A FACE OCULTA DA GALÁXIA capítulo 4: O circo

 

(No capítulo anterior Beng deu a Vésper algumas informações sobre o misterioso objeto cósmico que deverão resgatar em Sombrio; um monolito flutuante numa nuvem cósmica, que parece ser antiquíssimo e remontar, talvez, à própria criação do universo, e cujo roubo pode vir a causar uma grande catástrofe no Cosmos. Vésper por fim fica impressionada com a magnitude da tarefa. Agora, porém, surge algo insólito: saberem que na nave de passageiros onde viajam está um circo itinerante que vai realizar um espetáculo a bordo.)

 

CAPÍTULO 4

 

O CIRCO

 

Após uma noite mal dormida, tomei o meu desjejum com meus companheiros e lá fomos assistir o espetáculo de circo. Eram oito pessoas que formavam a equipe; no grande palco oval haviam montado trapézios, uma corda bamba e objetos circenses.

Sentada num dos bancos estofados de magiplast, tendo Rotterdam à minha direita e Beng à esquerda, não acreditava que pudesse estar assistindo a um espetáculo circense, a bordo de uma nave de passageiros. Em todo caso, era verdade. A mestra de cerimônias, Rufina, de vermelho e com um casacão de pontas traseiras compridas, apareceu no centro do palco tão logo as luzes se acenderam e fez o habitual e meio ridículo cumprimento:

— Res-pei-tá-vel público! É com imenso prazer que o nosso Circo Espoleta vai se apresentar para este seleto auditório e blá-blá-blá...

Enquanto assim discursava, o préstito circense apareceu e se pôs a desfilar em círculos, numa fila fechada por um ser estranho. Tenessee, que estava ao lado de Beng, comentou incrédulo:

— Mas é um suinoide de Cramélia! Nunca tinha visto um de perto!

— Eu não o tinha visto a bordo... — comentei.

— Alienígenas às vezes gostam de viajar à parte — explicou Beng.

Era um ET avantajado, com talvez dois metros e dez de altura, uma roupa escura com alamares e frisos dourados, botas marciais, que se movia num remelexo gaiato e tocava um bumbo com o maior espalhafato. Perto dele, a corista nem chamava atenção; e havia um palhaço, um mágico, um malabarista e, ao que parecia, duas trapezistas. Eu estava mais interessada no mágico, pois o resto me parecia pura rotina. Mas e o porco, o que faria além de tocar bumbo? Ou só faria isso?

Começou o espetáculo. As luzes avermelharam, criando um efeito cinematográfico. Os trapézios desceram do teto sendo posicionados a uns seis metros de altura. Por intermédio de umas escadas flexíveis colocadas no fundo do palco subiram as garotas trapezistas, descalças, e passaram para uma espécie de ponte metálica, chegando rapidamente aos dois trapézios. A Rufina deu o sinal e o espetáculo começou.

Eu me sentia entediada. Nunca gostei de picadeiro e dava graças a Deus por não haver nenhuma apresentação de algum pobre bicho cheio de truques aprendidos na base da tortura.

Correram diversos números. Cada um era intercalado por demonstrações acrobáticas da baliza. O palhaço fez várias palhaçadas absolutamente sem graça; o malabarista jogou os seus malabares, sem grande inspiração; as trapezistas, que trabalhavam bem, fizeram novo número, jogando-se uma nos braços da outra, ou trocando de trapézio em um salto duplo simultâneo com direito a pirueta em pleno ar; e o homem-porco apresentou alguns números insuportáveis com o seu bumbo barulhento. O mágico, ao que parece, ficara para o fim. Estava vestido de Mandrake, mas podia ser o pai dele.

Lá pelas tantas, notei que algumas pessoas da platéia eu já conhecia. O velho caquético estava lá com seus parentes; e também a leitora do refeitório, chamada Lucy, uma garota ruiva e de rosto sem sal.

Foi anunciado o mágico Rocambole.

Ele atravessou as cortinas, com sua bengala e sua capa preta, acompanhado por sua baliza, tornada sua partner.

— Senhoras e senhores — disse ele, evitando, felizmente, aquele execrável “respeitável público” — nós vamos diminuir as luzes por uns momentos para criar o clima de mistério e logo em seguida, terão lugar cenas surpreendentes! Vamos lá!

