MINHA AMA E EU — FRIDA KAHLO (1937)
MINHA AMA E EU — FRIDA KAHLO (1937)
“MEU NASCIMENTO” é uma pintura de 1932 na qual ela representa a rejeição e o desamparo de uma criança, que parece mais um dejeto sendo expelido das entranhas da mãe, do que um bebê que sai do ventre da genitora após uma gestação de nove meses. A criança, uma menina, está nascendo como se sem a participação da mãe: a pintura testemunha o desterro de um indefeso ser humano. A expulsão dela das entranhas de uma matriarca que não está nem aí para uma vida que sai de dentro dela sob o olhar de uma imagem da Virgem dos Lamentos. Logo acima do espaldar superior da cama.
MÃEZONA NÃO poucas vezes repetia que, se pudesse escolher, teria tido todos os filhos do sexo feminino. Testemunho de sua aversão exacerbada pela figura sacrificada do marido e a dificuldade que tinha em dominar a vontade dos filhos nascidos masculinos, masque ela tentava emascular de todas as formas possíveis. Desvirilizar-me parecia ser sua principal meta na vida familiar. Uma e outra namoradinha minha ela descartava. Dizia que eu não tinha idade nem condição de assumir responsabilidade. Minha namorada era ela e ninguém mais. Ela quem decidia o que fazer e o que não fazer de minha vida. Era dessa forma que o mundinho familiar girava.
SE EU NÃO gostasse da vida como ela era, dizia ela que eu buscasse outra mãe, outra família. Era como se estivesse a dizer, como na música de Luiz Melodia: “eu choro tanto, me escondo e não digo/Viro um farrapo, tento um suicídio/Com caco de telha, com caco de vidro”. Essas imagens poéticas não correspondem ao certo minha realidade de criança em mãos criminosas de uma matriarca maluca e do marido. Chorar eu não chorava, exceto quando estava sendo espancado ou, as lágrimas rolando pelo rosto devido a explosão de dor de cabeça, efeito das enxaquecas que eu aguentava calado. Mesmo nessa condição extrema de opressão familiar, não pensaria em suicídio. Sem este bem da vida física, eu seria apenas mais um espírito a vagar num ambiente fluido adoecido.
APROXIMADAMENTE um milhão de pessoas retiram-se da própria vida todos os anos. A cada 45 minutos um brasileiro se suicida nos ambientes de trabalho, escolas, lares nas comunidades religiosas. LGBTs têm cinco vezes mais possibilidades de cometer suicídio do que heteros. 32 pessoas se suicidam no Brasil por dia. O Brasil lidera, em lista de onze países, os índices de ansiedade e depressão: 63 e 59% respectivamente. Os estressores ambientais, doenças cardiovasculares, transtornos mentais depressivos na população urbana, fatores socioeconômicos adversos, são causas, mais das vezes, a considerar.
QUANDO NASCEU, a mãe de Frida não tinha leite para amamentá-la. Uma situação semelhante aconteceu quando nasci. Disse ela que não tinha leite materno, por isso recorreu à uma ama de leite afrodescendente para amamentar-se. A extrema ansiedade de Brunilda Mãezona por ter um magote de filhos, estava em curso. Ter um filhote por ano era para ela uma maneira de dizer a todos que estava no centro das atenções da família. Não era de todo uma inútil. Ela era muito importante quando ficava grávida. A importância dela definhava quando as crianças começavam a crescer e Mãozona Brunilda não tinha o mínimo controle sobre os filhos e seus projetos de vida inexistentes.
SE O CARO leitor acessou a página da Internet que mostra a pintura de Frida Kahlo “Minha Ama Eu” que titula este texto, vai ver uma ama de leite indígena, corpulenta, sem feições precisas, usando uma máscara pré-colombiana no rosto, a segurar no colo um bebê com cabeça desenvolvida de adulto. Atrás dela vemos um cenário com visual indefinido. Sugerindo que o lugar não-identificado, pode ser em qualquer parte. Em qualquer parte do Brasil ou do planeta, uma condição de nascimento semelhante pode acontecer. É bem possível que aconteça.
OS CAMINHOS que conduzem ao bico da mama esquerda da ama de leite, dizem muito sobre a farta faculdade de amamentar bebês de outras raças europeias, por parte de mulheres de populações nativas das américas. Observe, caro leitor, a separação entre a ama de leite e a criança. Como se elas fossem de duas dimensões diferentes, e a amamentação fosse o único elo entre ambas.
A FARTURA DA mama direita revela uma capacidade de doação de vida e alimentação singular, inigualável, sui generis. À miúda Frida certamente não faltará o alimento de que sua própria mãe era carente. Não apenas o corpo, mas o espírito dos povos nativos, colonizados, é mais, muito mais resiliente. Como se estivesse sempre pronto a alimentar crianças, bebês de colo, e salvar suas vidas, mesmo que essas vidas lhes resultassem em esquemas de dominação, escravização e posse de suas riquezas naturais. E devastação ambiental de suas terras e rios.
FRIDA KAHLO pintava a si mesma “porque sou sozinha e porque sou a matéria e o conteúdo que melhor conheço”. A singularidade estética da sua maneira de expressar: o tempo, o espaço, o corpo e suas possibilidades de resistência à dor. Frida nos encontra em conexão com seus sentimentos. Convida-nos à reflexão sobre os nossos afetos, querenças, afinidades, tristezas, aflições, afinidades.
ELA NOS DIZ que, apesar de todos os problemas que possam nos tiranizar e oprimir, há em cada um de nós, reservas de energia que precisamos descobrir e utilizar. A arte de pintar autorretratos se conecta à arte literária de seus diários íntimos: neles estão presentes os fluxos consciente e inconscientes em desvios de direção originais. A transparência sugere um salto para outro momento de transparência ainda maior. As cores e luzes de suas pinturas, de um lugar para outro, nos sugere um desvio em nossa própria trajetória fenomenal. Existencial.