Diário de um chacareiro - I
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O chacareiro padecia daquele mal que Machado de Assis identificava como comichão da escrita. Mas naquele tempo ele ainda não conseguia separar o que sentiria o personagem das emoções que a ele mesmo se sobrepunham. Passava horas observando ao horizonte, recortadas sobre um fundo de nuvens volumosas, as silhuetas das árvores do cerrado nos topos dos morros, em frente ao chalé que construira uns 200 metros acima do rio. Para descrever esses momentos, que no íntimo julgava pura perda de tempo, abandonava o fio narrativo da saga que se propusera registrar. Entretanto, nesses devaneios ocasionais, às vezes acontecia dele se reencontrar no enredo e descobrir um aspecto novo que ele não tinha sequer imaginado. Foi exatamente o que sucedeu naquela manhã chuvosa que antecedeu o outono de 2014. Em frente ao chalé havia uma parcela, como se diria no Piauí, cercada por arame liso eletrificado, e depois dessa parcela, um grade pasto aberto. Noutros tempos, o chacareiro se dispunha à criação de gado, mas com o passar dos anos se enfadou da tarefa de comprar as vacinas contra febre aftosa e mais que isso, ter que comparecer ao escritório da Defesa Agropecuária para comprovar a vacinação do gado. Acabou por alugar sua área coberta de capim braquiária. O rebanho estava todo ali, pastejando o capim verdejante. Aliberto chegou a cavalo pela estradinha que vem de trás e passa entre o morrinho do mirante e o chalé, exatamente no momento que ele reparou que estava cada vez mais baixa a pequena nuvem dos quase vinte urubus que voavam em círculo a sudeste do chalé. Encarregado pelo rebanho, sempre atento ao trabalho, lá da fazenda Baixa da Égua, que ele administrava com zelo e competência, Aliberto percebera a movimentação no céu e logo deduziu que tinha algo errado. Veio conferir, depois que o Jotaefe lhe telefonou advertindo que a novilha sumida talvez fosse a causa dos abutres. Realmente era.
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Jotaefe e Aliberto estabeleceram uma relação de confiança incomum desde os primeiros dias que se encontraram. Foi mais um caso a provar que as coincidências aproximam as pessoas. Aliberto era filho de uma costureira chamada Alice que se casou com um tratorista que se chamava Roberto. O outro, por sua vez, era filho de um José, para quem o filho poderia ter qualquer nome desde que começasse com jota, com uma Fátima, que queria um nome com a mesma letra do seu. Jotaefe tinha recém chegado da Bahia, de onde saiu para tentar a sorte. O pai era açougueiro e quando o negócio começou a prosperar, um dia entrou em casa anunciando que aquela seria a última vez que colocava o pé naquela choupana. A mãe, Fátima, uma cabocla filha de um primo-irmão do famoso cangaceiro Genésio, número 2 do bando de Lampião, não gostou da desfeita e fincou pé, “daqui só saio carregada dentro de um caixão”. Jotaefe, teimoso como o pai, se antecipou à discórdia e na manhã seguinte, antes que os galos cantassem três vezes, ele negou a filiação, juntou três mudas de roupa e pegou a estrada que levava a Salvador, arrastando consigo Cecília, namoradinha dos tempos de menino. Ambos brincavam juntos no poço onde as mães lavavam roupa. Jotaefe foi juntando as gorjetas que ganhava das famílias abastadas, quando buscava as roupas sujas que levava para o poço onde as mães lavavam e quaravam. Um dia vamos fugir pra Salvador, dizia para Cecília entre um mergulho e outro. Ela sonhava em ter uma filha e batizá-la Carolina na Igreja do Bonfim. A obstinação herdade do pai, no entanto, levou o casal para bem longe de Salvador. Antes mesmo de pegar a BR 116 em Vitória da Conquista, ainda na Serra do Marçal, não muito distante do seu Catolezinho, Cecília anuiu com Jotaefe em seguir para o Planalto Central. Não se lembrava mais dessas coisas até que encontrou-se com Aliberto e o agora gerente contratado da Fazenda Baixa da Égua, inopinadamente, sem quê nem por que, confiou no baiano e lhe contou como chegara no Distrito Federal. Na verdade, não foram tanto as confidências de Aliberto que fizeram Jotefe abrir seu alforge, que afinal de contas nem eram tão pessoais assim, quanto o sentimento de orgulho que lhe pejou, ao mesmo tempo que inflou seu peito de auto reconhecimento. Com o apreço do Aliberto, Jotaefe sentia-se valorizado. O gerente da Baixa da Égua passou a permitir, até incentivar, que Carol, a filha mais velha do casal, fosse duas vezes por semana treinar corrida de tambor nos quarto-de-milha da fazenda. Por essas e outras, quando Jotaefe viu os urubus voando baixo, alguns já taciturnamente pousados nas árvores mais altas da lagoa do Edinaldo, rapidamente alertou o amigo.
