Neblina e a Ninja, capítulo 8: Repercussões

 

CAPÍTULO 8

 

 

REPERCUSSÕES

(Após a batalha que resultou na libertação de Sonia, filha do Inspetor Madeira, que havia sido sequestrada pelo bando da Ninja, Neblina teve seu prestígio aumentado pela sua ação decisiva que culminou na morte de um bandido e prisão do outro. Agora o Inspetor Madeira abandonou sua atitude hostil com a vigilante. Mas ainda há muita gente contrária à participação de Neblina.)

 

 

Sentada em uma poltrona, Neblina aguardava ser chamada para a mesa. Sonia fazia-lhe sala. Perto, um waimaraner tranquilamente deitado num capacho.

Quando da libertação da filha, Madeira apertara a mão de Neblina e lhe confidenciara: — Devo-lhe desculpas. Enganei-me a seu respeito.

Da parte do inspetor, era muito.

Agora, pela primeira vez em casa do inspetor, numa tarde de domingo, Neblina era tratada como membro da família.

Quanto a Lustosa, encontrava-se em férias forçadas. Madeira constrangera-o a pegar férias, para contornar a desagradável situação criada pela agressão a Neblina. Na antevéspera, quando do cerco, Madeira mandara Lustosa retornar à Chefatura, sem participar do restante da operação.

Madeira podia ser rabugento mas era um legalista nato, e jamais poderia tolerar que um de seus policiais alvejasse uma vigilante credenciada.

— Espero que cheguem logo — dizia Sonia. — Não gosto muito dessas coisas.

— Não é muito agradável falar sobre essas experiências...

— Papai agora vai ser criador de cachorros. Quem diria, depois de tanta tecnologia... mas me sinto mais segura com eles.

— Diga, esse Oscar e o outro... alguma vez falaram em família?

— Hein? Não, nunca ouvi. É uma coisa engraçada, não é, Neblina? Isto é... também criminosos têm suas famílias. Mas por que pergunta?

— É que eu fico pensando até que ponto essas pessoas romperam com a humanidade normal...

— Por falar nisso, Neblina, e a sua família? Você tem pai e mãe, irmãos?

Neblina fitou um unicórnio esculpido em âmbar gris, perto de um grifo opalescente:

— Tenho família, sim. Mas não posso dar indícios sobre ela, você compreende.

— Nem dizer se tem pai e mãe?

— Eu os tenho, mas estão longe daqui.

— E sabem de sua atividade?

— Oficialmente não, pois não lhes revelei o título que uso. Talvez adivinhem...

O Inspetor Madeira, com um aspecto menos seco que de costume e a meia calva brilhando à luz do candelabro, penetrou na sala e comunicou:

— O Oscar continua fechado em copas. Diz que não revela nada sobre a quadrilha e fez ameaças. Diz que a Ninja matará a todos nós se ele não for libertado.

Neblina encarou seu novo amigo:

— Ele falará, inspetor... se me deixar dez minutos a sós com ele.

Sonia riu e o inspetor franziu a testa.

— O que? De jeito nenhum. Há muito que a polícia aboliu esses métodos e depois o tipo é muito perigoso.

Neblina sorriu.

— Está bem. Não vou insistir. Posso enfrentar bandidos, mas não as regras de vocês. E como não estamos lidando com gente normal, fica difícil. Enquanto vocês tratam o tipo com mordomias, advogado e panos quentes, a cidade está sendo zoneada pela Ninja, que já possui representantes nos vários distritos e provavelmente prepara um assalto ao poder. Por falar nisso... e os romenos?

— Chegaram hoje e que eu saiba estão reunidos com o Jujuba. Pelo que sei, o Darci vai se divertir uns três dias com eles antes de liberá-los para as investigações.

Horas depois o interfone tocou.

Madeira foi atender e retornou avisando que os jornalistas tinham chegado. Todos juntos, num veículo da polícia. O inspetor preferia assim, para evitar abrir a porta muitas vezes: a ameaça da Ninja estava muito presente.

