A MULHER QUE CHORA II — PICASSO (1938)
A MULHER QUE CHORA II — PICASSO (1938)
EUZINHO NÃO PASSAVA de um recém-nascido, mas intuitivamente me perguntava se havia ou não um jeito de ter nascido noutro lugar, que não fosse habitado por criaturas de almas antigas e de compleição milenar. Futuramente me perguntaria se, em algum lugar do universo, teria acontecido um erro de avaliação, e teriam mandado a Cegonha para o lugar errado. Na família errada, no país errado, no planeta equivocado. Hoje acredito que não. Que os hominídeos são semelhantes em todos os lugares onde existem.
ESSA CONFIGURAÇÃO DE lugar de nascimento não poderia estar certa. Perguntava-me quantos espíritos encarnados nesse plano planetário teriam tido, ao nascer, essas semelhantes percepções de estar num lugar no qual a hostilidade fosse tão manifesta e contrária às possibilidades de o corpo crescer e se desenvolver em espiritualidade. Em racionalidade. A apropriação de minha pessoa por eles era intensa. Como se eu estivesse sendo ininterruptamente solicitado e absorvido pela vontade deles em me capturar, aprisionar e reter neles. Na mente deles. Sentia-me intensamente vampirizado.
HAVIA NASCIDO HÁ tão pouco tempo, e já me preocupava com estratégias que teria de criar para escapar das garras ferinas daquela turba disposta a me tornar um transgressor das leis da moralidade universal, das mais legítimas possibilidades de desenvolvimento físico, mental, intelectual. Entre um futuro escritor de textos de literatura local e nacional, aquele casal e sua filiação me queriam como um novo Pablo Escobar. O tráfico de coca e outras drogas, para a família era muito mais conveniente e lucrativo. Como dizia Paizão, estalando a língua:
— Quem precisa de escritor, de poetas, só faltava!!!
CERTA VEZ, ALGUM tempo muito depois, quando eu já havia chegado à idade adulta, sonhei com uma cidade muito antiga. Parecia-me uma grande necrópole com túmulos enormes, talvez egípcia. Havia cinco partições retangulares na tampa de um jazigo enorme. A cobertura da cripta havia sido deslocada e estava de pé à direita da parte superior do mausoléu. Eu olhei em sua direção e a vi, aquela Coisa bípede enorme, a figura gigante que devia ter sido, outrora, minha mãe, como se fosse uma aparição ao lado da tumba. Provocou-me arrepios a realidade onírica da visão.
A SENSAÇÃO DE contemplação de uma força sobrenatural. A estampa estava meia que translúcida. Mas suas feições eram identificáveis, assim como a sensação emocional que transmitia, como se fosse ela se identificando a si mesma. Ela, ao mesmo tempo uma pessoa de pé e simultaneamente uma extensão do sarcófago. A figura espantosa se desvaneceu. Ela, a tampa da tumba e o seu conteúdo. Simultaneamente.
TENHO A IMPRESSÃO de que tudo que ela queria de mim era a submissão. Como se alegasse que havia me parido, me carregado nove meses em suas entranhas, gestação e parição. Ela me cobrava esses seus cuidados. Por isso achava que eu deveria seguir todas as suas projeções sobre meu futuro a partir de suas vontades. Anular-me. Eu, agora desperto, memorizei-me criança, aconchegado entre suas pernas que pendiam de um assento comprido de madeira polida que ficava na sala de jantar. Salto repentino entre duas dimensões diferentes no tempo.
O DESPERTAR DO quase pesadelo chegou à tona a memória de uma das muitas canções que ela costumava cantar durante suas sessões de enlevo, durante as quais parecia embriagada por memórias muito ancestrais: “lagarta pintada/quem foi que te pintou/foi a velha cachimbeira/por aqui passou/no tempo da areia/fazia poeira/puxa lagarta/por essa orelha”. Ao fim da cantiga ela puxava para baixo muitas vezes o lóbulo de minhas orelhas. Em seguida me aplicava algumas cachuletas (agressão, detrás pra frente à orelha de outrem com o dedo indicador) até eu reclamar e sair de perto dela.
EU ME LIBERTAVA dos puxões de orelhas, dos “cascudos” que haviam se tornado doídos. Se não me afastasse, talvez ela ficasse puxando ainda por algum tempo, ignorando que as “cachuletas” doíam. Eu tinha a impressão de que tudo nele, Paizão Coisinha, e nela, estava contaminado por uma vontade de dominação do meu direcionamento futuro. Como se soubessem o que era melhor para mim, independente de minha disposição de ânimo e de minha vontade.
