A FACE OCULTA DA GALÁXIA epílogo: E a vida continua
EPÍLOGO
E A VIDA CONTINUA
(segue-se posfácio de Maria Santino da Silva)
(No capítulo anterior, Vésper e Lícia recolocaram o Artefato na nuvem cósmica de onde havia sido roubado, e nesse momento tiveram uma espécie de visão mística. De comum acordo, resolveram se afastar do mundo da espionagem, de toda aquela corrupção e violência.)
Já se passaram três anos desde os acontecimentos que eu acabei de narrar. Voltei a ser Joana Pimentel, retornei aos meus trabalhos para universitários e outras coisas que eu posso pegar, mas o primeiro-ministro arranjou um casuísmo para se reeleger e toda a nossa esperança de melhoras foi para o vácuo. O dinheiro que eu ganhei na missão está, aos poucos, se evaporando com os impostos – verdadeira derrama em cima da população – e outras despesas; mas resisto bravamente à ideia de tornar ao serviço da Cosmopol. Beng me procurou algumas vezes, inclusive para combater os piratas que infestam o cinturão de asteroides. Amável, servi-lhe chá com torradas... e mandei-o passear.
Não tornei a ver os demais da equipe, com exceção de Ornela Santangelo, com quem mantenho um contato esporádico. Uma boa alma, muito inocente. Não sei o que faz na Cosmopol. Agora trabalha com Ataliba Yezzi, que é um crânio matemático e da informática e refez a equipe do Professor Gaspar. Pelo que conta Ornela, ele continua andando de computador na mochila. Rotterdam e Tenessee andam lá por uma das Plêiades, em alguma missão espinhosa, nunca se sabe se essa gente está viva.
Eu adotei a Licia e mudamos o seu nome para Bianca. Em vez de Licia Murdoch, ela é Bianca Pimentel. Um bonito nome, não achou? Ela às vezes brinca comigo, diz que é uma pimentinha, mas que eu sou uma pimentona. Nós somos muito unidas, e a cada ano ficamos mais unidas, somos como duas irmãs. Comprei um belo casal de cachorros “collie”, Vichy e Antares, e vamos levando uma vida agradável, enquanto a tempestade não chega. Licia tem sido uma bênção do céu para mim. Principalmente agora, que Filipe e Andréia concluíram seus estudos, casaram, seguiram as suas vidas e hoje não me perguntam se eu preciso de um palito, eu sei que, da minha família atual, só poderei contar com Bianca para me amparar na velhice.
Às vezes sinto falta de alguém, sofro de solidão. Queria ter um novo amor, como um dia amei Alfie. Penso em casar de novo e até em gerar mais um filho. Mas, antes mesmo de pensar na precaução de que eu devo me cercar, ao introduzir um homem onde já existe uma adolescente, eu me questiono: que espécie de vida eu posso oferecer a um marido? Há uma espada de Dâmocles sobre mim, e a qualquer momento eu posso ser vítima de morte trágica. Eu e quem estiver comigo.
Valentina não sabe quem eu sou. Só me conhece por Vésper. Não sabe o meu nome, meu endereço, minhas atividades. Mas conhece a minha cara e, contrariando o conselho de Beng, eu não mudei o meu aspecto, não pintei o cabelo e muito menos fiz operação plástica. Eu não sou uma lagartixa. Sou uma mulher, e serei mulher até o fim.
As notícias indiretas que eu obtive através de Beng e Ornela dão conta de que a viking continua participando de missões da Cosmopol mas, nos intervalos, continua me procurando. Conheço esse tipo de pessoa. As ameaças que ela me proferiu eram para valer; ela não me perdoará e não desistirá do seu intento. Certo, ninguém da Cosmopol lhe dará a dica, creio eu. Nem mesmo Maturina e o Caveira, por menos que gostassem de mim e se ainda vivessem, desceriam a tal baixeza.
Mas ela me encontrará. Enxerguei isso nos seus olhos, quando me afastei dela... vendo-a pela última vez até agora.
Talvez por isso, ou também por isso, a minha vida mudou. O que aconteceu na longínqua nuvem cósmica também me atingiu profundamente. Ah, nossa operação deu bom resultado e o buraco negro que ameaçava uma expansão desastrosa retraiu-se, voltou ao seu tamanho normal. A Federação Terrestre e alguns planetas amigos passaram a manter discretos patrulhamentos nas proximidades dos cristais translúcidos já identificados, e eu me pergunto por quanto tempo isso funcionará. Beng, porém, me tranquilizou: o monitoramento é perfeito. Vichtis ainda é vivo, e isso é preocupante. Mas que adiantaria matá-lo? Sempre haverá quem queira pegar os cristais. A Mão Negra, por exemplo, possui representação no Conselho da Galáxia e discretamente se opõe a que os cristais sejam protegidos. Mas estou tranquila. Por trás dos cristais existe um poder que não teme ser desafiado por criaturas mortais.
