Consciências que apreciavam a beleza e a tranquilidade da Natureza.

 

Fora do domo que circundava a praça, nas ruas da imensa metrópole, os sentidos eram golpeados por todo tipo de poluição visual e sonora. O ar, constantemente condicionado pelo Regulador Atmosférico, era feito com uma mistura de combinações sintéticas repulsivas.

 

Portanto, aquele refúgio encravado no coração da cidade era um grande tesouro. Nele reinavam o doce aroma das margaridas e dos pinhões, num silêncio quebrado somente pelo farfalhar das folhas e pela animada cantoria dos bem-te-vis, que saltavam entre os galhos das mangueiras.

 

Era em um desses raros espécimes que Kayi fixava o olhar. Enquanto repousava, deitada em um antiquíssimo banco feito de tijolos de barro, observava com atenção e fascínio a criatura estufar o peito, enchê-lo de ar e em seguida expeli-lo, produzindo aquela série de silvos tão característicos.

 

Ela perscrutava, com seus olhos amarronzados, a alma do pássaro, com a certeza de que, concentrando-se, poderia sentir o ritmo das batidas de seu pequeno coração. A ideia a fez sorrir, algo muito raro nos dias de hoje.

 

Subitamente, o animal cessou o canto. Ele mirou-lhe nos olhos, enxergando o próprio reflexo, ao mesmo tempo em que ela se sentou, com a coluna ereta e a mente hipnotizada.

 

As mãos dela, semibiológicas, repousaram sobre os joelhos e começaram a tremer levemente.

 

Os seus pés, totalmente sintéticos, batiam no chão na mesma frequência em que vibrava o músculo cardíaco do animal.

 

As suas pupilas, feitas de carbono, se dilataram e contraíram seguidamente, na mesma senoide.

 

Os músculos de seu rosto, feitos de carne, exprimiam felicidade e prazer, que aumentava na medida em que as oscilações das duas almas sincronizavam-se.

 

Quando seu próprio batimento cardíaco entrou na dança, o que sentiu não podia ser descrito.

 

Era como mergulhar no turbilhão de uma supernova ou no infinito de um buraco negro.

 

Já não enxergava mais o pássaro ou o mundo à sua volta, nem sentia o próprio corpo, pois tudo se tornou subjetivo. Era como se entrasse num túnel em que o passado, o presente e o futuro se misturavam e as almas dos que vieram antes e dos que virão depois se confraternizavam.

 

Nada era visto com clareza, somente uma tempestade de formas e cores, algumas que nem sabia que existiam. Na verdade, nem mesmo poderia dizer se aquelas coisas realmente eram “formas” e “cores”. Esses eram somente os substantivos semanticamente mais próximo da realidade dos fenômenos, mas não os descreviam com exatidão.

 

Era como se ela fosse uma estrela e estivesse prestes a nascer, no coração da galáxia.

 

Tais visões não causavam vertigem, apesar de parecerem confusas. O efeito, na verdade, era o contrário: estava extremamente confortável e segura, acalentada e feliz. O tipo de sensação que nem mesmo as encubadoras da Fábrica eram capazes de proporcionar a ninguém, mesmo com os maiores esforços por parte de Hana.

 

Então de repente, por um milésimo de segundo, que, ao mesmo tempo, pareciam – e eram, em algum lugar – dois milhões de anos, ela a viu. E era uma visão era sublime.

 

Era a visão de Gaia.

 

Ah! A minha Mãe!

 

Nesse momento eram as duas, Dasein e Criatura, “mulher” e pássaro, simples partes de uma coisa muito maior: o Universo.

 

Assim era a Jaḍāna. A conexão.

 

Afinal, todas as praças, parques e campos, separados do caos metálico pelos domos mesônico-magnéticos – recheados de árvores, flores, grama, insetos e pássaros – tinham justamente essa finalidade.

 

Eram os Santuários de Gaia, onde as Consciências dos Dasein descansavam o espírito do fastidioso trabalho rotineiro.

 

O trabalho de manter o mundo vivo.

 

A Consciência feminina de Kayi deleitava-se. Estava preenchida por uma sensação única, em que todas as intrincadas aleatoriedades do Cosmo finalmente fazem sentido, mesmo que não se pudesse dizer exatamente qual.

 

Não precisava.

 

Aquele era o momento que estava ligado a todos os momentos, isso é o que importava. O instante da Criação e do Desaparecimento; do Nexo; da Completude. O Ponto Central. O Eixo da contradição que forja a unidade entre a Vida e a Morte; a Existência e a Não Existência; a Ordem e o Caos.

