A PREMIAÇÃO (SOUL PLANET) —III—
A PREMIAÇÃO
(SOUL PLANET) —III—
Por favor, permita que eu me apresente
Sou um homem de riquezas e de bom gosto
Ando por aí há muitos anos
Roubei a alma e a fé de muitos homens.
— (Recorte de “Sympathy for the
Devil” — The Rolling Stones).
— "Somos parte da mesma misericórdia. Do mesmo sono. Do mesmo império romano. Aqui não são cobrados horário e rigor. Estamos no tempo e na compassividade do Tempo. Somos o sono e o sonhar, as simples realidades da alma universal". Diz a sra. Hoiden:
— “Sei quando estou sonhando, com outra sensação qualquer. Isto é uma espécie de supranormal idade. Por que estão fazendo comigo, conosco???
— “Como é estranho falar sem frases. A voz ressoa dentro da mente, confundindo-se com a tonalidade de voz da terceira margem”:
— “Não acha mesmo muito estranho”???
— “Falar sem palavras, incrível, pensou se não estaria sem identidade possível”.
— “Antron”, indaga afirmativamente a voz, em franco processo de despersonalização:
— “Você lembra??? saímos do palco do DomingãoDo100zão com as passagens aéreas e os carnês de crédito internacionais”.
— “Pensamos ser tudo uma grande brincadeira esse negócio de passagem sem volta para “Soul Planet”. A aflição de uma última memória do evento premiação é recorrente em minha mente”.
— “O motorista, ao sair para o pátio interno da emissora, conduziu-me atenciosamente numa limusine até o aeroporto”.
— “A seguir, o embarque no avião da Trans world-United Airlines rumo à Base Internacional do Caribe”.
— “Usei os carnês de crédito para comprar roupas novas. Fiquei três dias no hotel Passagem da Esperança, depois seguimos no iate Hope para uma das ilhas no limite sudeste do arquipélago”.
— “Tudo pago pela produção do programa, enfatiza a percepção comum”.
— “A única condição para usufruir do ambicionado prêmio: seguir imediatamente, do palco do programa para o aeroporto internacional, com todas as despesas pagas, para os locais de transição rumo à estação final. E aqui estamos nesse lugar maldito”.
— “Uma armadilha perfeita para ingênuos e ambiciosos turistas”.
O casal permanece tentando manter ativa a memória. Consegue o exercício de alguma vaga individualidade. Sente que a avassaladora força da ressonância natural do lugar, por momentos deles se afasta, como se fosse um poderoso e ameaçador cão de guarda, abandonando-o provisoriamente à mercê desse estranhamento despersonalizante, dessa memória fragmentada do que sobrou da individualidade de cada um deles.
Está a reforçar condicionamentos antigos, como se fossem meras engrenagens de um parque de diversões universal mental, de uma roda gigante girando numa espécie de lei do eterno retorno da mesmice, do tédio. Essa roda viva da memória do casal, vai-se ampliando, percorre agora todos os níveis de vida orgânica em direção ao passado, ou estará direcionada ao futuro. Qual a diferença??? O Tempo é uniforme. A Grande Ilusão está em acreditar que existe passado, pretérito, futuro.
Não, sem chance. Há muito tempo, nem sabe quanto, o casal regrediu da condição uterina, para a vida de antes de seus pais terem-se conhecido. Vidas passadas, então é isso, já existiram muitas, muitas vezes, anteriormente a esta. Aquela coisa de vidas passadas não era apenas oportunismo de terapeutas “new age”. As encucações são as mesmas, milenares. Tradições dedicadas a envolver a mente e restaurar os mesmos condicionamentos. O mesmo estado natural de desequilíbrio e vitalidade anciã. A intoxicação intensiva da mesma mentalidade organizada para a desorganização New Age. As comunidades repetitivas. A Igreja da Nova Luz come, no café da manhã, o mesmo cuscuz. Alimenta-se de iguais convencionalidades.
O casal Hoiden pertence a esse “vírus imemorial” de que são hospedeiros. A percepção persistente dessa realidade transitória de vidas antigas. Semelhantes às vidas presentes e futuras. Elas parecem não ter fim: quantas infâncias e adolescências, quantas vezes foram crianças, jovens, adultos e idosos??? Em conjunturas tão semelhantes.
A sensação de que aproveitou tão pouco das experiências pelos milênios afora, a ponto de a vida estar nesse beco sem saída, nessa encruzilhada dos horrores, nesse planeta sem alma, ou melhor, com uma alma única e cósmica, pertencente a todos e a cada um, onde a individualidade é impossível.
