PLATAFORMA ESPIRAL — ROBERT SMITHISON (1970)
PLATAFORMA ESPIRAL — ROBERT SMITHISON (1970)
NÃO É FÁCIL uma pessoa aprender a ler a si mesma. Ao voltar àquela casa no bairro Ilhotas, onde Mãezona e Paizão dividiam suas aldravas e trancafiavam a prole em desdobramentos de suas próprias inadequações à função de pai e mãe, Vi claramente o quanto aquelas criaturas viviam dedicadas a se mover no interior do corpo familiar como se vermes fossem dentro do intestino social do que restava da parentela próxima a eles. Eles não conseguiam esconder a bagaceira em que se tornaram e à prole. Mãezona, rainha da zona, escondia-se nos pequenos laços que dava nos fiapos de pano, nos quais se concentrava, cada vez mais, como se estivesse em outra dimensão do existir. Que queria ela tão recolhida, ensimesmada, absorta em dá aqueles nós nas tiras de pano???
QUANTO MAIS miserável fosse a situação dos membros no corpo familiar, mais ela se julgava apta a dar conselhos. Não tenho avaliação precisa de quantas vezes tentei dialogar com ela. Foram muitas. E a reação dela sempre a mesma: a força soberba de sua alienação continuava a alimentar aquela tonalidade de voz firme, pétrea, sólida, de quem ainda alimentava a certeza inabalável de que algum prodígio sobrenatural pudesse acontecer, e eu me dobrasse às suas habilidades de manipulação materna. Que de terna nunca teve nada. Nada mesmo.
OS CONTATOS pessoais de Mãezona com a enfermeira nazista, “doutora” Rozen, mulher do doutor Franca, que moravam na mansão em frente à casa de conjunto (Inps) de Paizão, talvez ainda acontecessem. Talvez ela, ou elas, acreditassem na interferência dos deuses nórdicos para fazer valer meu ingresso no mundo que, talvez, reservassem para mim. O então coronel pêeme, filho dileto de Mãezona, dedicara-se, quando criança, a tomar a iniciativa de se sentar, com frequência, no colo de Paizão e, consequentemente, promover orgasmos no pinto dele pelo contato do bumbum bulindo. Era o predileto de Paizão na rede de tucum da sala de estar. Mãezona não mais provocava nele o prazer da intimidade. Mas, aquela criança devotada a se sentar em seu colo, sim.
CONFIGURAVA-SE contra mim, cada vez mais intensamente, o complô de interesses familiares. O que um daqueles membros sentia, os outros acompanhavam por empatia. O que os unia era a vontade familiar de que eu canalizasse toda minha ira, toda minha fúria em saber-me sendo usado e abusado pela falta de recursos dirigidos sempre aos demais irmãos e irmãs direcionados, enquanto o tempo, meu precioso e insubstituível tempo, o tempo de minha educação, da satisfação de minhas necessidades, eram jogado no lixão dos conchavos de interesses unidos da parentela.
A EMPATIA positiva, seu componente afetivo, só existia de mim para com eles. Eu compartilhava a compreensão de seus estados emocionais de intensa ansiedade. Eles queriam alguém, eu, em quem pudessem descarregar todas as suas frustrações, pessoal e familial, e lhes fornecesse a esperança de que saberia o caminho de ganhar dinheiro e fornecesse a eles a respeitabilidade social de que tão desesperadamente precisavam. Conectava-se com eles a partir da compreensão de seus estados mentais deploráveis, carentes de qualidade de percepção, de humanidade. A percepção de que eles queriam alguém que os livrasse de suas misérias materiais, e lhes concedesse a prerrogativa do amor-próprio e da autoestima com relação à condição social, era compreensível.
EU SABIA COMO fazer isso acontecer: destacando-me na atividade de escritor, ou trabalhador do cinema, ou dramaturgo. Eu tentava fazer Mãezona compreender que eu poderia me destacar nessas atividades. Mas Mãezona era uma troglodita do tempo da pedra lascada, e não compreendia que bastava ela ter uma atitude emocional de apoio, minimamente positiva, e eu estaria apto a fazer acontecer o prestígio financeiro, econômico e social de que tanto careciam. Paizão havia detonado suas sinapses, neurônios e neurotransmissores cafungando os medicamentos que deveriam ser usados enquanto anestésicos de seus clientes. Assim como a cocaína fornecida, com frequência, pela farmácia do Tomazinho.