 

***

 

Kayi possuía vinte e cinco anos. Isso não dizia muita coisa, exceto que a Primeira Terra deu vinte e cinco voltas em torno do Sol desde que ela foi desperta pela Fábrica. A noção de idade para os Dasein não é a mesma dos animais biológicos, pois eles não envelhecem naturalmente.

 

O que define seu tempo é a capacidade mental, que varia de acordo com a forma como a Consciência é esculpida e conforme as experiências de vida. As mortes acontecem através de acidentes ou por exaustão do sistema nervoso, durante o seu difícil trabalho.

 

A taxa de moralidade é grande, mas compensada por uma média de vida longa. Ainda assim, é raro que alguém passe dos cento e setenta, porém existem exceções.

 

Eisha Maraneyma, por exemplo, ainda anda por ai, aos duzentos e trinta anos. Skratis, o Longevo, viveu mais de quinhentos anos, e só morreu pois entrou em colapso. Ele não suportava mais ver seus companheiros nem suas amantes morrerem. Naturalmente, como não podia gerar descendentes, o fogo da vida foi se apagando em seu coração. Matou-se antes que se transformasse num toota hua.2

 

Hana ficou desesperada, mas nada pôde fazer. A Mahāna Kārya, essa grande e hercúlea tarefa, por si só, não era suficiente para manter alguém vivo por séculos a fio, por mais que fosse o mais fiel dos devotos.

 

Tudo isto significava que aquela Consciência feminina – que se chamava de Kayi Luna e tinha um corpo esbelto, com ombros largos sob uma cabeleira volumosa – era ainda bastante jovem, porém suficientemente adulta.

 

Vestia o uniforme azul-escuro com detalhes púrpura dos Shikkō-Sho3, que cobria todo o corpo, exceto a cabeça e as extremidades, e jazia por debaixo de uma finíssima armadura de carbono metálico, que protegia o tronco, as pernas e terminava numa bota mecânica. Luz violeta fulgia das ranhuras que estampavam a cota de carbono, enquanto um símbolo contendo uma árvore verde dentro de um círculo vermelho brilhava na altura do peito. O rosto era fino, com o nariz redondo e os olhos levemente puxados. A boca era o que mais chamava a atenção, com lábios grossos e proeminentes. As duas orelhas ostentavam enormes brincos de pena sintética, que brilhavam em neon e mudavam de tom: do cor-de-rosa e roxo ao lilás, passando pelo prata e terminando no azul.

 

Ela se mantinha sentada e não mexia nenhum músculo, como se fosse uma estátua de pedra muito antiga. Os olhos estavam vidrados. Nenhuma força psicofísica seria capaz de retirá-la do transe.

 

Exceto o toque.

 

Profundamente mergulhada no sonho magnífico e poderoso da Jaḍāna, Kayi sentiu uma comichão nos neurônios da medula. Sem aviso, um clarão tomou sua vista, num estalo.

 

O choque foi tremendo, rápido e inadvertido como o Big Bang, incômodo, desapiedado e lancinante como uma ferida de morte. A Jaḍāna rapidamente se desfez, e seu cérebro taquiônico foi invadido por uma forte onda psíquica, que veio fulminante através da Rede Neural.

 

Enquanto tentava digerir o trauma psíquico, com suas sinapses indo de um lado ao outro, sem rumo, causando-lhe intensos calafrios, não pôde deixar de constatar, mesmo em meio ao turbilhão: nenhum toque é capaz de interromper o sagrado ritual da Jaḍāna.

 

Apenas uma entidade tem esse poder.

 

Hana.

 

O pássaro com ao qual ela se conectava, uma vez liberto da hipnose, alçou voo até outra árvore e se perdeu de vista. Kayi, não mais sentindo sua presença, despertou do transe e levantou de súbito, num movimento automático.

 

Não! Mãe!

 

Seu cabelo encaracolado, cuja cor de amêndoa combinava com a de sua pele, entrelaçava-se conforme era tocado pela brisa que indicava o início do crepúsculo.

 

Agora que o toque da pequena consciência de um ser natural a abandonara, voltou a sentir um leve desconforto n’alma: uma espécie de tristeza que, embora fosse quase imperceptível, incomodava muito.

 

Esse sentimento, compartilhado por todas as Consciências dos Dasein, só era suprimido quando se estava na presença de Gaia, portanto lhe era familiar. Ainda assim, nunca conseguiu se acostumar a ele, mesmo estando ali desde o primeiro segundo de sua vida.

