A FACE OCULTA DA GALÁXIA capítulo 13: Encontro em Upqutrid
CAPÍTULO 13
ENCONTRO EM UPQUTRID
(No episódio anterior, Lícia apareceu dentro do cabinamóvel em que Vésper viajava com sua equipe: Valentina, Rotterdam, Tenessee e o chefe Beng. Preocupada com Vésper, a pestinha resolvera embarcar clandestinamente, resolvendo com um golpe de taco de beisebol a objeção de Maturina. E as coisas vão se complicando...)
Nós não estávamos numa simples excursão de fim-de-semana e portanto tivemos que nos adaptar rapidamente à nova situação. Quiséssemos ou não, Licia estava agora conosco.
Eu sentia aguçar-se em mim o instinto maternal. A saudade de Alfie, meu marido, ainda me acicatava; Andréia e Felipe me faziam muita falta. Aquela garotinha, com todo o seu espoletismo, vinha sendo um bálsamo para quem era obrigada a aturar os Bengs, as Valentinas e os Caveiras da vida.
Tem horas que eu não pareço uma mercenária. Eu deveria ser dura, de coração frio como uma pedra de gelo; mas não consigo.
De qualquer forma, Rotterdam lembrou-se finalmente que era um agente secreto e pôs-se a verificar os filmes para tentar descobrir alguma coisa sobre o foguete que nos fora lançado. Não demorou a obter uma resposta: a câmera quadro-a-quadro mostrou-nos, finalmente, o hediondo logotipo que ornava o míssil.
A mão negra.
Mafioso maldito, pensei. Senti-me sufocar, tal era a vontade de acertar contas com aquele canalha.
Hoje, que a minha cabeça mudou, eu já não pensaria assim. O mundo em que eu vivia, da espionagem, não era maniqueísta. Valongo e eu estávamos em campos opostos por questões circunstanciais. Ele poderia estar a serviço da Cosmopol e eu, da Mão Negra. Não me cabia julgar os outros quando eu própria já participara de tanto trabalho sujo.
O Tenessee, porém, resolveu se externar em voz alta:
— Ah, se eu pego esse sujeito! Vou quebrar-lhe a cara!
Pensei com meus botões: o Tenessee? Ah, eu conhecia a peça. E como mercenária calejada que eu era, sabia reconhecer a alta periculosidade e a reconhecera no Bengala. A tirada de Tenessee era uma estéril fanfarronada.
Rotterdam encarregou-se de potencializar todos os interferômetros e atrapalhadores de bordo, criando assim uma teia orientacional que impedisse o homem da Mão Negra de nos seguir. Estávamos já nos aproximando de nosso destino e Beng, desejoso de evitar perda de tempo, levantou algumas questões importantes:
— Antes de mais nada, como é que a equipe da Mão Negra pode dispor de uma nave poderosa e de mísseis com a sua marca? Afinal de contas nós não estamos na Terra.
Valentina esclareceu: — Ah, chefe, admira-me que você não conheça as ramificações da Máfia! Eles já possuem um braço em Sombrio!
Rotterdam admirou-se: — Entre os homens-sapos?
— Podes crer, amizade. Eu já lidei muito com mafiosos e eu sei que eles têm uma política subterrânea de penetração interplanetária em larga escala. Nós usamos a diplomacia; eles desenvolvem braços.
— A coisa vai ser mais difícil do que eu pensei... — disse Beng, preocupado. — Agora, e essa menina? O que fazemos com ela?
— Como assim? — perguntei, preocupada. Temia pela Licia.
— Ela é uma clandestina, Vésper. Não tem nada que fazer aqui e põe em risco nossa missão.
— Mas o Gaspar não reclamou...
— É claro que não, sua burra. — era Valentina, como de hábito, desagradável. — Como no espaço, eles são a nossa reserva estratégica e não devemos manter comunicação para evitar escutas.
— Mas isso é uma emergência.
— Vovô sabe que eu sei me cuidar! — jactou-se Licia.
Tenessee aproveitou a deixa:
— É claro! Nós outros é que temos que nos preocupar!
— Sim, mas e a identidade dela? — lembrou Beng. — Temos que lhe arranjar um nome falso o quanto antes! E uma história! Valentina, ela será sua irmã caçula! Sua neta, Vésper! Agora, quanto ao nome...
