“COMEDIANTE” — SENECIO — PAUL KLEE (1904)

“COMEDIANTE” — SENECIO — PAUL KLEE (1904)

NENHUM MEMBRO daquela família me via com bons olhos. Foram educados para isto. Mesmo que Mãezona simulasse o contrário. Todos estavam plugados no fato de que eu era uma ameaça à sobrevivência material deles, uma ameaça de dividir um pouco da pobreza familiar comigo. Pretendiam saber, melhor do que eu mesmo, o que era bom ou mal para mim. A força do Inconsciente Coletivo Familiar era superlativa. O que eu podia contra ela??? Talvez estivessem todos com medo de que eu cumprisse minha promessa de um dia revelar toda aquela insana relação de um pai pederasta e pedófilo e de uma mãe conivente com embuste familiar: denunciar seus corações e mentes infectados por aquela energia tenebrosa que os envolvia nas sessões de transtorno da preferência sexual paterna.

EU NÃO TERIA nunca um lugar em que pudesse ser ouvido e visto em minhas reivindicações de oportunidade de vida. Eu tinha em mente que tudo poderia terminar bem. Se eles não estivessem tão fanaticamente polarizados. O ódio de Paizão por mim, sua implacável concentração na negação de qualquer iniciativa minha, mesmo que ele dela se beneficiasse, não permitia que ele me visse como seu aliado. Não sei se consegui, neste romance/novela, fazer valer a arte literária que torna visível a realidade invisível. Meus leitores é que vão dizer se esta visibilidade é real.

AO VOLTAR DO RJ, Mãezona se dedicava a fazer valer seu tempo ensinando uma turma de alunas a modificar com pinças quentes, aquecidas em pequenas lamparinas à base de álcool, abrasadas por sobre um pavio, a forma de bonequinhas tipo Barbie, transformando-as em bailarinas, príncipes, nobres, reis, rainhas, bailarinas, anões, espadachins, palhaços.

TALVEZ ELA TENHA feito esse curso no intuito de, não apenas se divertir manipulando bonecas manualmente, já que não podia manipular como queria, a direção para a qual pretendia que eu seguisse. Depois da desfiguração das pequenas manequins, era só uniformizar as bonecas, vestindo-as a contento com calcinhas, saiotes, sapatilhas, pulseiras, culotes, colares e enfeites, finalizando com retoques de pintura nos olhos, nos lábios, nas unhas e sobrancelhas. Após sobrepor artificialmente os supercílios, ou desenhar as sobrancelhas, tecia os cabelos com certo tipo de linha que, uma vez desfiados e penteados, modulavam as cabeleiras: lá estavam suas criações manufaturadas. Seus bibelôs. O poderoso mundo de Brunilda, criado e dominado por Mãezona.

NESSE PERÍODO, após a volta da viagem, ela ficou outras vezes grávida, até o décimo filho nascido vivo, o Coisnha Jr. Num domingo de sol, fazendo-se exasperar com a demora do marido e filhos que saíram para se divertir na coroa de areia do rio Parnaíba que, nos meses dos “b-r-o-b-r-ó-s” (setembro, outubro, novembro, dezembro) atraía centenas de pessoas que iam se bronzear próximas aos quiosques de palha onde a cerveja gelada e a cachacinha com tira-gosto de petiscos, os fazia parecer adultos. Marmanjos embebedando-se, dando vazão às suas temeridades, seus cansaços, complexos e recalques, em papos de grupo onde a pobreza de espírito os fazia embarcar na nau dos náufragos das piadas sexistas, machistas, bem ao gosto do servilismo baixaria, estrutural, que escondia a impotência de suas ideias e a morte de qualquer ideal que não fosse habitual, ordinário, vulgar.

MÂEZONA, LÁ pelas dezesseis horas, saiu de casa acompanhada por mim e pela Zélia, uma moça do interior que era hóspede de casa e viera para estudar na capital do Estado. Ela olhava para a barriga inchada, grávida, próxima à data do parto e abanava as mãos sobre ela, injuriando com palavras ofensivas, o embrião que estava próximo à data de ser vomitado de suas entranhas. Ela o amaldiçoa. Sim, porque o Coisinha Jr., prestes a nascer, estava certamente empatizando todo aquele discurso de rejeição que ela fazia com relação à Paizão e ao Coisinha que estava para nascer. Ela agora, depois que o marido arranjara uma amante, mostrava-se disposta a verbalizar hostilidades contra ele, em qualquer oportunidade que aparecesse.