 

Ele não atrapalhava de todo, mas era o tipo de fenda no espírito que só aqueles que sabiam que lhes faltava algo conseguia entender.

 

E claro, todo mundo entendia.

 

***

 

Alguns instantes se passaram antes que pudesse se recompor totalmente do choque. Sentia-se extremamente irritada e triste. O seu sistema nervoso reagia dessa forma, quase automaticamente, como quando saímos debaixo de uma coberta num dia frio e nos jogamos numa ducha gelada.

 

O corpo inteiro tremia, respondendo à carga emocional que se dissipava por ele rápido demais para ser contida pela Matriz Sentimental, acoplada ao sistema límbico. Tentou inspirar fundo para se acalmar, como faziam os antigos. Isto lhe ajudava a se controlar quando a Matriz falhava, o que acontecia constantemente.

 

Sinal dos tempos.

 

O fato era que ninguém tinha o direito de tocar alguém tão intensamente a ponto de interromper uma Jaḍāna.

 

Por Gaia, nem mesmo Hana!

 

Antigamente os toota hua invadiam estações de difusão da Rede Neural e mandavam sinais capazes de interromper qualquer pensamento num raio de dezenas de quilômetros, mas no ano 700 o Grande Sallāha4 passou a categorizar esses atos como terroristas. 

 

Para Kayi pouco importava a origem do sinal. A sua frustração era evidente. Fazia alguns dias que não praticava a Jaḍāna com um animal, tendo que se contentar com as plantas semissintéticas que possuía em sua pequena estufa particular.

 

Não era a mesma coisa, pois a indução não era telepática: era preciso fumar o vegetal, como os humanos faziam antigamente. Além disso, pelo fato das moléculas orgânicas serem forjadas em laboratório, o rito era algo artificial, e por vezes causava danos psicológicos às mentes mais fracas.

 

Claro, existia a opção de surrupiar um pedaço de planta natural de algum santuário, mas ela jamais arrancaria uma folha de uma árvore para que tivesse uma experiência verdadeira.

 

Seria um sacrilégio, punível com a morte.

 

Enquanto lhe ocorriam esses pensamentos, Kayi aguardava, impaciente, a conexão telepática onde estaria na presença da Primeira Consciência – um dos muitos títulos de Hana.

 

Passaram-se vários minutos.

 

Nenhum sinal de contato.

 

Estranhou, tinha certeza de que foi ela quem lhe chamara. Afinal, só podia sê-la.

 

Ou não?

 

A Shikkō-Sho ainda tremia quando tornou a se sentar, mas logo se pôs novamente de pé, estarrecida, ao perceber que a aura que se aproximava de sua psique era de alguém muito menos relevante.

 

Olá Kayi, espero que não seja um mau momento.

 

Ela duvidava que tal coisa fosse possível e pensou que estivesse alucinando, ainda presa no transe.

 

Estou no meio de um surto neuropsicótico?

 

Deitou-se no banco e fitou o céu azul – o tempo estava milagrosamente limpo – que pairava por detrás das flutuações do domo da praça. Algumas nuvens acinzentadas flutuavam aqui e ali e se dissolviam na atmosfera quando eram alcançadas por pequenos drones Coletores de Resíduos, que se moviam num zigue-zague nauseante.

 

Porque e como, em nome de Gaia, o senhor me tocou desse jeito?

 

Kayi já o percebia totalmente e, aos poucos, a imagem de Herklán, o Mestre da Torre Sul de Ashen, fixou-se em seu campo de visão, como se flutuasse no céu.

 

Não fui eu, a senhorita deve saber que não possuo esse nível de poder. – disse o rosto. Ele possuía olhos e barba cinzentos, em contraste com o cabelo cor de fogo que brilhava como se estivesse realmente em chamas. – Foi Hana quem o emitiu, para todos vocês.

 

Permanecendo deitada, Kayi inclinou a cabeça e se limitou a dizer:

 

Vocês?

 

No que a face respondeu.

 

Estou a falar com todos os operadores de nossa Torre.

 

Então o negócio erá sério. Ainda assim, Kayi não estava contente por ter seu rito interrompido. De fato, para os Dasein, aquilo era como uma necessidade fisiológica.

 

Eu estava em Jaḍāna.

 

O rosto de Herklán, cujo corpo físico estava a quilômetros dali, sorriu mansamente.

