A ampulheta quebrada, início

 

Nota: este fragmento inicial de novela (fantasia ao modo de Tolkien) eu comecei a escrever em 16 de janeiro de 2009 e parei por alguma razão. A história está parada desde essa época e resolvi então salvar a parte já feita aqui no Recanto, para prosseguir com ela em breve. Assim espero.

 

A AMPULHETA QUEBRADA

 

 

Miguel Carqueija

 

 

16.1.09

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

DETETIVE

 

 

 

Numa noite abafada e cheia de mosquitos achava-se o senhor Orpanto Ologumes acendendo os incensos da residência, para manter afastados os indesejáveis insetos, quando a campainha soou e ele foi atender. Da janela viu uma elfa de aparência bem carnavalesca, acompanhada por um jovem humano.

- O que desejam? – indagou Orpanto, que não esperava e nem desejava visitas àquela hora.

- O senhor por acaso é Lotar Camarral?

- Quem me dera, mas não, o senhor Lotar já se prepara para dormir. Vocês não têm hora marcada.

- É uma emergência – disse o homem, com ares de aflição. – Ocorreu um terrível crime, e precisamos da ajuda do grande detetive.

- Não sei se ele poderá atender. A quem devo anunciar?

- Eu sou Ariel Lux, historiadora, e este é o senhor Paul Conrado. A mim Lotar conhece; já trabalhamos juntos e de mim ele se lembrará.

- Meu amigo tem boa memória – respondeu Orpanto, cofiando o cavanhaque branco. – Esperem um pouco, falarei com ele.

Mas Lotar não estava de fato pensando em dormir tão cedo. Em seu gabinete, ocupava-se em redigir umas notas referentes à sua recente viagem por Trupinas, ao sul de Megalânia. Trouxera muitas recordações interessantes do país dos anões meridionais. Sobre isso haveria de versar o seu próximo livro de viagens.

- Clientes a essa hora, Orpanto?

- A elfa Ariel Lux, e o humano Paul Conrado, Lotar.

- Ariel Lux? Ela mesma? Essa eu conheço! Uma excelente elfa dos bosques...

- Posso mandá-los entrar?

- Claro que sim, Orpanto. Eu andava mesmo meio entediado, e sabe como é, na minha idade fico com medo de enferrujar se não voltar à atividade. Espero que ela esteja me trazendo algum caso bem suculento.

- Ela é muito orelhuda, isso sim.

- Bom, faça-a entrar.

Lotar não nutria qualquer tipo de preconceito em relação às orelhas de elfos, diga-se de passagem.

A elfa entrou e cumprimentou o detetive, apresentando em seguida o Sr. Paul Conrado, agente de seguros da Interlux.

- Eu soube que a sua empresa tem andado de vento em popa – observou Lotar, depois de pedir a Orpanto que preparasse um chá de alcachofra para todos os presentes.

- Realmente, hoje em dia todo mundo quer fazer seguro de vida. Até mesmo os gnomos, apesar de viverem séculos...

- Quando estive entre eles fiquei com um tremendo complexo de inferioridade, viviam contando experiências passadas há 900 anos atrás...

-Mesmo uma elfa como eu não alcança a longevidade deles. Mas vocês, humanos, precisam evoluir com a sua medicina! E parar de comer essas besteiras que vocês adoram, como frituras...

- Até que eu sou um dos que se alimentam melhor... tomo muito chá, como você sabe. Esse de alcachofra que o amigo está preparando, e chá de morango, de caqui, de cupuaçu, de erva cidreira, de mesantópis, de ariartis, de carqueja...

- Senhor Lotar, não poderíamos entrar no assunto, que é urgente?

- Bem pensado, meu caro. Que crime é esse que os trouxe até aqui?

- Aconteceu no castelo de festas Iguatemi, em Bolônia. Um mago humano muito conhecido, Ártemis Olovino, foi encontrado morto com a sua própria espada mágica enterrada em seu peito. Isto é uma coisa que não poderia acontecer, pois uma arma mágica por via de regra não se volta contra o seu possuidor. O Delegado Ardósio está desorientado, nunca viu acontecer uma tragédia dessas em seu distrito e teme consequências terríveis – explicou a elfa.

- Que tipo de consequências? – indagou o detetive, retirando a chávena fumegante da bandeja recém trazida pelo seu amigo.

