A PROFESSORA

A PROFESSORA

-conto-

I

De repente intensa tempestade caía sobre a cidade de V. Os rios que cortavam o

município transbordavam. Relâmpagos e fortes trovoadas invadiam os ares, deixando em polvorosa a população. Na verdade, jamais o povo houvera de passar por tais dissa-

bores, era a primeira vez, após muitos anos, que a cidade de V. recebia tamanha enxur-

rada. O resultado desse infortúnio de imediato ganhou espaço nos noticiários locais. Quedas de barreiras, ruas alagadas, casas inundadas, rodovias rachadas e mais uma cen-

tena de outros inconvenientes distúrbios colocavam o burgo em situação de emergência.

Olívia tudo observava pelas vidraças da janela dos seus aposentos. Tremia da ca-

beça aos pés, um tremor que evidenciava o medo que se instalara em seu íntimo. Fervi-

lhavam-lhe os pensamentos. Sabia que não conseguiria dormir naquela noite medonha.

Tomou do celular e tentou ligar para o namorado, não obstante a ligação não se comple-

tava, dava insistentes sinais de “ocupado” e, às vezes, “desligado ou fora de área”. Es- tava, evidentemente, assaz nervosa. Finalmente, após longas e cansativas tentativas, eis

que o namorado atende à sua ligação:

- Samuel, meu amor, venha para cá, estou com muto medo. Nunca vi tanta chuva nesta cidade. Por favor, venha o mais depressa que puder, meu amor, por favor...

Do outro lado, Samuel parecia tranquilo, se bem que também estivesse deveras

preocupado, e não era para menos do que isso.

- Olívia, acalme-se. Sei que a chuva é torrencial e já provocou inúmeros danos, contu- do nada podemos fazer, a não ser ficar em casa e aguardar que tudo passe.

- Não seja mal, Samuel... Você sabe que moro sozinha e estou tremendo toda, vejo a ho-

ra não me sentir bem e ocorrer alguma coisa comigo. Pense nisto...

- Deixe de drama, Olívia! – Protestou o rapaz – Logo a tempestade amainará e tudo vol-

ta à normalidade. Além do mais, não há como sair de casa, as ruas estão inundadas e vo- cê sabe que resido distante daí. Impossível sair de casa neste momento.

- Você não tem um “pingo” de consideração para comigo. Em seu lugar, eu já estaria aqui, dando todo o apoio necessário...

- Não seja ridícula! – Colocou Samuel – Vocês, mulheres, são todas iguais. Tome um comprimido que seja calmante e se deite, em poucos minutos estará dormindo e sonhan- do com os anjos. Este é o único apoio que posso dar-lhe nesta hora. Nada mais posso fa- zer, pois caso eu saia, estarei pondo em risco minha vida, pense nisto também...

Nada mais disseram. Ambos desligaram o telefone. Olívia buscou fazer o que lhe dissera Samuel e, realmente, um sono avassalador tomou conta do seu corpo e ela per- mitiu-se desabar sobre o leito e, se sonhou, não se recordou posteriormente.

Olívia Danúbio era uma mulher jovem, contava com seus 28 anos. Professora, le- cionava Matemática numa escola da Prefeitura. Ganhava o suficiente para viver bem, já que morava só. Não havia irmãos e seus pais haviam falecido num acidente rodoviário há três anos passados. Daí em diante, conheceu algo de si que desconhecia: era profun- damente medrosa e nervosa, provavelmente trauma concernente ao destino que houvera

abatido sobre seus genitores. Solteira, um dia conhecera Samuel, um homem um pouco mais jovem, 26 anos e que era formado em Direito e exercia a profissão de advogado.

Estava “perdidamente” apaixonada por seu namorado e até já confabularam sobre a pos- sibilidde de um breve casamento, até porque Samuel, igualmente, “ardia” de paixão pela professora.

Aquela madrugada ficara impregnada em seu íntimo. “Como Samuel foi capaz de

abandonar-me numa noite sinistra daquela”, pensava em seu juízo. Por mais que conca- tenasse o seu pensamento, não conseguia compreender a posição de Samuel de deixá-la sozinha perante tamanha catástrofe. Ele fora bastante cruel, refletia, e iniciou-se a pen- sar numa forma de dar-lhe o “troco”.