 

Mil perdões por interromper seu momento sagrado, mas precisamos que volte imediatamente à Torre. Há trabalho a fazer.

 

Kayi franziu o cenho. A Matriz Sentimental rodava furiosamente para controlar e suprimir suas emoções negativas. Ainda que não estivesse na presença de Hana não seria de bom tom demonstrar irritação ao seu superior.

 

Sempre há trabalho a fazer, não é? É tudo o que temos feito. Não encontro com minha Mãe fazem dias! Só o que consigo é um pouco de clorofila misturada com hidrocarbonetos.

 

Ela falava sem mexer a boca. O conteúdo de seus pensamentos era transmitido a Herklán, quase imediatamente, pela Rede Neural, de forma que passou essa mensagem somente com um piscar de olhos e um esgar involuntário, certamente notado pelo seu chefe.

 

Eu lamento. Sei que está sendo exigida ao limite, mas essa é a nossa razão de existir, no fim das contas.

 

Trabalhar feito escravos, como faziam os humanos?

 

Esse comentário fez Herklán fechar o semblante.

 

Fala como um toota hua, não como uma potencial Grãserek5

 

Eu estou cansada, só isso. – Ao dizê-lo, Kayi sentou-se no banco, apoiou o queixo nas mãos e mirou o chão, com um olhar vago. Não fixava mais o rosto de Herklán. A Matriz Sentimental alterou-se e parou de suprimir a raiva. Agora trabalhava na rotina habitual de tentar reprimir o incessante sentimento de angústia e tristeza.

 

Eu compreendo Kayi, mas Gaia precisa de você. Nossa Mãe precisa de todos nós.

 

Ao dizer isso o rosto desapareceu, deixando-a sozinha.

 

Tudo o que restou foi o zumbido horrível da estática habitual de links neurais operando dentro de um campo mesônico-magnético – algo que muito se evitava, pois presumia-se que adentrar em um santuário, por menor que fosse, era se libertar das amarras do mundo antinatural que jazia lá fora, e isso incluía os links.

 

Exausta, mesmo sem ter feito nenhum esforço, se pôs de pé e se dirigiu até a saída do santuário. O sol baixava, indicando o fim do entardecer, dando ao horizonte um aspecto alaranjado.

 

Enquanto caminhava, Kayi continuava ouvindo a melodia dos pássaros. Eles se agitavam entre as copas das árvores, gritando como se estivessem no meio de uma animada conversa. Ela mirou a cena por alguns segundos, enquanto um rastro amarelo de luz solar penetrava na sua íris.

 

Sentiu um aperto no peito. Tudo o que queria era poder participar da conversa, ficar ali a tarde inteira, batendo papo com os bem-te-vi, os coleiros e os rouxinóis.

 

Deixando escapar um lamento quase inaudível, ela baixou a cabeça, franziu o cenho e seguiu adiante. Kayi Luna já não era a mesma de antes. Não se parecia mais em nada com aquela jovem vibrante que vivia sempre disposta, exalando otimismo e contagiando a todos, apesar do banzo6.

 

Claro, essa agitação e positividade – anormal para os Dasein, portanto, resultado de alguma mutação genética – lhe havia custado muito. Em um mundo como aquele, tal traço de personalidade, naturalmente, se transformava em rebeldia.

 

E não era muito aconselhável ser um rebelde.

 

Porém, agora os tempos são outros e Kayi havia assimilado isso. De fato, muitas coisas não tão boas têm acontecido na Primeira Terra, e a esperança, geralmente a última que morre, tem sido crescentemente sepultada em todos os corações.

 

***

 

O portal, que separava o santuário do resto do caótico e lamentável mundo externo, era um pequeno corredor ladeado por luzes verdes muito brilhantes. Suas extremidades, as Portas, consistiam de um material estranho e pegajoso, que emanava de fendas no assoalho, assemelhando-se a bolhas de sabão prestes a estourar. O domo mm7, a redoma que circundava os locais sagrados, exercia força negativa pelos lados do corredor. Dessa forma, o caminho era como a zona entre polos iguais dos ímãs – cujo conteúdo invisível há séculos desperta o fascínio e espanto dos sábios.

 

O campo era espesso como de praxe, fazendo com que a travessia exigisse algum tempo de caminhada. Nas praças, onde o domo geralmente não era muito grande, não se esperava cruzá-lo em mais que um minuto. Em parques ou Catedrais a travessia poderia levar de alguns minutos a algumas horas, a pé. No Grande Santuário levava dias, mesmo nos melhores compartimentos de transporte rápido. O campo que circundava o Planetoide Selene, a Lua, exigia um mês dentro de uma nave transportadora especial.

