Diário de um chacareiro - III
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As aulas de floricultura eram as que mais agradavam, ainda mais quando faziam visitas técnicas aos viveiros ou garden centers da região. Na semana seguinte a que ele ganhou a Strelitzia, a professora Regina levou a turma em um viveiro do Núcleo Rural Rajadinha, cuja especialidade era o cultivo das helicônias. Parecem bananeiras, mas em vez de cachos de banana, inflorescências pendentes de cores contrastantes amarelo e vermelho descem entre as folhas verde escuro. A professora falou dos insumos necessários, mostrou o sistema de irrigação por micro aspersores e por fim ressaltou a utilidade decorativa da planta. Os principais clientes do viveirista eram as empresas de organização de festas de casamento. O chacareiro, no entanto, plantou um rizoma de helicônia na descida do aterro, entre o alpendre da casa e o chafariz, ao lado de uma touceira de russélia, muito mais com o objetivo de atrair beija-flores do que simplesmente embelezar o quintal.
Ingressar no Colégio Agrícola representou um marco na vida do Otávio, um renascimento. Algum tempo depois de se desligar de uma importante Instituição financeira do país, onde cumpriu expediente diariamente por 35 anos, ele passou a perambular como um zumbi pelas rodovias do Distrito Federal. Para suprir uma curiosidade antiga, no afã de se reconectar com uma realidade que deixou em segundo plano, passava dez, doze horas ao volante e agravou ainda mais as dores lancinantes nas pernas que sentia desde que fizera, no final do século passado, uma mal sucedida cirurgia de hérnia de disco. Certo dia, fez questão de percorrer os 134 quilômetros da DF 001, a Estrada Contorno de Brasília, um verdadeiro anel viário da capital, do qual partem as principais rodovias, chamadas radiais, para os quatro cantos do território nacional. Outro dia, nessas andanças de morto-vivo, como que subjugado por alguma forma de encantamento, ele se achou a caminho da Pedra Fundamental de Brasília, parado em frente a um prédio de dois andares. Por um instante se viu ali com cinco anos de idade, uma lembrança tênue de uma comissão em visita ao Colégio Agrícola enevoou seu caminho. Esqueceu que ia em direção ao monumento erguido no governo de Epitácio Pessoa, em1922, e entrou na portaria do antigo prédio a fim de descobrir o que o chamava. Uma secretária lhe informou que o ingresso ao curso de Técnico em Agropecuária se dava por meio do sorteio dos candidatos inscritos pela Internet. Otávio anotou o endereço www e à noite, reunidos na chácara, contou para o Orlandão e para o Omerindo. Em clima festivo, os três fizeram a inscrição no agora Instituto Federal de Educação- Campus Planaltina e foram sorteados. Nas primeiras aulas os três enfrentaram algum constrangimento, pois juntos eram 180 anos de vida e experiência entre jovens de vinte e pouco, muitos deles recém saídos do ensino médio. Nas rodas iniciais em sala de aula causavam um certo desconforto ao se apresentarem, aposentados, um engenheiro civil e empresário, outro ex diretor de uma empresa de telecomunicações e o Otávio, ex jornalista de uma emissora de televisão corporativa. Apesar disso, resistiram bem aos dois primeiros meses de aula, mas no terceiro mês do semestre letivo estourou um movimento grevista dos professores. Orlandão e Omerindo logo desanimaram do curso, apenas o Otávio perseverou na ideia.