- Não sabemos o que fará a Irmandade da Sombra Persistente, à qual pertencia Ártemis e da qual era o atual Grão-Mestre. Há elementos assaz vingativos nessa ordem e tememos que eles se voltem contra inocentes, se o culpado, ou os culpados, não forem revelados – esclareceu Paul Conrado.

- Compreendo – falou Lotar, enquanto remexia com o saquê na água fervente. – E o que é que vocês dois têm a ver com essa história?

- Nós estávamos lá – respondeu Ariel. – Por isso somos também considerados suspeitos.

- E acham, com certeza, que a polícia não resolverá o assunto. Por isso vieram a mim, não é isso?

- É claro – disse Paul. – Conhecemos a sua grande fama.

- Está bem. Verei o que posso fazer. Orpanto, meu caro amigo, parece que vamos sair um pouco da nossa merecida aposentadoria.

- Que eu saiba, nós não nos aposentamos oficialmente – replicou o outro, entediado.

- Mas diga, Ariel: esse caso tem a ver com a sua empresas de seguros?

- De certa maneira sim, Lotar. Eu e Paul estávamos lá para avaliar o castelo de festas, que o grupo capitalista ao qual pertence pretendia segurar, e isso vai nos render uma fortuna. Se o negócio for concretizado, é claro.

Orpanto olhou admirado para o seu amigo e guru. Cada vez mais achava espantosa aquela amiga elfa do mestre detetive. Uma elfa pensando em altos negócios monetários!

- Primeiramente – escandiu Lotar – desejo saber o que fazia o mago. Na ocasião havia festa no palácio?

- Havia, sim – explicou a elfa. – Eu e Paul até fomos convidados a participar, embora estivéssemos a negócios. Ártemis era um dos principais convivas.

- E qual era a razão da festa?

- Castelos de festas não precisam muito de razões para agendar os seus eventos, mas o fato é que se tratava de um noivado. Ginger, a famosa atriz, e o elegante “playboy” Ciranot Locusto.

- Eu não acreditei quando li nos jornais que esse farsante ia casar com uma grande atriz...

- Francamente, nem eu – disse Orpanto, numa de suas raras intervenções.

- Suponho que os noivos é que organizaram a lista de convivas...

- Casamentos têm de ser públicos, e assim também festas de noivado, mas após a cerimônia haveria um banquete para os convidados oficiais.

- Só que o banquete foi cancelado – acrescentou Paul. – Ninguém teria coragem de comer após a descoberta do corpo do mágico.

- Diante disso, eu fico imaginando – devaneou o detetive – o que terão feito com a comida? Jogar no lixo todo um banquete é um crime!

- Isso não ocorreu, mestre. Aquele rei anão, Demóstenes, mandou recolher tudo e levar para o seu reino. Considerando o apetite que os anões possuem, devem ter acabado com tudo no dia seguinte.

Lotar e Orpanto não puderam deixar de rir.

- Está bem, gente. Acho que Orpanto e eu podemos dar um pulo lá amanhã. Concorda, Orpanto?

- Por mim está tudo bem.

 

 

CAPÍTULO 1

 

 

A DESCOBERTA DA AMPULHETA

 

 

Orpanto estava acostumado com as decisões de Lotar, que via de regra não necessitavam de longo amadurecimento como vinho em barris. Lotar tomava resoluções rápidas como a corrida de um papa-léguas do deserto de Ismir. Viajar até Bolônia? E por que não? Afinal a distância era de poucas léguas, que facilmente podiam ser vencidas pelo conversível elétrico do detetive. Lotar deu as suas instruções à criadagem, com especial ênfase no cuidado com os muitos animais de estimação – gatos olhudos, corujas canoras, o cão-lontra Elesbão e os pôneis. Principalmente o pônei Ligeirinho, xodó do dono da casa. Os visitantes tinham retornado ao castelo no dia anterior, pelo trem noturno. Orpanto nutria uma íntima preocupação, ainda que o pessoal dos Centros de Valorização da Vida, aos quais ele pertencera no passado, dissessem que as pessoas não deviam se preocupar, mas apenas se ocupar das coisas. Ele não conseguia tal desprendimento, e num caso como aquele preocupava-se com os policiais que iriam encontrar pela frente, pois tais indivíduos nem sempre demonstravam boa vontade para com as atividades cerebral-detetivescas de Lotar. E preocupava-se também com a temível Irmandade da Sombra Persistente, cujos membros haveriam de estar possessos pelo assassinato de seu par.

 

 

imagem pixabay

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 24/04/2023
Reeditado em 28/05/2023
Código do texto: T7771929
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