Licia sugeriu: — Que tal Fredegunda Honorina Bonifácia, seu Beng?
— Licia, por favor — enlacei a menina e lhe afaguei os cabelos. — isso é feio demais!
Beng pegou o disco identificatório de Lícia e acoplou o desbloqueador disfarçado em obturação dentária; manipulou então os dados de uma identificação falsa. Em seguida, devolveu o objeto à pequena.
— Pronto. Você agora chama-se Fredegunda Honorina Bonifácia.
— O QUEEE?
— Não foi isso que você pediu?
— Gente, eu só estava brincando! Não quero carregar um nome desses!
— Ah, você só estava brincando? Pois eu também sei brincar. E não gosto de clandestinas.
— Console-se, querida — animei-a. — Isso é um nome descartável, só. É só para mostrar aos sapoides e eles nada entendem dos nossos nomes.
Ela aproximou os lábios do meu ouvido esquerdo e sussurrou-me:
— Sabe de uma coisa, Vésper? Esse nojento ainda me paga.
E aí ela falou em voz alta:
— Você me deve essa, Beng.
Eu, se fosse o Beng, levaria essa ameaça a sério.
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Beng projetou o mapa na tela tridimensional e decidiu-se por descer no Posto Pesqueiro de Upqutrid, no Cabo dos Cadáveres. Nós tínhamos que sondar um pouco o ambiente. Ele decidiu que nós devíamos pousar e entabular conversa com os aborígenes.
Então finalmente chegava a hora que vinha sendo adiada: iríamos lidar com os habitantes daquele planeta. Não me considero preconceituosa, mas sempre tive uma certa natural repugnância em lidar com seres racionais não-humanos, isto é, com os ET's. Mas agora teria que encará-los.
Os sombrianos possuem a nossa estatura, mas tendem a ser mais gordos, balofos. Sua pele é acentuadamente verde, e sobre as suas cabeças calvas ocorrem umas formações calcificadas, pequenas cornos. Seus olhos são grandes, arregalados, espertos e maliciosos. Seus crânios são braquicéfalos, lembrando os chineses. Não formam divisões raciais pela diferença de coloração, eis que há poucas variantes em seu esverdeado. Detalhes mais sutis caracterizam as suas diferenças raciais, como o tamanho das orelhas e dos chifres, por exemplo. Ou então a conformação desses cornos. As mãos e os pés apresentam membranas interligando os dedos que, como em nossa espécie, são cinco em cada membro. Possuem vozes anasaladas ou ásperas, e formam famílias numerosas. Quanto às complexidades de sua estrutura social, não é coisa que eu tenha me interessado em estudar.
Ao descermos no aeroporto, fomos abordados por um funcionário uniformizado:
— Estamos honrados com a sua visita — disse ele, em galático universal. — Temos aqui um excelente restaurante.
— Obrigado — disse Beng, cumprimentando o anfitrião. — A paisagem dessa região é bem exótica. Costas escarpadas, fijordes, devem vir muitos turistas aqui.
— Até que não... — o sapoide gesticulou expressivamente com o indicador direito. — Os estrangeiros têm um pouco de medo porque o mar é muito escuro e agitado.
— É mesmo? — indagou a "Fredegunda". — E monstros marinhos, tem?
— Só o colosso de bigodes. Esse aí pode atacar pequenas embarcações e é carnívoro.
— Que bacana! — Licia adquiriu um ar sonhador. — Será que a gente vai ter que enfrentar um monstro desses?
Belisquei a garota e Beng se apressou a falar:
— Nada disso! Que iríamos fazer no mar? Vamos só sobrevoar e filmar, não é mesmo?
Tenessee, que agora usava o nome histórico de Rui Barbosa, acrescentou:
— Nós queremos reabastecer um pouco. Vocês aí têm "chips"?
— Componentes micro-eletrônicos? Mas de que tipo?
— Não, eu me refiro a batatas fritas...
Eu tenho passado muito vexame com os meus colegas de aventura...