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A mudança promovida pela nova rotina foi da água para o vinho. Os três irmãos moravam relativamente próximos um do outro na Península Norte, mas nunca dava certo de irem juntos para a escola, porque depois da aula cada um tinha um destino diferente. Com efeito, aquela milagrosa transmutação fez com que o Otávio, que já estava se acostumando a levantar da cama tarde e vagar sem rumo o dia todo, passasse a acordar antes do sol nascer, para sair com itinerário certo. Deus ajuda quem cedo madruga passou a ser seu aforismo predileto. Os tons rosáceos e azuis daquelas manhãs infundiram nele um bom humor invejável. Surfando essa onda de otimismo, quando no final de setembro escutou os primeiros rumores de que o sindicato dos professores estava planejando o movimento paredista, tratou de agilizar a muitas vezes adiada artrodese na coluna lombar no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Foi no primeiro domingo de novembro à noite e uma semana depois já estava em casa, com os parafusos, hastes metálicas, conectores e espaçadores nos devidos lugares. Quando a greve finalmente acabou, ele ainda estava convalescente e o Serviço Social do IFB providenciou que os conteúdos didáticos fossem remetidos e os atendimentos personalizados e testes de avaliação acontecessem por e-mail. Na maior parte do tempo repousava recostado na cama, lia avidamente todos os textos, cumpria todas as tarefas, completava os testes todos, até que o Dr. Mário o liberou para vida normal, e ele pode retomar aquela redentora rotina: partia cedo do Lago Norte, no balão da Granja do Torto, pegava a BR 020 e imaginava que se pudesse seguir 2.111 quilômetros em frente mergulharia na praia de Iracema, em Fortaleza, no Ceará; mas logo passava pela cidade satélite de Sobradinho e quando, no alto do DVO, enxergava no horizonte à esquerda a Lagoa Bonita, apenas um quilômetro adiante deixava a BR 020 e entrava feliz à direita para o Instituto Federal de Educação - Campus Planaltina. Felicidade duradoura porque o calendário escolar foi atrasado, a reposição das aulas perdidas em função da greve entrou pelas festas de fim de ano adentro e aquele primeiro semestre letivo, para o seu deleite, só acabou no ano seguinte.
Apesar das expectativas serem bastante diferentes e não padecer do mesmo assombro juvenil da maioria dos seus colegas, Otávio foi bem aceito na turma e se integrou bem nos grupos que se formavam para realização dos trabalhos escolares. Mal encerrado o primeiro semestre, após passado o carnaval, começou o segundo semestre. Enquanto as disciplinas do primeiro semestre foram, por assim dizer, genéricas (Português, Matemática, Biologia, Química, etc) os temas estudados a partir do segundo semestre foram específicos da agricultura e da pecuária - bovinocultura, avicultura, suinocultura, equinocultura, fruticultura, floricultura, olericultura, grandes culturas anuais, etc. Otávio se deslumbrava com todas elas, em cada uma descobria uma motivação diferente e sempre o mesmo fascínio pelo aprendizado. A sua dedicação logo tornou-se conhecida por todos e seu nome passou a ser ouvido na sala dos professores, onde sempre se comentava durante os intervalos desde queixas mais comuns de mau comportamento de algum aluno, fatos pitorescos ocorridos em uma turma ou outra, até os episódios mais corriqueiros de sala de aula. Num desses intervalos a professora Regina comentou com a professora de Biologia, Rochane, sua última aula sobre o tema paisagismo e contou o recurso inabitual de presentear um aluno com uma planta para a turma fixar o nome científico da Strelitzia reginae. “ Brinquei que era para não esquecerem do meu nome”. O escolhido para ganhar a planta fora aquele aluno com maior maturidade. A Prof. Rochane achou interessante a iniciativa e respondeu que já trabalhara com essa turma, no semestre anterior, o tema da taxonomia de Lineu. A professora Regina contou quanto ficara impressionada com o Otávio quando ele lembrou que o nome foi dado em homenagem à rainha Carlota de Mecklemburgo-Strelitz, esposa do rei Jorge III da Grã-Bretanha. A professora Rochane, que se lembrava bem do Otávio e ficara igualmente impressionada com o aluno, deu um sorriso de simpatia e disfarçou fingindo preocupada com a arrumação de um fichário. A Professora Regina pressentiu algo no ar, mas não tinha intimidade com a Prof. Rochane e deixou pra lá.