DÉCADAS DEPOIS de parir Coisinha Jr., esse se revelou uma criatura desmiolada, frágil, que ameaçava suicidar-se para fazer chantagem emocional com o agora casal de idosos que eram seus pais. Coisinha Jr. se refugiara no apartamento de um irmão em Brasília. Depois, pediu guarita na casa de Fernão e Vanja, primos que haviam se casado e moravam em Natal. Algum tempo depois saiu brigado de lá porque queria apossar-se da parte anexa da casa que o casal havia liberado para ele morar, alegando que haviam doado a casa para ele nela instalar uma academia de musculação. O Coisinha Jr. Era mesmo muito doidão. Ou melhor: doidinho.

PAIZÃO E MÃEZONA não tinham mínima noção da responsabilidade superlativa que é planejar trazer uma criança para o mundo. Esse mundo cão. Este é um livro sobre verdades que raramente, ou quase nunca são ditas. Talvez porque tenham tudo a ver com a base frágil nas quais se erguem as palafitas da maior parte das famílias pequeno-burguesas no Nordeste. O casal prosperava apenas em desditas, revés e tribulações.

PAIZÃO TARDIAMENTE se deu conta dos malefícios que processou em meu desfavor durante toda sua vida familiar. Testemunho reiteradamente essa ocorrência do pedido de perdão ajoelhado diante de mim, com braços esticados para cima, e comparo à imagem do desenho figurativo “Comediante” obra de Paul Klee. Ele, Paul Klee, afirmou: “A Arte Não Representa O Visível, A Arte Torna Visível”. O expressionismo tragicômico de Paizão Coisinha Comediante, ajoelhado diante de mim a repetir:

— “Perdoe-me. Perdoe-me. Perdoe-me”.

EU ME DETIVE A olhar surpreso, sem saber o que fazer: se me ajoelhava frente a ele e o abraçava também dizendo:

— “Tudo bem. Não é preciso fazer isto. Levante-se”. — Mas o amontoado de indignidades ao longo da vida que eu havia presenciado nele, não me permitiu senão me ausentar da presença patética que, de joelhos, me pedia perdão. Nesta ocasião, muito tempo dos acontecimentos anteriormente narrados, eu cursava Letras na Universidade Estadual do Piauí. Mãezona Brunilda se ocupava em fazer de tudo para que eu desistisse do curso. O que não aconteceu. Paizão movia as peças do tabuleiro de xadrez familiar, seus filhos e filhas, alguns já casados e com filhos, do profundo local infernal, anímico, que, de dentro dele, motivava a todos a não perder de vista a animosidade que sentiam com relação a mim. E que ele não parava de alimentar. Ele e a mulher.

LÁ ESTAV ELE, DE joelhos, braços estendidos para cima, próximo ao local da mesa em que eu fazia meus estudos. Ele repetindo: — “Me perdoe, me perdoe, me perdoe”. Mãezona, sempre vigilante e querendo dirigir todos os acontecimentos dentro da casa na qual sua personagem alternativa, seu alter ego, Brunilda, apareceu de repente e ficou olhando Paizão Coisinha de maneira ofensiva, como quem o estava censurando, e isso bastou parque ele se levantasse e fosse, incontinenti, para o quarto de casal que ocupavam na casa.

BRUNILDA OLHOU para mim como quem pergunta: “o que estava acontecendo aqui”??? É preciso que o leitor compreenda que Mãezona sempre estava a esconder, ao mesmo tempo que agia em ocorrências familiares, uma fúria cerebrina de impetuosa e extraordinária violência. Como quem está sempre a dizer:

— “Não admito que nada aconteça nessa casa sem meu consentimento”. Era uma ameaça que ela não verbalizava, mas tinha o mesmo efeito de uma verbalização gritada, ameaçadora, de bizarra competência. Eu me senti coagido a responder:

— “Ele estava apenas ajoelhado e me pedindo perdão”. Mãezona Brunilda virou o rosto e a corpulência de sua constituição física para a esquerda, contornando, apressada e ameaçadoramente a mesa ao lado da qual Paizão se ajoelhara, e saiu, como se estivesse a ameaçar o próprio espaço em frente, na direção ao quarto do casal.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 22/02/2023
Reeditado em 22/02/2023
Código do texto: T7725020
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