A FACE OCULTA DA GALÁXIA capítulo 17: Vésper ataca
CAPÍTULO 17
(No capítulo anterior aconteceram cenas emocionantes e decisivas como a morte do Bengala, abatido pela pessoa menos provável, a pequena Lícia, que também salva a vida de Vésper. Todavia, o Professor Gaspar foi morto pelo Bengala.
Agora veremos o que acontece quando o que resta da equipe trata da retirada de Sombrio e novo acontecimento dramático terá lugar.)
VÉSPER ATACA
A viagem de volta à embaixada foi vertiginosa, submarina! Fomos o mais fundo possível, com as nossas luzes iluminando um cenário fantástico de grandes medusas, octópodes, celenterados diversos, animais de tipo radiolário, além de corais cor de açafrão e uns bichos estranhos e perigosos conhecidos como bocões. Em outras circunstâncias eu teria me extasiado, mas agora sentia-me deprimida e assustada. A maior parte do tempo Licia ficou comigo, inclusive sentada em meu colo, trêmula, chorosa. Parecia aos poucos tomar consciência do que fizera, e a perda do avô ainda era esmagadora. Eu a consolava como podia, mesmo não tendo sido muito amiga do Gaspar.
— Vésper! Vésper! Você vai ficar comigo, não vai? Eu posso chamá-la de mãe, não é?
— Sim, minha querida. Você agora é minha filha e nós nunca mais nos separaremos!
— Oh, Vésper. Vésper!
Ela chorava e ria ao mesmo tempo, apertava sua linda cabeleira em meu seio, e eu a afagava e beijava. A alguma distância, Valentina zombava da cena. Vez por outra Licia olhava-a de esguelha e com raiva no olhar, e isso me deixava tensa e apreensiva. Então a pequena me olhou bem nos olhos e sussurrou-me:
— Qual é o seu nome?
— Está louca, Licia? Não me pergunte isso aqui. Na Cosmopol eu sou Vésper, apenas. No mundo exterior, civil, eu lhe contarei, mas não aqui.
— Mas todos aqui já não sabem?
— Não, e nem podem. Tenha paciência, querida, mas aqui eu não direi nada.
— Está bem, mamãe. Para mim você será sempre Vésper!
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O drama na Baía da Morte Violenta terminara pouco depois do meu desmaio. Licia depois contou-me ter reclamado assim: “Vésper, que há com você? Isso lá é hora de desmaiar?”. Quando eu me recuperei e nós nos reunimos ao pessoal, ainda pude assistir as mortes de Maturina e do Caveira. Mortes bem típicas.
Maturina disse: — Eu sabia que ia ter uma morte horrível!
E o Caveira, por sua vez: — Eu sabia que nós todos íamos morrer... mas contava ser o último e não um dos primeiros!
Valentina, após uma dura escalada, conseguiu trazer o cristal translúcido. Chegou xingando todo mundo por ter feito tudo sozinha, como se nós outros não estivéssemos ocupados. Só se moderou depois de ver os três cadáveres.
Pela primeira vez eu vi o cristal translúcido de tropismo dimensional. Só então eu soube, porque ninguém me havia dito, que era de uma beleza inefável, indescritível. Parecia, de certa forma, conter em si todo o universo, como na fábula relativística da lâmpada de Natal. As cintilações internas eram flutuantes, cambiantes, prateadas, algo incrível.
Quanto aos cadáveres, recolhemos os nossos. Beng não autorizou levar os demais que fossem resgatáveis, vetou a minha sugestão de recolher o de Rufina, que se havia rendido. E mais uma vez a valquíria me espicaçou:
— Por que tanto interesse pela Rufina? Eu vi, à distância, como você estava com amores por ela...
— O que quer dizer, viking? Você não tem o menos respeito pela morte! Eu tive compaixão de uma moribunda!
— Compaixão! Mercenárias não podem ter compaixão! Somos pagas para matar!
— Não me recorde isso. Ela havia se rendido e foi morta por terceiros. Alguma coisa nós valemos, viking.
Licia começou a me puxar, para afastar-me da discussão. Ornela fez uma intervenção:
— Valentina, o que nós fazemos por amor vale mais que o que fazemos pelo ódio ou por dinheiro, o que dá no mesmo.
— Já sei. Foram os espíritos da Galáxia que lhe ensinaram isso, não?
— E por que não?