Sentem-se produtos de espermatozoides quimicamente condicionados pela virtualidade da TV, regredindo a condição neandertal/cromagnon, desde as mais remotas eras da civilização terrena, o Homo sapiens já era sapiens, antes de qualquer passo evolutivo. Quando os humanos não passavam de seres Lovecraft anos, à mercê da gerência sensitiva dos hormônios, subjugados pela mentalidade pós-moderna dos hominídeos de sempre.
Os hominídeos primatas do colarinho branco, administradores dos conglomerados TV visíveis, que têm por único objetivo, globalizar as mentalidades das gerações sintonizadas na telinha, em jogadores de cassinos, toxicomaníacos pornográficos, transformando-os em seres, quando não de sexualidade indefinida, criminosos sádicos, “respeitáveis” funcionários da política institucional do colarinho branco.
— “Essa é a maravilha de ser humano”, pensaram os Hoiden. Simultaneamente.
Miríades de sensações, sentimentos, pensamentos, desejos e explosões de raiva, por milhares de motivos diferentes, todos eles banais, apoderaram-se do casal Hoiden, deixando à mostra a ambiguidade de ambição, pessoal e coletiva, de sua espécie.
Hoiden passa por esses estímulos, como se a espécie humana da qual faz parte, se caracterizasse pela plena consciência de uma maldade congênita, heterônoma, como se o homem tivesse sido criado à imagem e semelhança de um deus da iniquidade, e flutuasse, por puro cansaço, entre um e outro estado dessas polaridades: de uma alo maldade para uma alo bondade, e vice-versa: todas as sensações sem escolha possível. O que geraria essa situação em que se encontram de alo perdição alomórfica: do pária sem teto ao astronauta, do mendigo ao milionário.
— “Somos apenas um povo sob o domínio do poder e do dinheiro dos demônios, senhores da Babilônia. Qualquer pequena cidade anseia por ser Babilônia. Esse é apenas um Portal da presença de Deus, um lugar da Grande Aflição. Até as menores cidades fortificam-se na iniquidade. Inimigos que conhecemos nos trouxeram aqui. Somos representações dos perdedores. Ganhamos a premiação que tanto cobiçamos”.
— “Em qualquer lugar sempre estaremos sozinhos. O dinheiro não é um companheiro confiável. “Soul Planet” para cada um nós que ganhamos o Grande Prêmio do Domingãodo100zão, é só mais um puxadinho do planeta em que viemos. É só mais um subúrbio do Universo. Apenas outro lugar de franca escravização”.
— “Somos mendigos ricos a implorar por socorro. Quem nos poderia ouvir e socorrer??? Seremos moralmente frágeis. Seres vulgares a implorar o amparo da vaidade para sairmos em busca de conquistas. O drive entre pernas das mulheres, está sempre à espera de uma entrada USB no culto às partes pudendas. Ele nos deu o instinto e ao mesmo tempo os mandamentos que não poderemos jamais obedecer. Dessa forma a culpa ou a indecência sempre nos há de incriminar. Somos criminosos natos e irredimíveis”.
— “Não é certo nos culpar. Estarmos em culpa auto acusatória de nada nos vale adiantar. Somos lobos, hienas, carneiros e ovelhas ao mesmo tempo. Eu me recuso a ser um joguete no piso branco e preto dos templos dedicados a nos satanizar. Os senhores do mundo estão dentro da artéria ilíaca interna que irriga os órgãos genitais externos. Não temos escolha. Estamos sob o domínio desse mundo e de seus senhores do astral”.
— “O medo é nosso mais intenso companheiro, desde as mais remotas cavernas. Desde as primeiras fases dos exercícios de dominação. Quando éramos jogados em imensas piscinas para que nos testassem a resistência física na água. O medo de morrer afogado. O medo de morrer sob o signo dos caçados. O medo da fome. O medo dos animais que despertavam mais cedo para nos caçar. Tudo em nós é ansiedade e desassossego. E veja que nascemos na cama e mesa dos privilégios”.
O casal Hoiden está a inventar diálogos. As sensações alucinadas, a condição de personalização à qual parecem querer reagir e sair. A parelha Hoiden busca sair do entretenimento faustiano do qual se sentem vítimas:
A parelha Hoiden comenta com certa afetação:
— Comprei roupas nativas. Os créditos dos carnês permitiam adquirir tudo.
— Passei uma semana na boa vida cinco estrelas do Hotel Portal, ainda em Terra.
— Segui, em grande estilo, no iate Hope, até uma das ilhas no limite noroeste do arquipélago.
— Uma viagem formidável pelo encantado mar do Caribe.
— Todas as despesas pagas.
— Aceitei as regras sem saber que tipo de jogo estava jogando.
— É como ter feito pacto com o folclórico demônio: ele atende às expectativas, porém, em troca, exige nada menos que a alma do adepto para, para sempre tortura-la.