 

Isso era um problema pois, para os Dasein, a travessia do portal era quase uma tortura.

 

Não só pela parte física da travessia – que já era terrível, devido as pressões magnéticas e as repentinas oscilações do feixe de neutrinos emanados pelo maquinário – mas também pelo aspecto subjetivo da coisa. Afastar-se cada vez mais das fontes de energia natural e aproximar-se do negrume da realidade era como sair do frescor de uma piscina e mergulhar lentamente num mar de enxofre.

 

Kayi pensava, enquanto caminhava, que, psicologicamente, era como se saísse de uma alegre planície ensolarada para adentrar numa depressiva caverna escura, gélida e úmida. Detestava a sensação, e por isso conseguia entender um pouco aqueles que, por causa dela, simplesmente não frequentavam nenhum santuário, preferindo ignorar que havia como interromper, mesmo que por alguns momentos, a inerente melancolia atrelada à existência.

 

A ideia lhe parecia terrível, e um calafrio lhe correu da nuca à planta dos pés só de imaginar viver longe de Gaia.

 

Seria o pior dos pesadelos.

 

Não tardou e estava fora do santuário. Longe do calor aconchegante do útero de sua Mãe, viu-se exposta ao vento úmido, quente e intoxicante, que constituía a verdadeira face do planeta Terra.

 

Apesar de o dia estar claro e a qualidade do ar, como informava sua lente, estar próximo do bom, sentia como se estivesse na caldeira de um navio movido a carvão – um horror que existiu no antigo mundo dos homens e que, embora nunca tivesse vivenciado – ainda bem! já havia visto em vários filmes de indução telepática.

 

A movimentação na rua era a de costume.

 

Aqui e ali, pessoas andavam normalmente ou se “locomoviam”, com pequenas rodas no lugar dos pés. As vezes alguém aparecia pilotando uma antiga motoneta – uma moda que ela achava extremamente cafona.

 

Alguns, mais arrojados, usavam modernas e estranhas máquinas com pneus transparentes de borracha preenchidos com gás neon, que riscavam caminhos luminosos no chão metálico. Diversos níveis de passarelas se cruzavam por entre os arranha-céus, apinhadas de gente indo e vindo. Nos cruzamentos sempre havia alguém tocando música holofônica ou experimentando antiquados instrumentos de corda e sopro e, vez ou outra, se ouvia o barulho de um termojato, individual ou coletivo, serpenteando pela multidão.

 

O estilo dessa massa era o mais heterogêneo possível.

 

Há “pessoas comuns”, com roupas de tecido sintético que emulavam a moda humana de diferentes épocas. Ou seres exóticos, com armaduras de carbono completas, numa variedade de formas e arranjos, faiscando com luzes de diferentes cores que, geralmente, combinavam com o cabelo. Até mesmo cidadãos completamente nus, portando somente braceletes e cocares na cabeça.

 

Bem, os Dasein não possuem genitália – seu gênero é estritamente psicológico e nem sempre concorda com a aparência – portanto a nudez não choca nem incomoda ninguém, sendo, na verdade, uma marca de certos tipos de indivíduos, que se intitulavam “naturalistas”.

 

Kayi caminhou um pouco até chegar ao local onde deixara seu Compartimento de Transporte Telecinético, ou melhor, sua cadeira. Esta consistia de uma grande esfera translúcida, da qual emanava uma fraca luz violeta.

 

Adentrou na bolha, que imediatamente a envolveu, tomando a forma de seu corpo. Posicionando-se como se ocupasse um assento (o que era, efetivamente, o que fazia) deixou que a película ionizada escorregasse por sua pele e se fundisse com o terminal da Rede Neural que existia na base do seu cérebro – no hipotálamo, mais especificamente.

 

Após conferir rapidamente os arredores, fez o característico esforço com a mente de pensar no caminho que deveria seguir, para em seguida se ver suspensa a cerca de vinte metros de altura, como se carregada por um tapete voador invisível.

 

Não demorou muito e ela já estava seguindo à toda velocidade pelo céu. Sem demora, ligou a reflexão da pequena neuronave, fazendo com que sua silhueta simplesmente não existisse no horizonte.

 

A Central de Tráfego calculava sua rota, equiparando-a com a de outros veículos nos arredores, fazendo-a subir e descer suavemente durante o trajeto. Escolhendo a posição de transe, recostou-se como se deitasse no mais macio dos colchões da antiga Nova Pérsia.