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Nossa fuga provavelmente não teria sido tão fácil sem a perícia de Ataliba Yezzi. Mesmo sem a ajuda do Prof. Gaspar ele conseguiu otimizar o desempenho de todos os aparelhos de anti-rastreação e de perturbação paraeletromagnética de bordo, inclusive com a criação de muitos fantasmas holográficos de longa distância e absorventes ondiônicos, e até conseguiu fabricar uma tempestade elétrica de fogos-de-Santelmo, logrando assim frustrar qualquer possível perseguição. Era de longe nosso mais eficiente técnico.
Evidentemente, os sombrianos não iriam se ausentar da região pelo resto da eternidade. Retornariam do estado de choque com equipes médicas e veículos de quarentena; em último caso colocariam robôs para vigiar o artefato... e descobririam afinal, que ele já não estava mais lá. Por isso era importante que a nossa retirada fosse ultra-rápida e silenciosa. Quanto ao comandante Teplê, informações codificadas que Yezzi recebeu pelo seu subetéreo deram conta de que ele se encontrava nos antípodas.
E a bengala de Torquato Valongo? Eu fingira ter esquecido dela, e lá ficou, na chapada, à espera de quem a encontre. Não queria que ninguém se apoderasse daquela arma sinistra; com um pouco de sorte seria logo coberta por aquela vegetação de rápido crescimento; quanto aos cadáveres, haveriam predadores de carniça. O problema era sem dúvida os veículos que lá ficavam, mas o que restava de nossos balões ia conosco; os aparelhos da Intercrimes e da Mão Negra não nos diziam respeito. Oficialmente, nunca estivéramos na Baía da Morte Violenta.
Pelo meio da tarde daquele dia agitado nós nos reunimos no grande Salão das Cefeidas, para acertar as últimas providências. Beng queria um transporte com os necessários salvo-condutos, antes que o enferrujado sistema de Sombrio fizesse certas relações — as mortes naquele cabo não passariam despercebidas (os três sapoides, lembram-se?) — e precisávamos levar o cristal para o seu destino. Spik Movila, o embaixador, lá estava com seus dois aduladores crônicos, a tirar baforadas do cachimbo de ferro, que lhe deixava a boca torta — ai, que nojo. Ele parecia ansioso por se livrar de nós. Assinou uns documentos de liberação de corpos, após ler um relatório sintético digitado por Beng.
— Vocês poderão ir em seguida. Irão com o Cônsul Bonasha, na espaçonave Cornelius V, que tem imunidades diplomáticas.
— Vocês ouviram — disse Beng. — Dou quinze minutos para que todos estejam prontos, e aí vamos embarcar.
— Eu não vou — disse intempestivamente Valentina.
Foi uma admiração geral. Eu mesma, que estava junto a uma refresqueira enchendo um copo descartável com suco de uva, espantei-me e pus-me a prestar atenção.
— O que você quer dizer, Valentina? Que história é essa? — questionou Beng.
— É simples, chefe. Vocês todos parecem ter esquecido de alguém.
— A mulher do retrato?
— Retrato? Que retrato, Tadeu?
— Ué, o retrato que o Bengala tinha...
— Aquela japonesa, Miki Hokkaido... — esclareceu Tenessee. — É a ela que você se refere?
— De fato, não sabemos o que foi feito dela — comentou Beng. — Mas se ela escapou, isso não me preocupa muito. Em outra ocasião cuidaremos dela!
— Oh, parem com isso, seus estúpidos. Eu estou me lixando para a japonesa. Eu falo do Comandante Teplê K Vichtis. Fui paga para matá-lo. Ou vocês já se esqueceram disso?
Senti uma estranha tensão dentro de mim e desviei o olhar, como quem não quer nada, para a grande tela holográfica das cefeidas daquela região galática. Cefeidas, as estrelas variáveis cujo diagrama de luminosidade parece com o diagrama da variação de luz de um farol, e por isso as chamam de faróis estelares... o holograma reproduzia, com redução temporal, essas oscilações, e por isso a imagem era tão bela... e era natural que eu olhasse. Mas prestava atenção em tudo que se dizia.
Beng tentava dissuadir Valentina.
— Você está desobrigada disso, querida. Pense bem: o homem não estava lá, e nós conseguimos o artefato. Era nosso principal objetivo. Para que complicar?
— Chefe, pegar o objeto poderia ser o nosso principal objetivo, mas não era o único. O meu contrato prevê que eu mataria esse general; se eu não matá-lo estarei desmoralizada, certo?
— Nós não pedimos coisas humanamente impossíveis.
— Como impossíveis, Beng?
— Minha senhora — disse Movila — devo dizer que o risco agora será muito maior. Depois do que aconteceu por lá...