Voltando à minha pessoa, devo dizer que hoje em dia estou muito mudada. Voltei à religião da minha infância, agora eu vou à igreja, eu rezo, e incentivo Bianca a fazer o mesmo. Vocês que lêem podem até zombar, mas creiam: a nossa filosofia, a nossa visão de vida, altera-se profundamente diante de uma ameaça mortal, contínua e oculta. Espero a morte a qualquer instante, e quero estar em paz com a minha consciência. Nas minhas conversas com Deus eu já pedi, entre lágrimas, perdão para os crimes que eu pratiquei em mais de vinte anos de mercenarismo.
Bianca está indo bem em todos os sentidos. Eu a treino em luta, manejo de armas e nos truques que a espionagem me ensinou. Ela aprende facilmente. Na escola é uma estudante aplicada, interessada, de notas altas. Está ficando bonita, atraente, um pedaço de garota aos treze anos. Claro, nessa idade é comum que as adolescentes comecem a sofrer pressões, constrangimentos por parte de certos colegas machistas, que acham que uma garota, mesmo sem ser namorada, tem que se entregar, ceder aos seus caprichos sexuais... e muitas garotas cedem e se entregam por medo ou fraqueza moral, sem que ninguém possa acusar esses taradinhos de violência sexual. Infelizmente tem muito disso no ambiente escolar, e jovem, dos nossos dias. Só que com Bianca a coisa é bem outra. Depois que dois desses garotos saíram da empreitada com o olho roxo, outros dois com o nariz quebrado, e o último com três dentes a menos, eu deixei de me preocupar: já nenhum deles ousa mexer com Bianca e com as suas protegidas.
Ela também é boa nos esportes. E, graças a Deus, eu consegui convencê-la a somente usar seu bastão de beisebol quando estiver jogando beisebol – e de preferência na bola.
Mas por trás de toda essa aparente normalidade está a angústia silenciosa da expectativa, a espera do inevitável, o hábito de olhar para os lados, de procurar manter as costas perto da parede, de monitorar eletronicamente os movimentos da vizinhança. E a monomania de pensar: será hoje? Será amanhã?
Tenho para mim que Valentina virá sozinha. Faz parte dos seus métodos. Quando não está em missão, acompanhando uma equipe da Cosmopol, ela age sozinha. Ela é auto-suficiente. Virá sozinha e tentará matar a nós duas. Se somente eu for abatida o assunto não estará encerrado, pois Bianca irá caçá-la até os confins do universo. Eu acredito que a valquíria anabolizada fará de tudo para me localizar nos próximos dois ou três anos, porque o tempo corre contra ela: após esse prazo Bianca estará crescida, totalmente treinada e extremamente perigosa. Mesmo agora...
Eu às vezes converso com minha filha sobre esse assunto. Falo-lhe com franqueza do perigo que nós corremos. Ela invariavelmente responde coisas assim:
— Não se preocupe com Valentina, mamãe. Pode deixar que eu cuido dela!
Mas não quero isso. Não quero que Bianca se intrometa, não quero ninguém passando a minha frente. Não, Licia, essa briga é minha.
Até peço a Deus que ela não esteja por perto no dia do acerto de contas, em que Valentina, tendo descoberto o meu paradeiro, virá ao meu encontro, para me exterminar.
Quando isso acontecer, quando esse dia chegar, eu quero ser Vésper e não apenas Joana. Apesar da força e da aptidão de minha adversária, eu jamais me entregarei sem luta.
A História haverá de registrar, algum dia, qual de nós duas é a melhor.
F I M
(Encerra-se aqui a saga do Artefato Cósmico roubado. Joana Pimentel vive com sua filha adotiva Lícia Murdoch, agora Bianca Pimentel, a fase mais feliz de sua vida. Todavia há uma ameaça latente, que um dia poderá se materializar.
Existe uma continuação, "A lenda da menina guerreira", mas por enquanto está incompleta. E ainda existe uma terceira história, "Espaço negro", com participação de Bianca Pimentel, que foi completada antes da segunda.)
Imagens Freepik
Posfácio
Quando pensamos em um mercenário a imagem que se faz em nossa mente é de um sujeito sem escrúpulos, que não questiona nada, só segue ordens custe o que custar, fazendo qualquer tipo de tarefa, em suma, para obter dinheiro. No entanto, se imaginarmos uma mulher mercenária, já obtemos alguma modificação na figura que pensamos, mas se acaso imaginarmos uma mulher, mercenária, mãe e viúva, certamente a imagem moldada por nós, torna-se bem distante da sugerida no início destas linhas. No entanto, é justamente isso, esta contradição ou no mínimo, caracterização curiosa da personagem principal, que chama a atenção nesta novela de Miguel Carqueija.
