As aventuras de Honey Bel
AS AVENTURAS DE HONEY BEL
Miguel Carqueija
“Entre a manhã e a tarde se muda o tempo, e tudo isto acontece num instante aos olhos de Deus.” (Eclo 18,26)
E aqui começam as aventuras de Honey Bel, dentro do universo ficcional da Cosmopol, o mesmo de "A face oculta da Galáxia" que há pouco publicamos em capítulos. Mas a Cosmopol nunca mais será a mesma depois de Honey Bel, e logo vocês saberão porque...
Por enquanto acompanhem a Sino Doce pelo mundo de Terra II, uma jovem vendedora faminta e transida de frio por não ter dinheiro para comprar um agasalho... ou mesmo para comer na rua.
Ah sim, não procurem semelhança entre Honey Bel e Vésper ou mesmo Lícia de "A face oculta da Galáxia". Honey Bel é única.
PREFÁCIO
O uso do humor em nossa literatura não é novidade. Autores como Machado de Assis com Memórias Póstumas de Brás Cubas, e Mário de Andrade com Macunaíma, já o utilizaram com sucesso, satirizando e criticando os costumes da sociedade. Contudo, contrariando esta tendência, o humor em nossa ficção científica é raro, e seus autores parecem ficar preocupados em inseri-lo em suas histórias.
Em um país como o nosso, onde a parte mais acessível da comédia está em programas de televisão que utilizam um humor grosseiro e ofensivo, este comportamento torna-se passível de compreensão, criando uma cultura entre autores e leitores de forte dissociação entre o humor e outros gêneros, associando qualquer obra que o utilize em seu enredo como de baixa qualidade, mas como seu intuito é fazer as pessoas rirem, ele não pode ser culpado pela qualidade de um texto, tornando esta separação uma piada de mau gosto.
Grandes mestres como Douglas Adams já provaram que é possível usar a comédia de forma inteligente em uma história de ficção científica, na série de livros O Guia do Mochileiro das Galáxias, que também mostrou que uma ficção científica humorística não precisa arrancar gargalhadas a cada linha, mas deve sim ser divertida e de leitura agradável.
Esta característica pode ser encontrada também em séries de televisão, como a norte-americana The Big Bang Theory, e nos mangás e animes, muito populares nos últimos anos no país, onde parece inexistir esta dissociação até em histórias mais sérias como Rurouni Kenshin, na qual o personagem principal, um samurai com o peso de muitas mortes em sua consciência, constantemente surpreende o leitor com suas cenas cômicas, contando com um público cativo e duradouro.
Dizer que isto é possível por estas obras serem primariamente direcionadas a um público mais jovem, seria negar o fato de que até mesmo os mais velhos que não tem o hábito de ler ou assistir ficção científica se divertem com elas, mostrando o grande potencial que a mistura com o humor pode proporcionar.
E justamente por isso, As Aventuras de Honey Bel se destaca, pois utiliza a sátira de alguns estereótipos bem conhecidos como ingredientes para uma divertida história futurista, que explora as situações engraçadas e absurdas em que a protagonista, uma desiludida vendedora do planeta Terra II, se envolve quando por obra do acaso se vê as voltas com uma conspiração de escala planetária, cheia de agentes secretos, espiões e príncipes encantados. Contudo, mesmo com toda a responsabilidade, as maiores fontes de preocupação para Honey são forrar o estômago e encontrar um príncipe encantado para se casar e nunca mais ter de trabalhar.
Utilizando com maestria os elementos do humor e da ficção científica, com forte influência dos animes, Miguel Carqueija consegue tornar esta historia muito divertida de ser lida do começo ao fim, fazendo o leitor desejar que as aventuras de Honey Bel não terminem, esperando por novas trapalhadas da personagem, além de mostrar sua preocupação em atrair novos leitores (especialmente os mais jovens) e renovar o gênero, utilizando-se de elementos da “cultura nerd” atual em suas histórias.
Por fim, esta é definitivamente uma daquelas histórias que valem a pena serem lidas, e cuja receita permite discussão de problemas políticos, sociais e tecnológicos, da mesma forma que textos mais tradicionais, e que é uma das preocupações centrais da ficção científica, servindo de alerta e esperança para o futuro, mas com muito bom humor para não sobrecarregar os ombros dos leitores no presente.
FRANCISCO MARTINELLI
INTRODUÇÃO
COMO ARRANJAR ENCRENCAS
Ninguém diga jamais que a tecnologia matou o romantismo. Mesmo em Terra II, por sobre aquele imenso solo prateado, em meio a uma tecnologia fulgurante e a um consumismo ofuscante, ainda circulam pessoas românticas, como aquela jovem de ombreiras lilases e calças carmesim, sobraçando uma pasta de vendas, mas que se detém absorta diante de uma vitrina profusamente iluminada e que mostra uns modelos masculinos em cera, roupas elegantes e caras.
Honey Bel está com pouca vontade de vender. O que ela quer, mesmo, é namorar. Só que não há nenhum namorado por perto e o que ela tem de concreto são as vendas, programadas em sua pasta.