— Não me importa, embaixador. Se for preciso eu colocarei uma dessas peles sintéticas, finjo-me de mulher-sapo, e me infiltro facilmente entre eles. O psicomonitor já me inoculou até o sotaque, para mim será fácil representar o papel de sombriense. E não preciso de vocês; é mais fácil matar do que recuperar um objeto roubado.
— Veja bem, minha cara — disse Rotterdam — nós não a estamos obrigando a isso.
— Cumprirei o trato, e está acabado.
Eu me aproximara lentamente da nórdica e, como quem não quer nada, puxara de um compartimento secreto próximo do bolso traseiro direito da minha calça, um estilete metálico – aquele mesmo estilete que usara para inutilizar o anulador magnético do homem-porco. Friamente, empalmei o estilete, mantendo o polegar direito na entrada do bolso, num gesto descuidado. Valentina estava de costas para mim.
— Está bem — ia dizendo Beng. — A vida é sua. Se faz questão de cumprir essa parte da missão...
— Valentina, venha cá — falei, inocentemente.
Ela se voltou para mim, meio espantada.
E aí eu ataquei.
Foi tudo extremamente rápido, mas procurem imaginar como num filme em câmara lenta. Sabendo com quem eu lidava, tive de agir com a maior perícia e velocidade. Agarrei com a mão esquerda o pulso direito de Valentina e com a mão direita enfiei-lhe o estilete na mão, no tendão que une polegar e indicador, bem rente à articulação dos metacarpos e falangianos, perfurando os músculos extensores e flexores. Acertei então um soco na cara dela, ao mesmo tempo em que, com a direita, puxava o estilete, empalmando-o numa posição em que não me cortaria. Resultado: Valentina foi jogada para trás ao mesmo tempo em que o estilete foi puxado em sentido contrário, rasgando-lhe a mão. A valquíria caiu no chão, sua mão esguichando sangue.
— Pronto! — exclamei, trêmula de cólera. — Agora essa desgraçada não vai mais poder matar ninguém por um bom tempo!
Ela quis avançar contra mim. Beng, Rotterdam, Yezzi, Tenessee, todos a seguraram. Se naquele momento ela realmente me atacasse, eu estava disposta a matá-la. Ainda segurava o estilete, e iria na carótida.
Na confusão percebi que Licia se aproximara de mim em silêncio, empunhando seu porrete de beisebol, prontinha a me defender.
Dessa vez pelo menos, Beng tomou a atitude mais sensata. Chegou para mim e disse:
— Vamos separar essa equipe. Vocês duas não podem mais ficar juntas.
Voltou-se para os companheiros que continham Valentina:
— Vocês três ficarão aqui com ela, até que fique melhor da mão. Embaixador Movila, tenho que lhe pedir esse favor em nome da Cosmopol.
— Eu pensava que iria ficar já livre de todos vocês — e aqui ele soltou uns anéis de fumaça.
— Você, Vésper, vem comigo. Valentina irá para o ambulatório da embaixada, fazer um remendo de emergência...
— Não temos estrutura para consertar-lhe a mão — foi lembrando Spik. — Ela terá de voltar para a Terra.
— E voltará. Vai fazer só um curativo de emergência, e você a liberará daqui a dez dias. Antes disso não quero que disponibilize espaçonave para essa equipe. Entendeu, embaixador?
— Espero sinceramente que esta seja a sua última missão na Cosmopol. Não aprecio o seu estilo.
— Eu salvei o universo — jogou Beng, sem um pingo de modéstia.
Voltou-se para mim:
— Vamos. Você, eu e Ornela. Vamos recolocar o cristal em seu devido lugar, nós três.
Licia abraçou-se a mim e eu lembrei:
— Nós quatro, Beng. Licia vai junto. Eu e ela não vamos mais nos separar.
— Imagino que isso é inevitável. Claro, claro, pode levar a pestinha. Ensope-a com batatas!
Ao me afastar, escutei as últimas palavras que Valentina me dirigiu:
— Eu vou matá-la! Vou matá-la! Juro que a matarei!
(O caldo entornou entre Vésper e Valentina! Agora inimigas, como ficará a situação delas na Cosmopol? Lícia, órfã de pai e mãe e agora também sem o avô, decidiu que Vésper passaria a ser sua mãe e Vésper aceitou com entusiasmo. A vida das duas agora está entrelaçada...para a dor ou a alegria.
Mas e o Artefato Cósmico? Ele ainda precisa ser devolvido ao seu lugar de origem para garantir a estabilidade do universo.
A seguir, em breve:
CAPÍTULO 18:
O PRODÍGIO)
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