Aqui temos a ex-mercenária Vésper (Joana Pimentel), apresentando um conflito com ela mesma e com a missão a ser realizada, mostrando particularidades típicas de alguém que não se orgulha do passado que teve, ou ao menos, não deseja ver alguém trilhando os mesmos passos que trilhou. E esta última observação fica explícita em um diálogo direcionado à menina Lícia, de dez anos, que de certa forma a ajuda na batalha final contra o vilão “O Bengala” (da organização Mão Negra). Vésper diz o seguinte: — Licia... minha menina... eu não quero que você seja o que eu sou... uma assassina. Eu não quero! — Um lado tão humanitário, tão benévolo, inserido em uma mercenária que deveria ser alguém fria, como vê no cinema, animes e literatura. Tais fatores chamam a atenção e nos fazem refletir sobre as escolhas que tomamos e de que nada está decidido em nossa trajetória.
A trama em si torna-se diferente das histórias de ficção científica, por misturar romance e misticismo como se vê bem no artefato que a equipe vai resgatar e enfim ela, Vésper, recoloca o objeto, por assim dizer, em seu devido lugar. Vésper tem uma visão especial, mágica, uma iluminação segundo suas próprias palavras. Que nos fazem refletir novamente sobre a existência de um ser supremo que gere as ordens naturais do universo. A personagem Ornela é carregada desse fervor e é responsável por distribuir um pouco dessa aura positiva aos outros, em suma, para a personagem principal, ainda há uma atmosfera lovecraftiana, ao falar em espíritos das galáxias e planetas que nutriam seitas antigas.
Valentina é a vilã típica que dá vazão para que Vésper mostre sua essência e a relação das duas é carregada de pequenos atritos que levam a ex-espiã a tomar atitudes ríspidas ainda que a outra esteja “jogando no mesmo time”; Valentina segue o que lhe foi ordenado querendo ir até o fim e cumprir as ordens preestabelecidas, mas é interrompida por um corte na mão feito por Vésper no final da trama, e tal ato deixa os ânimos agitados dando gancho para uma possível retaliação de Valentina. O fato de esta ter modos masculinizados e assediar Vésper no início, só serve para dar ares de malícia e humor, além de mostrar a integridade no que Vésper acha correto acerca das relações amorosas, algo que possivelmente não seria visto se a mesma fosse fria, sem sentimentos, noções de certo e errado.
Os cenários e a narrativa misturam o real com o imaginário, os personagens sentam-se para comer, algo do gosto pessoal do autor em tentar aproximá-los da realidade, mostrar que mesmo que suas histórias aconteçam em lugares em geral, imaginários, fantasiosos, distantes... Os personagens são muito humanos, sentimentais, comem, dormem... O humor está presente em diversas passagens, seja no uso de palavras e expressões atípicas como: “Você está sendo claro como uma ameixa”, “viking metida a besta”, “cabeça de bagre”, “xingar a família do seu chefe até a décima-quinta geração” e muitas outras, seja nos personagens, como o gago Doutor Laurêncio Pires Freire de Azevedo (sim é um nome grande), o homem porco do circo e a presença da jovem Lícia, que faz travessuras e é comparada ao personagem de anime, Dennis o pimentinha, aliás, ela recebe um sobrenome após ser adotada, bem parecido a este (Bianca Pimentel).
Há outras passagens que merecem destaques acerca do humor, como os personagens tendo que se disfarçar e a descrição que o autor faz aos habitantes do planeta Sombrio, os sombrianos: “Os sombrianos possuem a nossa estatura [...] Sua pele é acentuadamente verde, e sobre as suas cabeças calvas ocorrem umas formações calcificadas, pequenas cornos. Seus olhos são grandes, arregalados, espertos e maliciosos.”
Há bastante ação a ser oferecida ao leitor com cenas cinematográficas, de tiroteios, perseguições, aparição de colossos carnívoros, além das próprias brigas internas no grupo. Vale ressaltar que o confronto com o vilão da Mão Negra, possui a ajuda especial da jovem Lícia.
Lícia, como mencionado antes, é uma menina de dez anos criada pelo avô e que se mostra uma típica criança sem referências femininas, já que tem modos incomuns para sua idade e sexo (taco de beisebol, roupas masculinas, palavreado malcriado...), mas tudo com uma boa orientação pode ser melhorado e Vésper não a vê como um transtorno em potencial para o bom seguimento da missão, ela a enxerga como um diamante bruto que necessita ser lapidado e claro, isso não significa perder sua própria essência, ambas tornam-se muito unidas e depois a menina é adotada por Vésper.
O personagem Gaspar, avô de Lícia, é um homem íntegro, que auxilia muito a equipe, mas no fim, acaba morrendo bem como outros personagens também. “A face oculta da Galáxia” oferece histórias dentro de uma história e repassa ares de redenção à personagem Vésper. Algo que chamou muito a minha atenção sobre a personagem principal, dentre outros fatores foi a capacidade que ela possuía em matar, mas não gostava de falar palavras de baixo calão, (algo que não consigo fazer também), e esta é mais uma boa sacada do autor que deixa claro que as palavras tem efeitos tão marcantes quanto os gestos e os dois juntos edificam e destroem.
Maria Santino da Silva
Manaus, 13 de Dezembro de 2013
Escritora amazonense, autora de histórias de terror e ficção científica)