Neblina aguardou tranquila que Iracema abrisse a porta à comitiva, tendo antes retirado os cachorros. Sentaram-se todos em anfiteatro e Neblina fez uso de uma banqueta, colocando-se no meio, enquanto era gravada e filmada. E da parte dos repórteres podia-se notar uma salada de emoções: incredulidade, ceticismo, sensacionalismo e até alguma emoção por estar diante da já lendária heroína.

Vítor Ballantyne, do Correio Brasiliense, expôs o plano da entrevista:

— Nós combinamos fazer um revezamento das perguntas, na ordem em que nos sentamos.

— Tudo bem — disse Neblina, indiferente ao detalhe.

— Bem, então começo eu, Neblina, qual é a sua idade?

Admirada pela tola pergunta, Ana foi taxativa:

— Isso eu não digo, nem nada que possa revelar minha identidade.

— Você deve ter uns 25 anos, não é?

— Você pode calcular, é claro. Nada o impede de chutar a minha idade.

Eleonora Marques Leite, do Novo Horizonte, prosseguiu:

— Neblina, você acha que a quadrilha da Ninja está sendo derrotada?

— Se fizermos o balancete da luta, veremos que não. Os Bandidos Negros perderam três homens, tiveram um preso e, além disso, vários cúmplices externos foram presos. É muito pouco se considerarmos os prejuízos que já causaram, a começar pelo assassínio do diplomata romeno.

— É mesmo. Dá para notar que as baixas da quadrilha devem-se basicamente a você.

— Eu não diria isso. Em sua maior parte as prisões foram feitas à minha revelia.

— Mas de indivíduos que não são do bando... só o auxiliam por fora, não é isso?

— Não esqueça que a libertação de Sonia deveu-se à pronta ação do Inspetor Madeira e às precauções que ele tomou em relação à família. Eu não estou aqui para dizer que sou melhor do que ninguém e gostaria que não seguíssemos por esse caminho.

— Mas você está sendo modesta.

O próprio Madeira, antecipando-se a Sonia, interveio no diálogo:

— Sim, ela é modesta, mas é altamente eficiente. Isso eu atesto como policial veterano que sou.

Era um cumprimento seco e estritamente profissional, ou pouco mais que isso.

O Sr. Buzardo, que tinha mesmo cara de abutre, e representava a revista “Novidades”, fez a sua intervenção:

— Senhorita Neblina, a história que nos foi contada, de sua atuação no caso do sequestro de Sonia Madeira, me parece de todo inverossímil. A senhorita, afinal de contas, é uma moça, e não poderia, ainda mais desarmada, ter enfrentado e dominado dois marginais perigosos. Não é verdade que essa história foi inventada para desmoralizar a quadrilha dos Bandidos Negros?

Ele já começara com um tom iniludível de ironia, ao chamar Ana de “senhorita”, mas antes que terminasse já se elevavam protestos até da parte de vários colegas. Sonia, porém, erguendo-se, sobrepôs-se a todos e ao próprio pai:

— Não admito que venha a me chamar de mentirosa em minha própria casa. Eu simplesmente o processarei.

Madeira interveio:

— Senhor Buzardo, o senhor não tem nenhuma base para suas afirmações, a não ser o seu preconceito em relação às mulheres. Eu não tenho necessidade de mentir, pois me opus desde o princípio à participação de Neblina em nossas investigações. Não por ser mulher, mas por não ser policial regular.

— Ah! Então o senhor admite publicamente que não aprova a participação de superdotados...

— Perdão! A mim cabe acatar ordens superiores e minha opinião pessoal não é importante. Mas de minha parte acho que o senhor está tumultuando a entrevista e se tornando inconveniente.

— Eu me baseio na liberdade de imprensa, inspetor.

Ofélia, da Revista das Palavras Cruzadas, e que seria a próxima entrevistadora, entrou no assunto:

— Ô Buzardo, você está chateando, Veio aqui para criar caso?

— Acho simplesmente que o público tem o direito de saber a verdade.