Tudo aconteceu apenas durante a madrugada. Ao despontar o novo dia, um sol ra- diante brilhava no horizonte e difícil seria acreditar que há poucas horas atrás houvesse ocorrido uma brutal tormenta.

O novo dia era uma sexta-feira. Como sempre, Olívia e Samuel se encontravam para o almoço no restaurante de costume.

- Oi, querida, como se sente agora? – Perguntou Samuel.

Olívia deu de ombros.

- Como você acha que estou? Satisfeita com sua covardia? Que espécie de homem é vo- cê, que larga sua namorada em instantes tão perigosos?

- Interessante o seu pensar! – Observou Samuel – Você reside num sexto andar envolta de grande segurança, enquanto eu moro num bairro distante, numa casa que fica num lu- gar baixo e que tinha a rua encharcada... Como você é imprudente! Onde vivo havia de- zenas de carros cobertos de água, algumas casas com água até o teto e, por sorte, não ti-ve a residência tomada de lama, a água ficou pelo jardim. Eis as fotos, veja você mes- ma como eu estava “ilhado” e impossibilitado de sair...

- Não quero ver nada – Colocou Olívia – Tomei uma decisão.

- Que decisão tomou? – Quis saber Samuel.

- Pelas atitudes que as pessoas tomam é que é possível conhecê-las. Não quero me casar com um “covarde” e, por esta razão, está terminado nosso namoro. Não tem volta, é uma decisão irrevogável.

Pego de surpresa, Samuel tinha os olhos marejados de lágrimas.

- Ainda bem que Deus me fez ciência de você antes de assinarmos os papéis do consór-

cio – Disse o advogado – Passar bem!

E retirou-se. Ambos sofreram irremediavelmente, porquanto se amavam, porém nem sempre os que se amam podem viver juntos.

II

Alguns meses se passaram. Ainda no pensamento de Olívia, Samuel se fazia pre-

sente. Difícil é esquecer-se a quem se ama, no entanto Olívia não era uma mulher fácil

para se conviver. E quando tomava uma decisão, por mais que sofresse, nunca mudava

o seu comportamento. Era uma criatura de uma só palavra, isso desde a infância, o que

certamente bastante “trabalho” dera aos seus pais.

Houve uma festa na escola em que lecionava e os discentes do estabelecimento compareciam devidamente munidos dos genitores. Foi nesse dia que Olívia travou co- nhecimeto com Humberto, pai de Alcides, um estudante do 9º.ano. Conversa vai, con- versa vem, no término dos festejos deixaram Alcides em casa e rumaram a um barzinho,

onde puderam ficar mais à vontade. Confabularam durante algumas horas, trocaram bei-

jos e abraços e ali se iniciavam num novo romance.

Humberto era viúvo fazia três anos e só havia Alcides como filho. O namoro de

ambos não ficou escondido da escola, logo todos sabiam que a professora de Matemáti- ca estava de relação amorosa com o pai de um dos alunos. Os comentários varreram o

colégio e Alcides era motivo de gracejos por parte dos colegas.

- Hum, agora não precisa mais estudar Matemática, terá a professora como madrasta...

Alcides ficava encabulado e respondia aos insultos por monossílabos:

- Pois é... – Retrucava.

Logo o tempo correu. Há dois anos que Humberto e Olívia estavam de namoro

firme, inclusive já se conheciam intimamente, pois Olívia estava grávida.

- Humberto, tenho algo dizer-lhe...

- Sim, pode falar.

- Você será pai outra vez. Estou esperando um filho seu...

- Como? O que foi que disse? – Indagou atônito.

- O que você escutou: estou grávida de você!

- Mais é impossível que este rebento seja meu... Sempre usei “camisinha” em nossas re-

lações íntimas. Você me traiu, Olívia?

Pega de surpresa pela reação de Humberto, Olívia se pôs a chorar.

- Não, eu jamais o trairia. O filho é seu, acredite em mim...

- Você pensa que sou ingênuo? Não, eu não sou. Muito pelo contrário, sou muito esper-

to e não deixarei isto passar em “branco”. Termina aqui e agora esta nossa relação. Não

me procure mais e não se dirija mais a Alcides.