A luz diminuiu até a penumbra. As conversas, que até no meu grupo estavam animadas, cessaram subitamente, e um circulo de luz roxa enquadrou o prestidigitador. Ele começou a executar números banais, tais como tirar coelhos e pombos da cartola, transformar jornais em flores e assim por diante. As palmas eram fracas, mas aí ele anunciou, orgulhoso, que a parte melhor ia começar. “Vamos aos grandes truques! Vou precisar do auxílio de alguém da plateia!”

Para minha surpresa, desprezando as pessoas que levantaram a mão (inclusive o idiota do Tenessee; eu jamais faria isso) ele chamou Beng. O meu chefe lá foi, e a partner puxou uma cadeira estofada de couro, convidando-o para sentar.

Beng sentou e o Rocambole recebeu da moça uma espécie de espelho oval, com cabo prateado. Ele ergueu o espelho e gritou: “Agora, blecaute total! Apaguem as luzes!”.

Uma fração de segundos antes que as luzes se apagassem, as coisas começaram a acontecer. Primeiro eu vi que correias automáticas se fechavam em torno dos braços e pernas de Beng, aprisionando-o inesperadamente. Levantei-me instintivamente, e da escuridão completa, há um instante estabelecida, surgiu um facho de luz fortíssimo, que rodava. Minha longa experiência de mercenária auxiliou-me. Eu sabia o que tinha pela frente: uma metralhadora giratória hipnótica, aquele espelho.

— Não olhem direto para a luz! — falei aos meus companheiros —Peguem esse mágico!

Já buscava minha lanterna, porém algo surpreendente aconteceu. Enquanto Beng estupidamente gritava que o soltassem, alguém atirou uma bomba de luz sobre palco. De repente, pareceu que estávamos no Saara ao meio-dia em pleno verão: era luz demais. Espantada, olhei e vi o Dr. Azambuja, de pé e não parecendo nem um pouco senecto, empunhando a sua bengala como se fosse uma espada. Um instante depois, era uma espada: uma fina lâmina emergiu de sua ponta.

— Até que enfim eu o apanho, Trig! — gritou, aparentemente para o mágico.

Rotterdam e Tenessee correram para Beng, a fim de soltá-lo, enquanto Rocambole (ou Trig?), que puxara um bastão de dentro da roupa, e o Dr. Azambuja se enfrentavam. Aturdida, verifiquei que o monstrengo do bumbo subira num dos trapézios e agora manejava uma caixa inibidora de energia, tentando prendê-la ao cabo do trapézio. Quase todas as pessoas fugiram em pânico. Ao tentar interferir na briga, Fleischman foi atingido no queixo por um chute de pé descalço, magistralmente desferido por uma das trapezistas, e tombou de uma vez. Tenessee conseguiu libertar Beng, mas a arma de Rotterdam falhou, por efeito do inibidor manejado pelo porcoide, e eles foram envolvidos pelas mulheres do circo, e a briga se generalizou. A garota chamada (ou cognominada) Lucy e o casal Pintoff atacaram Rufina e o malabarista. Valentina atacou o palhaço, que puxara uma espécie de bastão elétrico, e o duelo do mágico com o falso ancião prosseguia no estilo dos filmes de capa-e-espada. Enquanto meus olhos e meu cérebro de algum modo registravam as cenas dessa balbúrdia eu já subia pela escada e alcançava a ponte abaixo do teto, de onde pendiam os trapézios. Já havia compreendido que lá estavam dois grupos rivais, sendo mais numeroso o do circo; que ambos estavam atrás da gente mas provavelmente não esperavam se defrontar, e - detalhe importante: não seria possível fazer acordo com nenhum dos lados. Éramos três grupos em luta, numa situação absurda: cada grupo contra os outros dois. Isso se a tripulação da nave não interviesse na briga, como um quarto grupo, completando o pandemônio.

Mas eu pensava com rapidez. Sabia o que a criatura de Cramélia queria. O inibidor energético estava sendo fixado no trapézio; dada a natureza bamba deste objeto havia uma certa dificuldade. Quando aquele monstro completasse o seu trabalho, saltaria para o chão e entraria na luta. Considerando o seu tamanho, peso, musculatura, garras e dentes, as nossas armas, desativadas pela caixa de inibição, fariam muita falta. Calculando isso, procurei ser rápida, sem me importar se os meus companheiros estavam batendo ou apanhando. Corri pela ponte metálica e, no momento em que o suinóide terminava de fixar o aparelho, eu me joguei no ar em sua direção.

— Geronimo! — gritei, ao mesmo tempo em que minha bota direita atingia o focinho de tomada do monstro, amassando-o e levando o seu portador a perder o equilíbrio, despencando para o palco. Afinal, 60 quilos em queda livre representam considerável energia cinética. Eu, porém, agarrara-me ao trapézio com firmeza.