MÃEZONA TINHA uma mentalidade de mulher da zona. Da zona das boates do baixo meretrício da rua Paissandu e adjacências. Dessa zona que sua irmã frequentava, segundo ela mesma dizia, com programas com gentinha de ambos os sexos que se aproximavam da mesa onde ela ficava sentada à espera de clientes, bebendo cerveja. Suas duas filhas, Terezona e Coralina, e o filho único, não mais tinham vínculo familiar de respeito para com ela. Segundo Mãezona, sua prole tinha vergonha dela.
ELA, MÃEZONA, e o marido, não compreendiam que alguém saído de seu DNA pudesse ter força física, mental e de caráter para enfrentar as adversidades que haviam preparado para mim, e sair do fosso de privações e impasses em que haviam me lançado, e dele soubesse ou lograsse sair. O casal e seus filhos não saberiam avaliar a valorização do intelecto e da cultura de alguém que estivesse disposto a investir no autoconhecimento, na aquisição de cultura pertinente ao saber ser. E não apenas ter. Eles não sabiam que eu precisava da confiança e do respeito deles. Mas, como poderiam ter confiança e respeito por mim se não confiavam em si mesmos, e tampouco praticavam respeito entre si???
MAS, ENTÃO, como queriam que eu conseguisse tirar sua prole da companhia de suas misérias pessoal, familiar e social??? A estratégia familiar com relação a mim estava nítida: o coronel pêeme, que na infância se dedicava ao colo de Paizão, costumava me chamar de “Baixinho”. “Baixinho” era o apelido do famoso traficante de drogas mexicano “El Chapo”, que em gíria mexicana quer dizer “O Baixinho”.
O CORONEL pêeme, era aquele mesmo que havia se sensibilizado ao extremo de chorar emocionado, ao ver entrar na sala da Companhia de Guarda do Palácio do Governo, o também notório criminoso associado às chefias do crime organizado no Piauí: o coronel Correia Lima. Há muitos QGs do crime organizado no Piauí. QGs esses liderados por políticos, juízes, militares, médicos, empresários. Eles usufruem de quase total imunidade. A justiça nunca os alcança em seus redutos particulares cheios de mordomias. A quase totalidade da sociedade piauiense os teme e se omitem de criticá-los até na reserva de conversas à boca pequena.
O JORNALISMO piauiense é por esses criminosos financiado. Mas, não poucos jornalistas foram assassinados por adentrarem mais objetivamente nos meandros das investigações que sempre costumam ficar na superfície. As polícias, civil e militar estão de há muito, muito tempo, cooptadas pelos recursos financeiros que a elas são liberados para a compra de suas respectivas cooptações. A assembleias dos políticos são eleitas a partir de recursos advindos dele, crime organizado. E as secretarias de governo, municipais e estaduais, não se interessam minimamente por destacar pessoas do mundo das artes, da cultura, e nelas investir, porque a arte, a arte literária, principalmente, é por eles considerada de pouco ou nenhum interesse social. Os artistas inconformados, dizem:
— É assim que o mundo gira.
— É assim que a banda toca.
— Assim engatinha a humanidade.
— É assim que funciona.
— É assim que o mundo muda.
— Quanto mais as coisas mudam mais se tornam iguais.
— É assim que tudo acaba.
— Assim o mundo foi criado.
— Esse é o mundo real.
— Assim marcha o sol diário.
— Essa é a cultura oficial.
— Assim manda o general.
— Esse é o ritmo da parada.
— Arte, só a do canto dos pássaros na gaiola d loucas.
— Arte só a do Vai Que Cola com Coca-Cola. E terrorismo.
— A arte caminha para bem longe dos arabescos, das esculturas meramente documentais. Lá, para bem longe de onde a cultura da preguiça e da mediocridade se entoca e esconde. A cultura coletiva, popular, vive da leitura de um ou dois livros por ano. A cultura no Brasil agoniza na toca da mandioca que alimenta Macunaíma e a sua bruaca de Pantanal.
(P.S: ESTE TEXTO PERTENCE AO ROMANCE MULTIESTILOS "ONDE A LUZ DA LUA VEM BRINCAR").