 

Antes de se desligar totalmente do mundo, para ser desperta somente na hora em que chegasse, virou-se para contemplar a paisagem.

 

Seu coração sempre se acalentava com a visão.

 

Diante de si podia ver a enorme baia que, com o brilho do sol refletindo nas águas, parecia feita de diamantes. Era um espetáculo. Se ignorarmos o fato de que sua composição era de somente 20% de água e 70% de cloro — além, claro, da radiação.

 

De fato essas águas não suportavam nem o mais simples dos protozoários. Era difícil imaginar que elas, há muito tempo, foram o habitat de bilhões de criaturas, dos seres mais humildes aos mais complexos.

 

Enquanto observava a cena, essa informação tilintou num canto obscuro de sua mente. Tratou de ignorá-la, aumentando os níveis do Repressor de Pensamentos, que constituíam a posição de transe. Logo estaria com a cabeça vazia, somente com alguns sentidos ligados.

 

Um dia tão bonito era muito raro e deveria ser melhor aproveitado.

 

Conseguiu até deixar escapar um sorriso, ainda que irônico, quando viu pequenos grupos de gaivotas sintéticas – disparadas a pior criação de Signum Varg, o Sinteticista – que voavam aqui e ali e pareciam não se importar em apoleirar-se nas horríveis sacadas de vidro-chumbo dos edifícios. Comportamento que ela achava totalmente antinatural, claramente denunciando sua origem.

 

De fato, um verdadeiro horror!

 

A cidade de Ashen descortinava-se por uma extensão estonteante, com suas cúpulas sagradas de tonalidade azul circundando quarteirões inteiros, cercadas por imensos prédios que brilhavam com o tom rósea do entardecer.

 

Destacando-se na paisagem, via-se a sombra da enorme Torre Sul, sede do Pequeno Sallāha de Ashen e do Laboratório de Recuperação da Biosfera. O disco solar, agora tingido de rubro, baixava lentamente por trás do horizonte, que era serpenteado por cadeias de montanhas de pedra.

 

Há muito tempo, aqueles morros abrigaram bilhões de árvores e seres, mas agora haviam somente torres de metal.

 

Um de seus picos assemelhava-se a um dedo, apontando para o céu.

 


 

1Era de Hana (E.H) se inicia quando da ativação da Fábrica. N.A.

2“Quebrado”. Os toota hua são Dasein “defeituosos”, cujo propósito desviou-se de forma irrecuperável e que possuem ambições próprias. São indivíduos desajustados, considerados loucos, podendo ser extremamente inteligentes ou totalmente ineptos, alguns sendo cyberpsicopatas. Geralmente são produto de erros no processamento genético feito pela Fábrica ou por interrupções abruptas no processo de maturação. Quando isso acontece e é percebido a tempo pelos Jānamaya*, a Consciência é corrigida ou destruída. Porém, nos últimos tempos, muitos indivíduos “normais” tem se tornado toota hua pelas pressões do ambiente físico e social. Sinal dos tempos. N.A.

3Pensador-Executor.

4“Grande Conselho”, se subdivide por região nos Pequenos Sallāha.

5Grande Cumpridor. Os Grãserek são os melhores filhos de Hana, cuja dedicação à Mahāna Kārya (Grande Tarefa)* é sem precedentes. Após uma quantidade de anos, serviços prestados e privações, o título lhes é concedido pelos Kamachiq no Grande Sallāha*. N.A.

6Banzo é a palavra que caracteriza o estado de espírito intrínseco dos Dasein. É uma espécie de angustia existencial que está presente em variados graus em diferentes indivíduos. Não se sabe ao certo a sua origem, mas acredita-se que está inserido em seu código genético, criado pelos Jānamaya*, como uma proteção para que não se corrompam como os humanos. Tal hipótese se sustenta pelo fato de que o banzo desaparece quando estão na presença de Gaia, mas, por outro lado, em alguns casos essa “proteção” tem justamente o efeito contrário. Muitos Dasein se suicidam devido ao banzo, embora Hana tenha tentado tomar providências quanto a isso ainda no ano 345. Os toota hua e muitos Grãserek recusam o ritual da Jaḍāna e vivem em banzo todo o tempo. N.A.

7Mesônico-magnético.

Daniel Santos I
Enviado por Daniel Santos I em 06/04/2024
Reeditado em 10/04/2024
Código do texto: T8035704
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.