“ESQUELETOS NUM ESCRITÓRIO” — PAUL DELVAUX (1944)
“ESQUELETOS NUM ESCRITÓRIO” — PAUL DELVAUX (1944)
APÓS UMA enfermeira vizinha vir aplicar durante algum tempo injeções de Benzetacil na filharada de Mãezona, para nela combater o surto familiar de sífilis, ela, como sempre, ela inocente, parecia não saber de onde vinha o flagelo, a pestilência caracterizada por lesões na pele e mucosas. Seus filhos viviam com a pele cheia de perebas que ela, uma curandeira proveniente da época das receitas de curas medievais, aplicava esparadrapo quente nas feridas dos filhotes menores e maiores. Dizia ela que era:
— Cura na certa.
— Mas dói, mãe, dói muito.
— Deixem de bancar os molengas, não querem ficar curados???
— Mas, quem disse que isso cura??? Essa pergunta era respondida com tapas na boca.
— Tu és besta, moleque, duvidando de tua mãe??? Eu teria todo esse trabalho se não tivesse certeza??? Minha vó Carmó, minha mãe, curavam feridas desse tipo desse jeito. Eu aprendi a educar vocês com elas.
EU CALAVA para não ser espancado na boca por contestar esse método avoengo de curar feridas na pele provocadas pela sífilis e pelo contato com ratos e baratas que faziam a festa no esgoto que perpassava o corredor da casa. Ela fingia ignorar a sífilis que Paizão Coisinha esfregava na gengiva dos filhos, após esfregar os dedos nas manchas de porra do pijama, durante o período que os mantinha no regaço enquanto se balançava na rede de tucum na sala de jantar, a cantar canções de corno.
A COISA DA pedofilia de Paizão ficava tão escancarada, que não poucas pessoas vizinhas adentravam a sala pelo corredor aberto, e ficavam, furtivamente, cochichando entre si, olhando Paizão cantando canções do cancioneiro chorão da MPB da época, enquanto mantinha crianças no centro de sua intimidade. O odor de esperma se espalhava pela sala. Por vezes, quando descobertas, essas pessoas curiosas, inventavam uma desculpa esfarrapada, tipo:
— Dona Mãezona está??? Queremos falar com ela.
HOJE, PENSO que aquele casal de criaturas bizarras, que me usavam enquanto “bode expiatório” de seus desvios, lapsos, falhas, atos falhos, faltas, erros, crimes, culpas, que, para se livrarem de suas responsabilidades familiares para comigo, estavam, eles também, sendo vitimados por famílias que, em seu entorno social, os estavam usando, enquanto núcleo familiar de observação de suas próprias culpas, crimes de intimidade, lapsos e desvios: uma sociedade satanizada pela concupiscência, pelo desprezo às suas crianças, que brincavam de injúria, calúnia e difamação com terceiros. Certamente sentiam-se mais confortáveis ao ver em Paizão, uma justificativa para não se sentirem sós em seus erros.
AFINAL, EM frente à porta da rua de sua casa estavam a habitar muitos familiares da família Portela que tinham contato visual com as encenações familiares todos os dias. Certa vez uma de suas irmãs me chamou e me disse:
— Eu posso adotar você. Você não prefere vir morar aqui em nossa casa??? Você terá mais condições de se educar, e não vai levar surras de seu pai com frequência. — Eu pensava por rápidos segundos na possibilidade. Mas aí vinha a força dominante de Mãezona que parecia me abarcar e conter com dizeres tais como:
— “Com quem com suas boas Marias faz, em sua casa está em paz”. Eu pensava: essas também são Marias. Maria Teresa, Maria das Dores, Maria Luíza... Mas daí vinha um arrependimento antecipado. A onipresença de Mãezona também dizia:
— “Não há ninguém no mundo que saiba zelar e proteger um filho do que a própria mãe”. — “Nem toda mãe usa coroa, mas toda mãe é do lar a rainha”. — “A mãe tudo dá, sem esperar nada em troca”.
— “Tudo sou eu nessa casa”.
— “Criança que tem mãe não precisa de mais nada na vida”.
UM AMONTOADO de culpa foi se juntando quando eu pensava que não estaria mais, todo dia, ao lado dela. Sem participar da vida de mal tratos à qual eu estava já afeiçoado. Eu ainda não tinha plena consciência de estar sendo boicotado profundamente por ela. Ela, que a cada dia me roubava a oportunidade de investir em meus próprios recursos, em minhas próprias estratégias de vida. Minha resposta, nos finalmentes da abordagem da vizinha Portela era sempre a mesma:
— “Não quero não. Obrigado, não quero deixar minha mãe”. Eu estava sendo criado para ser o tio Fred bobão da família. Talvez ela soubesse que minha resposta sempre seria essa. E por isso fizesse a oferta de adoção. Como vou saber ao certo até onde era sincera o mimo de amparo e acolhida dela??? Dizia também que uma outra irmã dela já adotara outra criança. Eu não estaria sozinho com outro irmão para brincar. Mas como a presença de Mãezona, seus filhos com quem eu convivera até então, não seria uma força de gravidade a me puxar até a antiga moradia???
A FAMÍLIA enquanto uma totalidade de seres me aprisionava subjetivamente. Criados que foram, meus irmãos, por protótipos de uma instabilidade emocional vivendo para afirmar a si mesma. Influenciados, os descendentes, por aquele casal de psiquismos que se hostilizariam sempre. O óbito do que viesse primeiramente a morrer, provocaria no sobrevivente, lágrimas. Lágrimas de crocodilo. Lágrimas de esqueletos.