— Por que eu preciso trabalhar? Por que? Por que? Por que? — monologa Honey, esfregando os braços de frio. — É claro — completa ela — tenho que ter dinheiro para comprar um casaco. Enquanto isso eu morro de frio nesse mundo de ar condicionado.
Honey Bel tem que passar num escritório, mostrar seu catálogo. Está com tanta vontade de trabalhar quanto vocês de morrer. Assim mesmo vai, pois precisa de dinheiro.
“Eu na verdade não preciso de dinheiro”, pensa Honey. “O que eu preciso é de comida farta, roupas de qualidade, uma boa casa, um aerocarro último tipo... ah, e um namorado. De preferência, um que não seja chato.”
Honey pisa num caminho rolante e se deixa levar pela esteira. Rostos, rostos. Para onde vai toda essa gente, num lufa-lufa que não acaba nunca? Honey olha e olha, procurando os homens jovens, bonitos e elegantes, mas eles parecem estar cada vez mais raros nos dias atuais. “Apareça, Príncipe Encantado!”, murmura Honey, batendo com um dos pés no chão movediço. Ao fazê-lo perde o equilíbrio e se vê de repente sentada no chão, tão sem jeito quanto Sailor Moon. Nessa hora todos olham para ela — até os garotos bonitos e elegantes que estão passando.
“Oh, não!”, pensa Honey Bel, enquanto se levanta furiosa. “Não é numa hora dessas que eu quero ser vista pelos garotos bonitos e elegantes!”
Honey sai da esteira, disposta a dar uma volta por umas vielas mais estreitas, encompridando o seu trajeto, de pura vergonha pelo que se passou. Honey Bel está mortalmente entediada: quer uma companhia, o seu estômago reclama há tempos mas não há dinheiro para comer na rua. Nenhum cliente a convida para almoçar. “O que há de errado comigo? Não sou tão feia assim!”
Aí, ao passar diante de uma birosca enfeitada com prímulas e gardênias, ela vê uma cena insólita: pessoas se amontoam a alguma distância de um sururu. Uma mulher grita por socorro. Ouvem-se ruídos de pancada.
— Que é isso? — pergunta a si mesma Honey Bel, aproximando-se.
— Me ajudem! Segurem ele, não aguento mais! — berra a mulher, já toda cheia de equimoses, enquanto um valentão continua a espancá-la. Honey Bel sente a mostarda subir-lhe às narinas e, faminta ou não, tudo o que aprendeu sobre cidadania, participação, direitos da mulher, defesa dos fracos e dos oprimidos, vem à tona. Honey Bel pula na direção do arruaceiro.
— Pare! Pare, deixe-a em paz!
— Não se meta! — e o sujeito dá outro soco na cara da vítima.
“O que vou fazer?” — pensa Honey Bel. “Como é mesmo que diz no livro de kung fu?”
Honey percebe que ninguém vai intervir. Fazendo das tripas coração, ela alcança o sujeito e lhe dá um chute na perna. Ele se volta e tenta esmurrá-la; Honey Bel recua, entre apavorada e corajosa. E tenta se lembrar do livro de kung fu. Pontos sensíveis... pontos sensíveis... o sujeito a xinga e a empurra brutalmente. Honey Bel cai no chão e o agressor prossegue o ataque, disposto a chutá-la. O croqui do corpo humano, naquele livro de kung fu, passa na memória visual da garota. Plexo solar, plexo solar! Ponto “d” do esquema, entre as costelas inferiores. O pé de Honey, caída de costas no chão, se ergue e explode no ponto exato. O plexo solar dá de si e o valentão cai ao solo, como que fulminado.
Honey Bel senta-se na calçada e murmura: — Não posso acreditar! Funcionou! Eu consegui!
Ela se ergue em meio aos aplausos. A mulher espancada se abraça a Honey, e agradece efusivamente.
— Ora, não foi nada! Mas por que ele batia em você?
— Ele é o meu marido. Estou cansada de apanhar dele.
— Aconselho-a a se separar dele. E processe-o também!
Honey sente que alguém pousa a mão em seu ombro direito. Volta-se e tem um choque: um homem alto e de ombros largos, com um casaco cinza elegante, chapéu e óculos escuros, olha para ela. Parece o Príncipe Encantado!
— Você foi muito valente — disse ele, com voz grave. — Será que nós podemos conversar um pouco?
— Conversar?
— Sim, eu quero lhe fazer uma proposta.
— Desculpe... — diz Honey, intimidada. — Eu não costumo aceitar propostas...
— É para ganhar dinheiro — ele sorri matreiramente.
Tocou o ponto fraco de Honey...
Finalmente a polícia chega e toma o depoimento de Honey, pelo sistema prático de remeter tudo para o banco de dados, sem necessidade de comparecimento à delegacia. O agressor é levado preso e uma assistente social acompanha a vítima. Honey deixa o local tranquilizada e acompanhada pelo seu novo amigo.
A partir daí, a vida até então maçante e sem horizontes de Honey irá mudar radicalmente... e as portas da aventura se abrirão para ela. Mas, poderá Honey, com seu jeito desastrado e excesso de sinceridade, se dar bem?
Em breve nesta escrivaninha:
CAPÍTULO 1
A AGENTE HONEY
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