Sonia encrespou-se: — A verdade! Então diga o senhor qual é a sua verdade! Ora, que desaforo...

Neblina ergueu-se e fez um sinal a Sonia, que queria dizer: — Basta. Agora é comigo. — Aproximou-se de Buzardo, pôs as mãos nos quadris e, perante o súbito e arrasador silêncio que se fez, dirigiu-se ao seu contestador:

— Senhor Buzardo, vamos voltar ao fio da meada. O senhor me fez uma pergunta que eu não pude responder de imediato, mas lembro-me bem dela. O senhor perguntou se determinada história não fôra inventada. Respondo: não, não foi. O Inspetor Madeira não mentiu nas declarações que fez à imprensa. Agora, se o senhor acredita ou não eu com franqueza não me importo porque tenho mais com que me preocupar.

Ouviram-se risos mal contidos. Embora meio desconcertado, Buzardo tomou umas notas estenográficas e prosseguiu, encarando a jovem heroína:

— Está bem. Você então diz que é uma grande lutadora e que enfrenta homens?

— Eu não digo nada disso. Não sei o que o senhor quer de mim. Respondo perguntas objetivas. Até agora o senhor não fez nenhuma. Eu não sou tão ignorante quanto o senhor julga e conheço o Código de Ética Jornalística.

Buzardo enrubesceu e fez um sinal taxativo para calar vozes comentadoras:

— Se leva a coisa para esse lado... é porque não quer que a verdade apareça.

Neblina cruzou os braços, o olhar carregado de áscua:

— O que deseja que eu prove?

— Proponho uma prova pública. Conheço um lutador profissional, o Búfalo Pardo, que é famoso na televisão. Que tal se você o enfrentar numa luta para valer, e em público? A renda pode ser usada para fins beneficentes.

Neblina pediu silêncio com as mãos, embora se ouvissem protestos de Sonia e outras pessoas e Madeira deixasse escapar uma praga. Então, após um instante de silêncio, Neblina deu as costas a Buzardo, retornou ao seu banco e para surpresa geral, pôs-se a rir como uma garota faz normalmente.

O repórter Ronildo, do Jornal de Brasília, interveio de forma desastrada:

— Por que ri, Neblina? Até que é uma ideia interessante... chamaria muita atenção...

— Ora, pelo amor de Deus! Vamos voltar a falar sério! Temos uma quadrilha perversa pela frente.

— Eu também acho — acrescentou Madeira. — Senhor Buzardo, o senhor está vetado em minha casa de futuro.

Buzardo irritou-se e se ergueu:

— Publicarei isso! Publicarei que fui vítima de discriminação! E que a vigilante Neblina recusou passar pelo teste que propus e que a operação de salvamento está mal contada...

— Publique o que quiser, meu caro — Ana não conseguia conter o riso. — Nunca vi ninguém tão ridículo quanto o senhor. Divertiu-me. Ballantyne, quem vem agora?

— É a Ofélia, da Revista de Palavras Cruzadas. Já está esperando há um tempão...

 

 

 

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Uma sala muito escura. Um vulto, escuro sobre escuro, encapuzado, olhos brilhantes na estranha penumbra. Diante dele e de sua escrivaninha... Neblina.

“Z” estava em seu escritório.

— Não gostei nem um pouco disso, Ana. Você não devia ter se exposto numa coletiva. De qualquer modo... esse repórter terá de ser investigado.

— Na ocasião não me ocorreu que aquela atitude era suspeita... existem pessoas muito pernósticas.

— Para mim ele tinha uma razão secreta. Existe uma pressão surda para laxar a ação da polícia e tudo que representa a linha dura contra o crime está sob mira. O que esse Buzardo fez foi uma tentativa para desmoralizá-la. Pode crer. Se fôssemos um romance policial, o nível teria caído muito no trecho em que esse sujeito interferiu.

— Concordo. Então você acha que ele tem relação com a Ninja?

— Tenho quase certeza.

 

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 06/08/2023
Reeditado em 06/08/2023
Código do texto: T7855026
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