PACTOS DE SANGUE: PRÓLOGO
O grande grupo de encapuzados havia lhe cercado, em formação de círculo, numa clara tentativa de impedir que fugisse. Nenhuma brecha à vista em meio as capas escuras aveludadas. Pelo estado da vítima, eles deveriam ter a plena consciência que ela não escaparia mesmo que fosse lhe dada a chance para tal. E mesmo assim, cercaram-na como um predador faz com sua presa.
Cecília jazia quase sem vida, assentada ao chão em posição desagradável, no meio do círculo das capas escuras. Um filete de sangue jorrava do canto de sua testa, descendo sem cessar pela têmpora e maçã do rosto, pintando seu suéter surrado em coloração avermelhada. Cada célula óssea do corpo refém da dor excruciante que havia se alojado nela. Dor esta, que, não se aquietava e a tomava em ondas cada vez mais violentas, fazendo-a curvar para frente em visível agonia. Estar viva até aquele momento era um verdadeiro milagre.
Em meio ao grupo, o seu algoz possuía no olhar um brilho feroz e perturbador.
De alguma maneira, ele se destacava dos demais. Talvez por conta dos trejeitos peculiares, a altivez de sua postura, a arrogância sutil em seu rosto semi coberto pelo tecido do capuz, que indicavam um tipo de liderança macabra.
— Desista, você não tem mais nada a perder — disse ele, seco.
Cecília sacudiu a cabeça em letargia, ação que serviu apenas para acentuar a dor que vibrou retumbante em toda a extensão de seu crânio. Mais absorta em penúria que antes, nem ao menos se apercebeu quando de uma das narinas uma quantidade considerável de sangue começou a escorrer piamente. E não era isso o que eles desejavam dela? O sangue correndo em suas veias, sendo expulso pelos locais onde havia sido golpeada mais cedo…
— Não, por favor… — a voz dela não passou de um fio lamentável, quase inaudível.
Estremeceu em temor quando notou o carrasco caminhar em sua direção a passos meticulosamente lentos. O solado das botas produzindo um barulho irrequieto, ressoando pelo ambiente. No meio do caminho, ele abaixou o capuz, permitindo um vislumbre mais claro de sua face, principalmente quando abaixou-se para ficar à altura dela. Cecília deu um sobressalto em meio às ondas de medo e pavor que a acometiam. Não fosse pela confusão embaralhando seu cérebro, diria que aquele rosto lhe parecia familiar.
O homem de cabelos médios e grisalhos possuía um maneirismo que remetia ao século XVIII.
— Sim querida criança, sim. Você me dará… Tudo.
Seus companheiros encapuzados mantiveram-se impassíveis, mesmo quando os gritos de aflição da garota percorreram estridentes por todo o prédio abandonado. As mãos dele se fixaram em cada lado da cabeça de Cecília, segurando-a com firmeza, enquanto a contemplava em sombrio divertimento, como se os gritos desesperados servissem de alimento a ele.
— Não resista… Será bem menos doloroso…
Durante a pressão esmagadora contra seu crânio, Cecília testemunhou em choque aos seus gritos desaparecendo ao fundo, fugindo de seu alcance e ficando distantes. Amedrontada, percebeu a audição desaparecendo. Sabia que eles ainda escutavam aos seus gritos, pois sua garganta ainda vibrava. Mas ela, nada mais ouvia, a não ser por um zumbido nauseante que de repente irrompeu no interior de seus ouvidos.
Assomou-se ao seu temor a sensação de a vida estar abandonando o corpo. Lembrou-se que alguns diziam que os últimos momentos na vida de alguém eram de paz e contemplação. Mas, só o que sentia, enquanto a morte toma-lhe o lugar da vida, era pânico. Pois, não era somente a vida que estava lhe sendo roubada. A alma também estava inclusa no furto. Cecília sabia disto, porque a alma doía, chorava e pedia por socorro lá no fundo.
Naquela altura, todas as forças já se esvaiam, deixando-a moribunda e inerte ao chão. E ainda assim encontrou ânimo para encarar o fundo dos olhos de seu assassino. Houve um clarão breve em sua mente. Então, seu coração pulsou os últimos batimentos cardíacos quando uma lágrima escapou de um de seus olhos. Não se teve a certeza se a súbita mudança de expressão no rosto do homem foi causada por suas palavras finais.
— Por que, pai?