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Resolvi passar na loja de conveniências. Fui até lá de mãos dadas com Licia que, de bermuda, boné e tênis, era a pessoa mais informal do grupo. Entramos no ambiente iluminado e asseado da loja de conveniências e fomos espiar as vitrines de especiarias nativas. Parece que algumas coisas são comuns às várias civilizações. Eles tinham bolinhos, pastéis, empadas, tortas... só não sei de que. Experimentei provar uma torta verde ao custo de meio crédito interplanetário para correr ao banheiro na primeira mordida. Era picante demais. Depois que cuspi o bocado, Licia me explicou:
— Isso é uma torta de quibumpz! Sabe o que é isso? A pimenta desse planeta!
As crianças hoje em dia, como vocês sabem, são mais sabidas que os adultos...
Quando saí do banheiro eu a vi. Sentada a uma das mesas, a me olhar... uma jovem ocupada com alguma torta e uma bebida de canudinho.
A sereia japonesa da fotografia do Bengala.
Só então me toquei que deveria tê-la percebido de saída. Afinal, não estávamos no Sistema Solar Humano. Ela, porém, acenou-me, fazendo-me sinal para sentar na mesma mesa.
Virei-me para Licia de maneira a evitar leitura labial, e alertei-a discretamente:
— Vamos falar com ela. Cuidado e discrição, ela é perigosa mas vamos fingir amizade.
Eu poderia ter dito qualquer coisa inofensiva, tal como: "Que surpresa, uma terrestre aqui! Vamos falar com ela!".
Fomos até lá. A japonesa sorriu e nós puxamos nossas cadeiras.
— Oi! — falei. — Não esperava encontrar uma terrestre...
— Há muitas nesse mundo, apesar da distância de cem mil anos-luz... sou Miki Hokkaido. E vocês?
— Eu sou Anabella Guthridge. Esta é a minha neta, Fredegunda.
— Que nome lhe deram! — disse a sereia. Eu tive a impressão de ver a fumaça subindo da cabeça da Licia.
— Me chame de Fred — saiu-se ela. — Não faz mal que seja meio masculino.
— Bom... — observei. — Haverá alguma coisa por aqui que a gente possa comer sem vomitar?
Miki respondeu: — É claro! Peça um pirê de batatas. Bem, não é exatamente batata. É xantel amarelo, mas parece bastante, se você puser um pouco de cloreto de sódio. E para beber peça suco de xaxixuxo. É gostosíssimo!
— Que faz você aqui? — indaguei distraidamente, após fazer o meu pedido.
— Pesquisas... Há uma imensidão de coisas para pesquisar no universo. A ciência jamais terá fim.
Não esperava uma resposta tão vaga e filosófica, mas antes que pudesse habilmente conduzir o diálogo por caminhos mais esclarecedores, Miki desviou o assunto:
— Soube que houve um desastre medonho não muito longe daqui, nos corredores rochosos. E com vítimas humanas!
— É mesmo? Bem, havia muita gente na embaixada, saindo em excursão...
— Mas esse aparelho não consta ter saído da embaixada. E, coisa curiosa: as pessoas que nele estavam eram três mocinhas... e encontraram trajes circenses nos despojos.
— Meu Deus!
— Pois é. Tão jovens... tsk tsk... — olhou-me perquisitivamente. — Ouviu falar de artistas de circo por aqui?
Eu dava atenção a ela porém ao mesmo tempo pensava, cozinhava os elementos daquele caso. Incomodava-me saber que nos seguiam, mesmo tendo perdido a nossa pista no hiperespaço. O Bengala tinha penetrado na embaixada, mas e o pessoal da Rufina?
— Não, eu não ouvi... — respondi, ao mesmo tempo em que a cena da briga na astronave passou como um filme acelerado na minha mente.
Remoí-me de vontade de sair correndo em busca do Beng, mas precisava disfarçar.
Valentina, Rotterdam e Tenessee apareceram na entrada da loja, que era vasta. Eu me apressei em terminar o lanche e aproveitar a vantagem que possuía, por ter reconhecido a minha conterrânea sem que ela percebesse e por saber que ela sabia quem eu era e não sabia que eu sabia. E, tão certo como os catetos são os dois lados do triangulo retângulo unidos pela hipotenusa, eu já sabia o que iria fazer.
