SEMENTES MALDITAS — ANTHONY BURGESS (1962)
SEMENTES MALDITAS — ANTHONY BURGESS (1962)
“EU SOU, POR definição um romancista. Penso que é um ofício inofensivo, embora não seja considerado em todo lugar, respeitável”. Anthony Burgess, autor do icônico “Laranja Mecânica” publicou “The Wanting Seed” (Sementes Malditas) em 1962. Uma governança altamente burocratizada (qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência) dirige um país superpopuloso com leis que objetivam reduzir radicalmente a natalidade. Parir um filho por ano não é uma atitude ajuizada. A homossexualidade é exaltada pela política de controle da natalidade. Ser heterossexual é um estigma.
DESDE CRIANÇA minhas historinhas, criadas de uma imaginação infantil, simples, tosca, era motivo da repreensão de Mãezona, ou seja, de todos. Ela controlava emocionalmente cada qual e todos os familiares. Não havia nada que eles fizessem ou sentissem que ela não saberia estar a acontecer. A vitória da guerra que ela e o marido criaram em meu desfavor, tinha por objetivo, obscuro e contido, me tornar um perdedor, para que cada um deles pudesse ter a oportunidade de crescer até a idade juvenil e tornarem-se adultos. Eu não dividiria os parcos recursos da família, com investimentos em minha educação. Programa do estava eu para a aceitação do que deles sobrava.
SE MEUS PLANOS pessoais de vida vencessem a miserável condição de carências às quais era eu instado a aceitar, eles todos se sentiriam derrotados. Eles, os filhos. Ela, a prole, porque Mãezona Brunilda, a empoleirada Valquíria da mitologia nórdica, realeza na Saga dos Volsungos, estava sempre a afirmar, explicitamente, a superioridade da vontade dela, sobre minha vontade de ter meus direitos respeitados. Mas eu era o filho que sobra. O incômodo. O desagradável. O constrangedor. O inconveniente. O embaraçoso. O difícil. O impróprio.
COMO PODERIAM investir o mínimo em minha educação, sem “tirar o pão da bocados irmãos menores”??? Não era apenas ela, a imoderada contra meus direitos. Eram todos eles, influenciados profundamente pela dominação emocional sobre todos eles. O Inconsciente Coletivo Familiar suscitava o apoio do Inconsciente Coletivo da Vizinhança, do Inconsciente Coletivo Social. Eu estava cercado de renhidos inimigos camuflados em irmãos de sangue. Se eu vencesse em minhas competências literárias, todos eles estariam irremediavelmente derrotados. Estes meus objetivos não podiam ser alcançados.
SE ESTES MEUS objetivos fossem alcançados, todos eles estariam desmascarados. O Inconsciente Coletivo Familiar estava a serviço dela, Brunilda, a Mãezona empoeirada. Os filhos, a prole, representavam o conjunto de suas ambições de matriarca perversa. Nessa família as vontades se encontravam no Delta das vaidades dela. Nele estava a confluência, o entroncamento, a conquista maior da vida de cada um deles: a animação mais atrativa no entretenimento familiar superlativo de seus muitos transtornos mentais.
A HOLANDA, A Colômbia, a Ucrânia e os Estados Unidos, segundo estudos recentes da Organização Mundial de Saúde, têm estimativas de prevalência mais elevada na parte relevante da população com transtornos mentais. No Brasil, a tristeza persistente, o desalento, a melancolia (sintomas de depressão) estão em alta na população. As questões sociais estão intimamente associadas às mais diversas e hostis manifestações dos desvios e deformações de comportamento.
ESSA INTENCIONALIDADE familiar estava às claras. Toda a prole dela participava e se comprazia dessa participação. Era como se estivesse numa guerra íntima na qual tinham a mais absoluta certeza de que a teriam vencido sem mais embates. Sem mais conflitos. Afinal, se eu esboçasse alguma reação, estaria imediatamente ameaçado de ser internado numa instituição manicomial. O Inconsciente Coletivo Familiar se comprazia na certeza da vitória. Eu teria de me conformar em ser o derrotado “Bode Expiatório” de suas complicações financeiras, econômicas, educacionais, religiosas e cármicas.
BRUNILDA MÃEZONA não era apenas, fisicamente, ela. Ela, sua vontade, seu narcisismo mecânico, doentio, sua vontade de mostrar a todos que era ela quem mandava e desmandava, que nenhum membro da família parido ou vomitado de suas entranhas, fosse besta, ou caísse na desventura de contestá-la, sairia íntegro da tentativa. Todos tinham um medo mórbido de limpar os olhos, ou retirar a cera dos ouvidos, para ver e ouvir com nitidez, quanto o sadismo superlativo de Brunilda Mãezona era preponderante.
VER A VERDADE do que acontecia era tarefa fácil. Nenhum deles, seus demais filhos, precisava se esforçar para traduzir os sentimentos dela para comigo. Ela se infiltrara na mais profunda afeição que um filho poderia ter para com a mãe, de modo que essa afeição se tornava incontestável, mesmo sabendo que mantê-la em si, significava estar a fazer parte da perfídia peçonhenta do jogo maternal dela. Ver e ouvir e falar era, para cada um deles, membros da prole, ver, ouvir e falar o que ela queria que fosse visto, ouvido e falado. Brunilda, a toda poderosa Mãezona, não queria saber de ser contestada. Principalmente quando estava realmente errada. E sabia disso.
ERA DE DENTRO para fora de cada um de seus filhos que ela se manifestava com mais vigor e precisão. O fato dela ter um corpanzil externo era de menor monta. Ela estava quanticamente presente no cerne, no âmago, na alma de cada um deles. E delas. Em seus pensamentos, palavras e ações. Quem poderia ousar contestar os seus domínios??? Quem o fizesse estaria a contestar a si mesmos. À sua própria inexistência.