— “Soul Planet”, murmura simultâneo o casal Hoiden com indisfarçável amargura. Compreendo o que significa ter vindo para este lugar.
— “A Terra está superpovoada. Esta é uma das maneiras que encontraram para diminuir a superpopulação, e o governo economizar no pagamento da previdência”.
— “Mas a vagem interplanetária é cara. Os gastos com propaganda via satélite são soberbos. E se a nave interplanetária não passou de simulação. Tudo não passou de uma grande fachada, ilusão, hipnotismo profundo, como fazem com bilhões de habitantes do planeta para permanecerem inertes, acomodados na sala de jantar frente ao fantástico espelho do sofá???
— “E se estamos na Terra, em algum lugar distante e escondido do jornalismo, até do mais investigativo??? Como saber que tempo passou ou está passando, se não possuímos nenhuma ferramenta que indique para nós a passagem do Tempo??? Eles mantêm a sociedade da Terra, principalmente a arraia-miúda, sob a condição semiconsciente do “efeito caterva”. Nessa condição eles a fazem consumir o que quiserem. Vivendo sob a vulgaridade do formigueiro, a sociedade aceita o que quiserem que ela aceite. — “Deus, pátria, família e liberdade de consumir e aceitar”.
O CASAL HOIDEN estava a imaginar que a nave com comando informatizado, na qual embarcou com deliciosa expectativa, depois de divertidas férias nas ilhas do Caribe, não passava de uma simulação de nave interplanetária??? A sequência dos eventos mostrou: a aeronave que conduziu o casal Hoiden a “Soul Planet”, era realmente uma nave interplanetária??? Ela os conduziu a algum outro lugar na própria superfície da Terra???
— “Eles nos enganaram direitinho”. Exclamaram telepática e simultaneamente.
"Venha Conhecer De Que é Feita a Alma. Ganhe Sua Passagem Para “Soul Planet”. O objetivo turístico estava alcançado, mas o casal pensava: “daria tudo e todas as coisas para voltar outra vez à rotineira vida na velha madrasta Terra. Mesmo que fosse uma vida virtual, irracional, dopada pela droga da propaganda”.
— “Domesticados e delirantes. O sistema apenas usa e descarta. Faz isso com toda gente. Ninguém reage. Todos são membros de carteirinha de um rebanho neandertal/sapiens, amedrontado e submisso. Como os carneiros do filme de Buñuel. “O Anjo Exterminador” é invisível, mas atuante em todos os ambientes. Deles não podem sair. Principalmente do ambiente familiar do sofá frente à Tv visível tela da televisão. Ela é o espelho onde todos se confortam, onde todos se confrontam. Onde todos se calam”.
É preciso substituir por gado novo, as velhas gerações. As novas, são facilmente compradas pela necessidade de sobrevivência. Vendem fácil suas almas, sua força de trabalho. Entram nas faculdades ansiosas por um lugar ao sol de um emprego, de um salário. Sem questionamentos. Sentem-se eternamente agradecidos, devedores subalternos dos senhores que lhes pagam o salário. Não questionam nada. Aceitam tudo. Livram a própria cara, o resto do mundo que se dane. No mais, está tudo bem, se no fim do mês recebem seus vinténs.
O casal Hoiden verbaliza coisas que jamais teria verbalizado em outras circunstâncias. Seu falar é compulsivo, como se desse voz a toda uma revolta represada por toda a vida anterior a esse acontecimento nefasto no qual vivem. Nesse lugar do qual talvez jamais possam sair.
— ““Soul Planet”, não passa de uma lixeira planetária”, nela, o casal Hoiden pode delirar à vontade. Ele e todos os outros milhares de casais que ganharam a premiação para conhecer este lugar, e aqui ficaram, trazidos pelo quadro “Os Portais da Esperança” do programa DomingãoDo100zão.
Na Terra, um jornal clandestino, editado por um grupo autointitulado “Eco Guerreiros da Liberdade”, promove a distribuição de um hebdomadário de dez milhões de exemplares, em vários países, denunciando como funciona o esquema globalizado, através do qual centenas de pessoas em vários locais do planeta, dividem entre si o espólio dos casais que ganham, através dos sorteios, o direito de viajar e ficar em “Soul Planet”. Os casais que não têm herdeiros, transferem seus bens para os organizadores do evento “Soul Planet”.
A Edição Extra do hebdomadário “Eco Guerreiros da Liberdade”, denuncia que os casais premiados, antes de embarcarem na suposta nave interplanetária, assinam a transferência cartorial de seus bens móveis e imóveis, para testas de ferro da cadeia de TV que promove o evento “Venha Conhecer Do Que É Feita A Alma”.