Despedi-me de Miki e fiz sinal à Licia. Miki, toda gentileza, apertou-nos a mão e observou que talvez voltássemos a nos encontrar, durante as respectivas pesquisas. Cheguei perto de Rotterdam, que estava aceitando um tuggukamplio (equivalente sombriense do café) de uma robô-garçonete, e perguntei:
— Onde está o Tadeu?
— Está conferindo as coisas no cabinamóvel. Sabe como ele é minucioso com os aparelhos.
— Ele é chato. Fiquem de olho nessa japonesa. Venha, Licia!
Assim, deixando o resto da equipe distraindo-se com a sereia nipônica, saí ao ar livre acompanhada apenas por Licia. Surgira entre nós, espontaneamente, uma grande cumplicidade. Esta percebera que alguma coisa devia andar errada:
— O que houve, Vésper? Aconteceu alguma coisa?
— Querida, fique calma. Eu vou esclarecer uma coisa com o Beng. Ai, que idiota.
Ela me deu o braço e falou muito séria, a criança:
— Eu te ajudo.
Beng estava diante do painel de controle. Eu me aproximei dele e minha contida excitação deve ter transparecido, pois ele se voltou espantado. Eu já puxara do cinturão o meu estojo informático detector e o aproximara dele.
— O que foi, Vésper?
— Chefe, você está com um bicho implantado em seu pulso esquerdo. Existe uma inchaçãozinha. Nós temos que tirar isso!
— Que está dizendo? Está maluca?
— Foi a bordo da Petúnia... quando prenderam você na cadeira... a própria correia implantou-lhe o chip rastreador... deixa eu tirá-lo!
— Sai! Para com isso!
Eu segurei com força o seu braço esquerdo e fui logo arregaçando a sua manga, mas ele bancou o teimoso e me repeliu. Nós nos atracamos e Licia atracou-se também com ele, disposta a me ajudar. Eu acionara o extrator eletrônico do meu detector, que já piscava loucamente em vermelho e emitia insistentes bip-bips. Mas não era fácil controlar um cavalão como o Beng e ele jogou a nós duas para trás. Só que, quando eu caí de costas na mesa, machucando-me à beça, já trazia comigo o chip espião, aderente ao meu detector. Eu era bem prática e, tendo conseguido o que queria, não pensava num revide ao chega-prá-lá do Beng, mesmo machucada. Mas enquanto via estrelas a Licia, que certamente não pensava do mesmo modo, avançou sobre o Beng e chutou-lhe a canela, cumprindo assim a ameaça que fizera em presença do avô. Um chute na canela, porém, mesmo doloroso, não deteria o Beng que, furioso como estava, ergueu a mão aberta sobre a menina. Esta porém, sem demonstrar medo, acertou outro chute, mas este não na canela, e sim mais acima e mais para o meio. Gente, a sorte do Beng é que ela só tinha dez anos!
Dessa vez a Licia recuou. Quando recobrou a capacidade de falar, o Beng urrou:
— Sua meretrizinha! Vou te esquentar como o calhorda do teu avô jamais fez!
Mas quando ele avançou eu me interpus:
— Pare, Beng! Não pode bater na menina!
— E por que não? Me dê uma boa razão!
— Eu lhe dou duas. A primeira: o regulamento da Cosmopol proíbe que a gente castigue crianças.
— Fui eu que redigi o regulamento e acabo de revogar este artigo. Qual é a outra razão?
— É essa: se tocar num fio de cabelo da Licia, eu te esfolo vivo!
E não é que a segunda razão convenceu o Beng?
(Graças à esperteza de Vésper, foi descoberto o chip implantado no pulso de Beng sem que este percebesse. Retirar a coisa resultou praticamente num pugilato com Beng, que de início não acreditou na presença do implante. A presença da "sereia japonesa" aliada do Bengala traz uma nova preocupação para Vésper. Obviamente eram seguidos graças ao chip, agora retirado do corpo de Beng.
Na sequência... as coisas se complicam mais ainda, com os homens-sapos entrando no circuito e como isso não bastasse, prosseguem os desentendimentos dentro da própria equipe de espiões. Aumenta a ligação entre Vésper e Lícia. O que está acontecendo com a mercenária calejada e que já perpetrou tanto serviço sujo?
Em breve nesta escrivaninha:
CAPÍTULO 14
REENCONTRO NA BAÍA DA MORTE VIOLENTA)
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