A alteração na rotina do Otávio provocou uma mudança de hábitos e logo foi sentida em casa. Béria, sua mulher, estranhou no princípio, mas logo se acostumou com a ausência. Salvo raras vezes, o marido aparecia para almoçar. Quando não almoçava no refeitório estudantil e passava a tarde na biblioteca, ele percorria os sete quilômetros até a praça Salviano Guimarães, em Planaltina, onde descobriu o restaurante Piatto Sano. Na Biblioteca, passava horas procurando nos livros não só os assuntos vistos nas aulas, mas também detalhes além do nível de um curso técnico que nunca ia muito além das noções elementares . Como não tinha muitas vezes sequer conhecimentos rudimentares das matérias dadas em sala de aula, ele nunca se arrogou a desprezar nenhuma delas. Numa das vezes que ficou para almoçar no bandejão da escola, enquanto se servia, sentiu-se estranhamente observado e quase perdeu o equilíbrio ao notar os olhos fixos da sua ex professora de Biologia, duas grandes lantejoulas azuis, com o garfo suspenso no ar, como se a sua presença ali tivesse o poder de parar o tempo. Depois disso, os dias passaram mais rapidamente. Até uma manhã em que ele fazia o trajeto costumeiro para a escola, e ao passar por Sobradinho viu, a tempo de frear e parar, a prof. Rochane sentada no ponto esperando o ônibus passar. Ela aceitou a carona; sempre simpática, lhe contou que morava na Quadra 11, perto do Parque Ecológico dos Jequitibás. Apesar do jequitibá não ser endêmico do Planalto Central, a conversa derivou para espécies nativas do cerrado e ela contou que, quando ainda era adolescente, ganhou de presente do pai um livro sobre plantas do cerrado. “Quem diria, hoje eu dando aulas de Educação Ambiental no bioma cerrado”. No alto do DVO, tendo à frente o longo declive que acaba na ponte do Ribeirão Mestre d’Armas, Otávio mostrou a Lagoa Bonita, à esquerda da estrada. Assim que virou à direita, saindo da BR 020 e seguindo para o Instituto Federal, ele continuou: “pouco depois daquela ponte lá embaixo sobre o Mestre d’Armas, cai nele o Ribeirão Fumal que nasce dentro da Reserva das Águas Emendadas”. Os olhos azuis da professora brilharam de entusiasmo e ela se permitiu pensar alto: “interessante, eu poderia levar a turma lá”. Chegando na Escola, na guarita em frente ao antigo prédio do Colégio Agrícola, ela pediu para deixá-la ali mesmo porque ela não entraria com ele, mas sim desceria à esquerda para o novo prédio da Agroecologia. Ele entrou portaria adentro sentindo, novamente, aquele mesmo estranho ofuscamento que o levou a inscrever-se no Curso Técnico de Agropecuária.
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Numa sexta feira do mês de junho daquele ano, Otávio se afastou da fogueira até que a claridade do fogo não atrapalhasse mais a visão do céu, e localizou a constelação do Cruzeiro do Sul. Depois, como àquela hora o Cruzeiro do Sul já estivesse quase a pino, pode localizar com facilidade, mais próxima ao nascente, a constelação de Escorpião, toda no céu, desde a estrela Shaula, o ferrão na ponta da cauda que feriu Orion, a gigante Antares, no pescoço do bicho e as três estrelas que formam a cabeça desse aracnídeo. Ele gostava muito de procurar as constelações, ficava imaginando que elas são formadas por estrelas completamente desorganizadas, a milhares de quilômetros umas das outras, e não obstante, daqui do planeta Terra, são vistas como figuras planas, desenhadas no pano do céu. Nesses devaneios, ele pensava que talvez pudesse encontrar algum significado oculto para sua existência. Por essa razão, ou pelo menos utilizando esse argumento, frágil, convenhamos, ele passou a não voltar para o Lago Norte mais vezes, dormia dois ou três dias por semana na chácara. Béria já não se preocupava, trabalhava o dia todo e quando chegava cansada em casa às sete da noite não encontrava o Otávio, já sabia onde ele estava, tomava banho e se deitava para dormir.
A vida prosseguia normalmente, até o fim de semana em que ele ficou em casa para assistir na televisão uma partida da Libertadores da América. Cochilou no intervalo do jogo e esqueceu o telefone celular ligado e desbloqueado na cabeceira da cama. No domingo anterior tinha sido Dia dos Namorados e eles festejaram com uma bonita cesta de café da manhã, comprada e entregue a domicílio às sete horas junto com um buquê de rosas e o jornal do dia. Entretanto, na semana que antecedeu esse Dia dos Namorados, na quinta feira, ele dormira na chácara e recebera pelo WhatsApp uma mensagem da prima, que não via desde quando o tio Plínio fizera aniversário de 90 anos. Otávio e Béria até foram na festa juntos e juntos cumprimentaram toda família, inclusive a prima Laura. Quando eram crianças, Laurinha e Tavinho tiveram um namorico inocente, ouviam juntos Michael Jackson cantar Ben, the two of us need look no more… Ela se mudou para os Estados Unidos e só se encontraram 50 anos depois, no aniversário do pai dela. Nesse dia trocaram números e se prometeram telefonar. Por pura gozação, ela escreveu: “Quem me dera eu pudesse te presentear nesse domingo. Entraria numa caixa e mandaria entregar pelo Correios na sua casa”. Ele respondeu no mesmo tom de brincadeira: “Eu receberia o carteiro com uma banda de música”. Quando a Béria leu as mensagens, sentiu a Terra tremer sob seus pés, o bastante para desmoronar de uma vez os 18 anos de convivência.