Todo o processo de premiação e transferência de bens está legal e juridicamente justificado. O governo federal de cada país, fica com parte substancial dos lucros, a título de recolhimento de impostos. A parte do leão dos ativos financeiros dos políticos que recebem propinas para permanecerem silenciosos e coniventes, está depositada em contas nos paraísos fiscais situados nas ilhas Cayman e Bahamas.
Momentos antes de se instalarem nas confortáveis poltronas da astronave para embarcarem rumo a “Soul Planet”, os “Eco Guerreiros da Liberdade” publicaram imagens gravadas através de microcâmeras, em canais clandestinos de TV. Elas mostram executivos do DomingãoDo100zão, muito solícitos bem vestidos e cordiais, a convidarem os casais a assinar os últimos papéis da burocracia de sorteio do programa.
Diz o editorial na primeira página: “Sob efeito de doses gradativas de hipógeos, ingeridos nos vinhos de paladar deliciosos, nos pratos típicos especialmente condimentados, nas sobremesas irrecusáveis, os casais premiados subscrevem, risonhos e complacentes, os papéis, ignorando que esses senhores, educados e aparentemente serviçais, das emissoras de TV, em 32 países, estão se apossando de todo o patrimônio dos casais, premiados, inclusive de seus ativos financeiros.”
O editorial dos “Eco Guerreiros da Liberdade” denuncia: “Quem poderia neste momento limite, defender seus direitos, zelar por sua cidadania??? O processo de posse de seus corpos, de suas almas e de seus bens materiais é absolutamente legal, do ponto de vista jurídico. Se causar posteriormente litígio da parte de parentes, insatisfeitos com os acordos jurídicos subscritos pelos premiados, os advogados da corporação que defende os interesses do CanalDomingãodo100zão, nas Américas, Europa e Ásia, têm recursos e estratégias jurídicas, para superar tais impasses”.
O jornal dos Eco Guerreiros desmascara o esquema oficializado dos advogados de defesa do DomingãoDo100zão. Os Eco Guerreiros divulgaram entrevistas nas quais, supostos casais que teriam ido e voltado de “Planet Soul”, de "livre e espontânea vontade", na realidade não passavam de clones das pessoas premiadas.
Após as denúncias, houve muitas passeatas de protesto, com milhões de pessoas nas ruas, em dezenas de países, exigindo providências governamentais. Elas não gostaram de saber que mais de doze milhões de seus semelhantes (parentes, conhecidos), foram jogados no lixo, como se fossem objetos obsoletos.
Essas milhões de pessoas saíram às ruas porque desconfiaram de que, possivelmente, seriam elas as próximas vítimas dessa política. Por trás do programa DomingãoDo100zão, havia um verdadeiro exército de tecnocratas. O grande complô do funcionalismo público e privado (municipal, estadual e federal) envolvido, representando a burocracia do terceiro ao primeiro escalão, nos Três Poderes.
Uma clínica administrada por famosos cirurgiões plásticos, foi invadida por policiais federais, no centro da Grande Maçã: Nova Iorque. Na batida policial foram recolhidos documentos falsificados de pessoas, funcionários públicos e da iniciativa privada, desempregados e ex-presidiários, que, através de operações plásticas substituíam, nas entrevistas, os supostos ganhadores das passagens para “Soul Planet”, motivando milhões de pessoas à concorrência pelos carnês da premiação, incitando-as a conhecer a essência, a imanência, do que seria feita a alma.
As investigações ocorreram por pressões inéditas da opinião pública, como se as pessoas estivessem a despertar de um longo e profundo sono virtual, e começassem a reagir contra as imposições subliminares dos filmes, programas ao vivo, TV visíveis, e da propaganda de jornais e revistas, direcionada no sentido de faze-las participar desse enorme mercado consumidor globalizado.
O entusiasmo pela participação dos casais na competição pelo privilégio da premiação, antes tão intenso, diminuiu vertiginosamente. O detonador visual virtual do DomingãoDo100zão perdeu o emprego para outro profissional da área, pertencente a outro segmento do mesmo conglomerado TV visível, situado na Espanha. O conglomerado apenas reciclou internacionalmente alguns de seus funcionários, para simular que tinham sido substituídos.
Após as investigações federais supostamente efetuadas, foram feitas algumas prisões de profissionais detonadores virtuais, que apenas mudaram de país, mas continuaram a fazer parte do mesmo conglomerado globalizado.
Enquanto isso, o casal Hoiden, após séculos, milênios, anos-luz talvez (quem poderia saber melhor que ele???), ainda migra entre dois portais, sem se importar com os milênios de tempo terrestre necessários para ultrapassar cada um desses infindáveis cem metros de eternidade. A glória ambicionada. Conduziram-no ao nada.