ERA COMO SE ambos não quisessem que eu exercesse minha liberdade. Respeito próprio e mútuo não exercitavam para comigo. Nem com relação a eles mesmos. Eles mesmos não eram mais que crianças sadomasoquistas crescidas, na creche do “faz de conta que somos adultos” e temos todos os direitos sobre sua pessoa. Não adiantava a mim me debater. Era Como se estivessem a dizer:
— ““É fácil, moleque, te dominar. Você não vai escapar de nosso alcance. Do alcance de nossas mãos. De nossa dominação. Você é só uma criança indefesa. Temos a faca na mão e o olho no queijo. E o queijo é você. Não adianta nem tentar escapar da fronteira que estabelecemos para você. Esse muro é muito alto e você muito “baixinho”.
TALVEZ ACREDITASSEM poderia eu ser um Golem conformado, um boneco vodu de suas intenções, as mais nefastas. Trazido ao convívio deles das entranhas de suas vontades delirantes, para a realidade da satisfação de suas expectativas sádicas de me reter para sempre na rede de intrigas que se desdobravam em minha direção. Eu lutava de modo incessante contra a prevalência a longo prazo dessas influências. Minha percepção era a de que queriam me usar para suprir suas necessidades materiais. E a de seus familiares.
NÃO SABIAM COMO ganhar dinheiro para o conforto familiar. Pertenciam talvez a uma sociedade secreta que, através da tortura, do impedimento de meu desenvolvimento natural, pudessem fazer com que eu extrapolasse minha revolta contra essa dominação familiar insana, num palanque político que me fizesse, através de meus manipuladores, obter poder representativo que favorecesse a todos eles. Tio Nenê costumava me dizer:
— “Para eles você é uma experiência que não deu certo”.
RESPEITO PRÓPRIO E mútuo de há muito os havia abandonado. As hostilidades eram diárias. O fato dele cheirar coca que me mandava buscar na farmácia do Tomazinho e de vez em quando dá uns tapas numa cigarrilha de maconha, quando a mulher, apreensiva, costumava borrifar desodorante ou espalhar talco na sala de espera vazia do consultório nas madrugadas insones ou no quarto de dormir contíguo, quando a filiação estava a dormir e eles poderiam, sem testemunhas, mergulhar no vício das drogas. Por veze eu despertava e me aproximava do ambiente defumado com odor de maconha. Quando descoberta minha presença próxima, Mãezona impetuosa e frenética berrava que eu deveria imediatamente voltar para a cama.
— “Vai dormir, menino, isso são horas de criança está fora da cama. Já devias estar no terceiro sono. Vai, vai logo, passa”.
PAIZÃO COISINHA não tinha maturidade para lidar com os efeitos dessas drogas, mas as consumia de forma irresponsável. Entre eles não havia amadurecimento de razões e intenções familiares. Era como se não estivessem nem aí para o futuro da filiação. A trágica exacerbação, melhor dizendo, exasperação dele ao contestar verbalmente nela, a disposição de parir um filho atrás do outro, uma boca a mais para alimentar a cada nove meses, numa família já depauperada de recursos, o fazia reclamar, chamando a atenção da barriguda para o fato de que ele não poderia dar conta de mais despesas.
— “Eu estou exausto, não tenho condições de fazer outra coisa senão trabalhar mais até me exaurir. Se continuar assim, vou te abandonar. Vou exercitar minha profissão em outro lugar onde possa ter algum descanso”. Mãezona não estava nem aí. Sabia que ele não tinha coragem de agir conforme falava. Nessas ocasiões de crise mais intensa, ela chamava o tio Nenê. Depois de uma conversa fiada que não resultava em nada, ela voltava a parir umas e outras vezes. Continuamente.
A FAMÍLIA CRESCIA em quantidade à revelia das necessidades que se acumulavam cada dia mais e mais. Eu, sendo o primeiro de dez filhos vivos, buscava compreender os argumentos irracionais dela ao dizer que o Santo Papa não admitia que as mulheres abortassem, ou usassem esquemas artificias para não engravidar. Esse não era um argumento válido. Ela, em meu modo de ver, não tinha religião nem muito menos fé. Exceto na própria alienação. Certamente queria esconder a falta de inteligência e feminilidade das quais era biologicamente carente.
FORNECENDO CRENÇA à dúvida: talvez Mãezona, por vezes, atentasse para a enormidade de sua perversão no papel de mãe. Mas, não podia mais voltar atrás nos compromissos firmados na oitiva com Paizão. Nas imposições que a situação de precariedade familiar impunha: ou seja, que um mínimo dos mínimos fosse investido em mim. Investir em mim um pouco mais, seria tirar "o pão da boca dos irmãos menores". Tudo se tinha tornado tardio para uma defesa de minha situação familiar precária.