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Da varanda do chalé o chacareiro não via a lagoa do Edinaldo, porém adivinhava sua localização pela topografia e pela mata ciliar que acompanhava o córrego e marcava a divisa da sua propriedade com as terras do Coronel Edinaldo, um sujeito mal encarado que se aposentou com proventos integrais pela Polícia Militar, depois de perder uma orelha na perseguição de um bandido. No boteco do Dida, ele gostava de relembrar o tiroteio no Arapoanga, a invasão de barracos que expandiu os limites de Planaltina. Sem conversar antes com o chacareiro, o Coronel achou por bem represar o pequeno córrego para formar a lagoa onde pretendia criar tilápias e tucunarés. Um belo dia, depois de ouvir o ronco dos tratores, o chacareiro foi averiguar do que se tratava. Surpreendeu o Coronel Edinaldo comandando a obra já avançada. Quando se viu surpreendido, pego com a boca na botija, o coronel acenou chamando o chacareiro, que reticente desceu até ao local. Com inesperada simpatia, o Coronel justificou o empreendimento garantindo que poderia ser explorado por ambos. Avesso aos litígios, o chacareiro apenas pediu que ele fizesse uma cerca dividindo a barragem. Na semana seguinte colocou corrente e cadeado para limitar o trânsito de pessoas. Fez uma cópia da chave e deixou para o coronel na loja de material de construção, que funcionava num galpão alugado pelo coronel, no alto do morro, próximo da nascente do córrego, vizinho de um mercadinho e mercearia, um depósito de bebidas, um revendedor clandestino de botijão de gás e o boteco do Dida.
A lagoa do Edinaldo, como ficou sendo referida, acabou por ser útil. Nunca se soube de tilápia ou mesmo lambari nas águas represadas, mas o gado logo encontrou uma rampa de acesso e bebia água na lagoa. Numa dessas vezes, segundo contou depois Jotaefe, uma cobra picou a novilha. A suspeita inicial foi que a novilha teria engolido um pedaço do saco de sal deixado ao lado do coxo. Talvez apenas para exercitar as artes aprendidas com o pai, Jotefe procedeu, a seu modo, a necrópsia. Com um pequeno punhal de ponta fina, ganho na adolescência, ele abriu a novilha com destreza da garganta ao ubre, retirando, retalhando e examinando cada órgão do animal. Não tendo encontrado nenhum objeto estranho nas vísceras da novilha, concluiu que ela fora picada — e o laudo final se baseou em quatro furinhos simétricos que somente ele conseguiu ver, abaixo da boca do animal. Aliberto com seu senso prático e também para evitar quaisquer sombras de dúvida, se limitou a absorver a perda do animal como uma fatalidade corriqueira da sua profissão e não voltou a falar disso. Na volta para Baixa da égua acenou para o chacareiro e avisou sem apear do cavalo que o Jotaefe iria pedir ao Mazinho, tratorista do Sr Mateus, da fazenda vizinha, oposta à do Coronel Edinaldo, para arrastar o animal, abrir uma cova com a retroescavadeira e enterrar a novilha. Assunto morto e enterrado, literalmente.