Humberto tirou Alcides da escola e o colocou em outra. Olívia teria de arcar so- zinha com os preparativos da chegada do bebê. E foi uma “luta” terrível, porque ela ha- via em si muitos enjoos. Fora uma gravidez complicada, até que chegou o dia do nasci- mento.

- Parabéns, Olívia – Cumprimentou a enfermeira – É um menino e cheio de saúde.

Olívia não tivera mais notícias de Humberto e muito menos de Samuel. Thiago já

contava três aninhos e era a sua alegria. Contratou uma babá para cuidar da criança en- quanto saía para dar suas aulas ou quando tinha algum compromisso importante a cum- prir fora de sua residência.

Tudo seguia tranquilo até que conheceu Amadeu. Este logo se “engraçou” da pro-

fessora e mesmo sem namoro, logo propôs casamento.

- Como quer que eu aceite um pedido desses se não o conheço direito?

- Sou um homem muito rico, Olívia. Nunca me casei antes, porquanto você é a primeira mulher que me traz alucinações sensuais. Casando comigo, você não precisará mais ter de ensinar, apenas será a administradora do nosso lar. Por favor, aceite...

- Não sei, estou confusa. Não pode dar-me um tempo para pensar? – Pediu.

- Não. É tudo ou nada. Responda agora, detesto esperar por aquilo que quero.

- Qual sua idade, Amadeu? Ah, esqueceu que sou mãe solteira?

- Tal fato não tem a menor importância para mim. Cuidarei de Thiago como se fosse ele

meu filho de sangue. Tenho 42 anos. E então, aceita?

Perturbada ao extremo com esta novidade, Olívia estava realmente sem saber o que dizer. Súbito tomou uma decisão:

- Sim, aceito. Contudo me explique o que faz para ser tão rico...

Olívia percebeu que Amadeu ficara meio nervoso com a interrogação e a resposta levou alguns minutos para ser dada.

- Responda, por favor – Solicitou Olívia.

- Não tenho qualquer formação acadêmica – Disse Amadeu e prosseguiu – trabalho com objetos de importação e exportação, o que me dá uma excelente remuneração e há mui- tos anos que estou nesta atividade.

- Que tipos de objetos? – Insistiu Olívia;

- Com o tempo você saberá e até poderá ajudar-me em alguns trâmites.

Apesar de haver concordado com o casamento, especialmente porque Amadeu era

muito bonito, Olívia ficou com a “pulga atrás da orelha”. Por que não dissera ele o que importava e exportava? Bem, tal coisa era fato que ele buscaria descobrir.

III

O consórcio se realizou sem a presença de convidados. Amadeu não suportava ter de dar satisfações às pessoas sobre seus atos e seus negócios. Olívia houve de deixar a escola e se tornou “rainha do lar”. Não se esquecera dos seus propósitos e, sem que o marido desconfiasse, iniciou-se num curso de investigação particular pela internet, ela viria a ser detetive e tudo às escondidas. Não entendia a razão de Amadeu sair, às vezes,

em plena madrugada e passar de dois a três dias ausentes, até sem dar qualquer notícia.

Cinco anos fazia que Olívia havia se casado. Até este momento, nada conseguira averiguar sobre as atividades de Amadeu. Já concluíra o curso de detetive e, agora, bus- cava informações sobre concursos públicos. Algo insistia dizer em sua mente que o tra-

balho do esposo era alguma coisa proibida, isso devido ao silêncio que ele fazia a res-peito.

Não demorou muito para que tudo viesse à tona. Numa das ausências de Amadeu,

Olívia prestou atenção em uma reportagem que fazia a televisão em um dos jornais que

diariamente presenciava. Ficou assaz atenta àquele noticiário: POLÍCIA FEDERAL

DESMONTA GRUPO DE TRAFICANTES DE ANIMAIS SILVESTRES, PRENDE AMADEU DOS ANJOS, CHEFE E LÍDER DE UMA GRANDE ORGANIZAÇÃO.

Pronto! Finalmente desvendara as atividades do marido. Um traficante! Bem que seu íntimo não a traíra. Pensava agora em como proceder, haja vista que a polícia have-ria de procurá-la, pois era a esposa do famoso traficante. E não se houve o contrário, lo- go estava Olívia a prestar depoimento do que sabia e do que não sabia.