O homem-porco caiu pesadamente ao chão. O palco já estava meio vazio: boa parte da briga se estendera pela plateia, por onde chegavam os estupefatos oficiais de bordo, só para entrar na surriada; já que as suas armas não funcionavam. O Dr. Azambuja abatera o mágico, mas o casal que passava por seu filho e sua nora (mais facilmente seriam seus pais) já não iria mais contar mentiras. Eu meti meu estilete na engrenagem da caixa, provocando-lhe uma pane, mas ninguém pareceu se dar conta disso. Quando eu procurei a minha pistola para abater o monstro, Valentina, lá em baixo, atacou-o com as mãos nuas.

Fiquei sem saber o que fazer. A luta que se seguiu foi vertiginosa e eu não podia fazer pontaria sem risco de atingir Valentina. Os outros não podiam ajudá-la, pois estavam levando a maior surra das mulheres do circo. Valentina atacou o monstro com golpes de caratê; ele quase não os sentiu e jogou a viking no chão e chutou-a. Quando tentou pisá-la ela se esquivou, pôs-se de pé num pulo, rodeou-o e, tirando vantagem de sua maior agilidade, atacou-o por trás com um pontapé no rim. O porcóide jogou o enorme braço para trás, pegando Valentina pela testa num golpe atordoante. Ela repeliu o ataque numa dupla cutelada com os dois braços e acertou um soco, de baixo para cima, no canino á mostra do adversário, quebrando-o; ele jogou sua mão sobre o ombro da mulher, rasgando-lhe roupa e carne com as garras. Valentina recuou, ofegante e com a dor visível em sua face, porém misturada com a raiva e determinação; ele porém avançou sobre ela e jogou-a no chão com novo golpe. Fascinada pela luta, eu já não me lembrava de atirar. O monstro esfregou as mãos e resfolegou, preparando-se para o golpe de misericórdia. Então Valentina se ergueu, com uma energia incrível, e deu um pulo de ninja com os pés apontando para cima, e nesse pulo rapidíssimo sua bota apanhou a carótida da fera, destroçando-a. O homem-porco caiu de bruços e de sua boca enorme o sangue escorreu com abundância.

Valentina cumprira, brilhantemente, o seu papel de assassina.

Retomei a ponte e desci a escada. Beng, Rotterdam e Tenessee, bastante danificados, juntaram-se a mim e a Valentina. Tinham escapado da briga, deixando os outros três grupos engalfinhados. Beng reassumira a chefia, apesar do olho roxo:

— Depressa! Por esse corredor!

Corremos e corremos, até chegar ao hangar. Constatando que não havia perigo imediato, Beng fez uma pausa para cumprimentar Valentina:

— Quero lhe dar os meus parabéns. Você foi grande. Você fez jus à sua fama! Sua coragem foi notável.

Rotterdam e Tenessee também a abraçaram, e diziam coisas assim:

ROTTERDAM – Você foi uma verdadeira heroína!

TENESSEE – Foi uma façanha incrível! Aquele bicho não é fácil de matar! Você é espetacular, Valentina!

BENG – Valentina, você salvou a situação. Creio mesmo que você salvou a nossa missão.

A ninguém ocorreu que eu é que derrubara o monstro e inutilizara a sua arma, e já ia liquidá-lo com a minha, sem necessidade de uma luta tão dramática. A intervenção intempestiva de Valentina atrapalhara tudo, e quase nos pudera a perder. Ela tinha que fazer aquilo, tinha que mostrar que ela era a tal.

Mas eu sabia que não tinha sido bem assim.

 

imagem pinterest

 

(Agora que as coisas começaram a acontecer, vão continuar acontecendo. Como se percebe, dois grupos rivais têm interesse no monolito cósmico, além é claro do governo do planeta Sombrio. Mas a retirada do objeto de seu local original ameaça o equilíbrio da Galáxia. Alguns dos inimigos já morreram, mas intriga sobremaneira a Vésper a identidade do homem da bengala, que se fingia de idoso. Vésper já entendeu que se trata de um adversário hiper-perigoso.

Liderando a fuga, Beng avisa que certo Professor Gaspar, da Cosmopol, irá resgatá-los numa nave que sorrateiramente seguia em seu rastro.

Breve nesta escrivaninha:

 

CAPÍTULO 5

A NAVE ESQUARTEJADA)

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 17/12/2023
Código do texto: T7955651
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