Obviamente fora inocentada de qualquer culpa. Provara por a+b sua inocência. E

teve que correr ao banco a fim de tomar conhecimento das economias de Amadeu e fi-

cou perplexa, ao desvendar o saldo da conta: duzentos e cinquenta milhões de reais esta-

vam ali depositados. Chegou em casa mais perturbada ainda: o que faria com tanto di-

heiro já que como esposa do traficante pôde mexer e remexer no numerário, principal- mente após a morte de esposo? Bem, Amadeu não “durou” nem três noites na prisão, fora brutalmente assassinado, talvez por ser arquivo bastante valioso.

Durante o tempo em que permanecera casada não teve mais filhos. Thiago era o único rebento e havia crescido satisfatoriamente. Ninguém procurou Olívia por causa do dinheiro, nem mesmo as organizações estatais. O saldo lá permanecia e, agora, ela fazia

planos de como usar tamanha riqueza.

Resolveu voltar à educação, era o que sabia fazer e o que realmente gostava e ti- nha prazer. Construiu um grande prédio e, nele, abriu um estabelecimento de ensino privado para alunos desde os jardins da infância até o ensino médio e sua escola fez grande sucesso. Cobrava uma mensalidade mínima e pagava de forma excelente os seus

funcionários. Tudo caminhava de maneira estupenda em sua vida, até que um dia rece-

bera uma inesperada visita em sua sala na escola.

- Humberto, você por aqui? – Indagou, totalmente surpresa.

- Sim, eu mesmo, em carne e osso...

- E o que você quer? – Quis saber Olívia.

- Algumas coisas que me pertencem...

- Coisas que pertencem a você? Não estou a entender...

- Primeiro, quero reconhecer meu filho, Thiago.

- Hum, então admite que é o pai dele?

- Sempre soube que era o pai dele, sempre soube.

- E por que só faz isto agora, depois de tantos anos?

- Não sei, Olívia, quiçá você me ache meio “louco” e provavelmente até seja mesmo...

- Thiago não quer saber de conhecer o pai, já tirei tal prerrogativa da cabeça dele.

- Ele vira comigo, quer queira, quer não queira...

- Isto é uma ameaça?

- Mais do que uma simples ameaça. Saiba que Thiago já está em meu poder, eu o raptei

enquanto você está aqui a dirigir nosso negócio... Ei, não grite, será pior.

- Diga onde está meu filho, salafrário, diga... E que história é esta de “nosso negócio”?

- Você fez uma excelente administração do nosso dinheiro, parabéns...

- Nosso dinheiro? Não sei de quê está falando...

- Ah, não? E os duzentos e cinquenta milhões de reais que estavam no banco em nome de Amadeu, hein? Este dinheiro me pertence...

- Como pertence a você? Amadeu nem o conhecia....

- Isto é o que você pensa... Amadeu trabalhava para mim, era meu homem de confiança e como foi preso e para não abrir o “bico”, foi executado na prisão...

- Deus, meu Deus, quanta sujeira!

- Vamos, não percamos mais tempo. Não quer encontrar Thiago?

- Sim, eu quero.

Amplamente desesperada por encontrar o filho, Olívia acompanha Humberto. No meio do caminho e diante de um imenso precipício, Humberto faz com que Olívia desça do carro e a empurra para a morte.

Humberto estava fora de controle e após executar Olívia, dirigiu-se até onde esta-

va Thiago. Havia deixado o garoto amarrado em seu apartamento, mas quando retornou

o menino havia conseguido livrar-se das cordas e, caminhando pela habitação de forma desordenada, acabou por encontrar uma arma carregada em uma gaveta do guarda-roupa do quarto de Humberto Este o achou de arma em punho e apontando o revólver em sua

direção...

- Ei, garoto, larga esta arma, ela está carregada...

- Mentira sua, você não é meu pai coisa nenhuma... E, sem querer, o dedo de Thiago manejou o gatilho... A bala acertou o coração de Humberto, que instantaneamente ali mesmo entregou sua alma às trevas.

FIM

DE IVAN DE OLIVEIRA MELO

Ivan Melo
Enviado por Ivan Melo em 20/03/2023
Código do texto: T7744736
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