O GRANDE BODE — GOYA: QUINTA DEL SORDO (1819/23)
O GRANDE BODE — GOYA: QUINTA DEL SORDO (1819/23)
DULCE IT, “A COISA”, nunca foi mais do que uma extensão da maldade facínora dos pais e, quando cresceu, da maldade equivalente de seus irmãos, com ênfase no coronel Fulano. Sua principal tarefa na vida era a vivência intensa de suas maquiavélicas tramas. Um dia chegou à porta de meu quarto, ao lado de seu irmão Toni Ratazana dizendo que eu tinha de sair urgente, naquele mesmo dia, porque a casa tinha sido vendida e o comprador queria os cômodos desocupados. Lá fora estava um caminhão que levaria meus pertences a outro lugar.
EU SIMPLESMENTE poderia me negar a sair. Mas, estava saturado de ver aquelas caras agourentas, sinistras, nefastas, cruzando comigo todos os dias. Eu poderia ter ido à delegacia do idoso reivindicar meus direitos. Resolvi mudar para um apartamento que passei a alugar de uma namorada que trabalhava no serviço público de saúde. Toni Ratazana e Dulce It, “A Coisa” estavam a serviço do coronel Fulano, aquele que proporcionava mais orgasmos a Paizão, sentado em seu colo, do que a própria mulher dele, Mãezona. O coronel queria a casa para ele, para a filha se estabelecer no atendimento de cães. Ela havia se formado em veterinária e queria um lugar para comercializar serviços a cachorros.
EU, ERA UM cara simplesmente descartável, como sempre havia sido. Uniram-se todos para me tirar até o lugar onde poderia ler meus livros e dormir. Mãezona, Paizão Coisinha, Toni Ratazana, “A Coisa” e os demais membros da família (quem cala consente) unidos para, mais uma vez, me solapar. Todos tinham suas razões. Afinal, já sabiam, eu não era um deles. Era um Estranho naquele ninho de morcegos e serpentes. Nesse campo minado do futebol familiar, eu jogava contra o time de futebol deles e os demais reservas. Um massacre: todos contra um.
CADA UM DELES vivia segundo os mandamentos de levar vantagem. Já haviam se estabelecido com famílias, filhos, negócios e empregos. Eu, vivia a valorizar a aquisição de conhecimentos. Era como se não tivesse sido parido do mesmo ventre de Mãezona. Meu DNA não combinava com o deles. Eu também estava farto das ameaças veladas de suas conversas, de suas pressões para me ausentar da proximidade deles. Eles tinham tentado, de todas as maneiras, me fazer participar do Inconsciente Pessoal e Familiar deles. Mas eu não havia nascido para ser cooptado pela vulgaridade insignificante de suas realidades e tramas.
A SOCIEDADE À qual pertenciam de corpo e alma, era a sociedade de interesses de mercado. Do mercado de bugigangas, de drogas e de carne. Da carne que mais dia, menos dia, apodrece. O espírito, que também deveria alimentar seus corações e mentes, para eles era uma ficção de dementes. Eu via e sentia com toda clareza, que aquela família estava sob a comunicação, domínio e controle do mal. De um mal que pairava como uma nuvem invisível por sobre suas cabeças desprotegidas. Cabeças tuteladas por pais psicóticos, sem que esboçassem a mínima reação a seus delírios. Cabeças sob comando do mal social.
EU GOSTARIA de poder ajudá-los. Bastava que me concedessem um mínimo de apoio, e eu estaria em condições de promover-me. Mas, a sociedade na qual pisavam no chão de estrelas narcísicas da Tv e suas propagandas de consumo, não lhes dava a mínima esperança de que meus talentos literários pudessem ser acolhidos. Havia séculos e séculos de uma cultura de cavernas por detrás de cada uma intenção deles, da família, da sociedade à qual eram subordinados.
EU NÃO PODIA ajudá-los porque a sociedade à qual pertencíamos não estava nem aí para cultura que não fosse a da fanfarra tipo “Vai Que Coca”. A cultura vigente e valorizada era das bandas de música de filhinhos de papai imitadores dos astros pops importados. Quando, após a Via Crúcis pessoal na cidade do Rio de Janeiro para adquirir uma base cultural que não fosse de circo dos horrores, voltei para Theresienstadt, dirigi-me até a Secretaria, dita de Cultura, e me deparei frente a secretária Allcenoura Vacaincestus, que se dizia minha prima em segundo grau, após um “papo de terceira”, no qual defendi minhas razões e motivações culturais, depositei em sua mesa alguns volumes de romances, contos e poesias de minha produção pessoal.
NO CONTATO COM Allcenoura não presumi o mínimo interesse dela em ler meus manuscritos. Ao contrário. Quando ela visualizou as xerox de meus textos, senti que ela havia se decepcionado. Ela queria outra coisa, exceto alguém que afirmasse diante dela uma cultura que ela não tinha. E não queria que ninguém mais tivesse por que seria, se me promovesse e à minha produção literária, uma ameaça ao cargo de secretária de uma cultura para boi dormir por ela representada.
ALLCENOURA ERA a representação de interesses que nada, minimamente, tinham a ver com cultura. Cultura, na realidade de sua significação. Eu estava frente àquela mulher que nem de longe, muito longe, estava interessada na promoção de cultura que não fosse a da “bomba meu boi”. Ela me parecia dizer:
— “Eu estou aqui. Bomba nim mim. Bomba nim mim”.
EU NÃO QUERIA bombar nela. Aquela atitude dela, de olhar com indiferença, posso afirmar, com aversão e menosprezo aos feitos de minha atividade literária, já dizia tudo. Toda aquela conversa já havia sido uma retórica de farofa, uma conversa pra boi dormir, antes mesmo dela abrir a boca eu já havia visto que aquele contato não ia resultar em nada que interessasse à promoção da cultura local. Aquela mulher era simplesmente uma figura de teatro mambembe. De uma cultura ordinária, medíocre, interessada na promoção de suas coxas e calcinhas nos motéis da grande zona que é a cultura social da sociedade de Theresienstadt.
BOM, QUE PODERIA eu fazer??? Nasci de Mãezona e Paizão Coisinha que não tinham a mínima relevância política e econômica naquela sociedade vil. Eu pertencia à uma cultura do tempo das cavernas. Uma cultura de esqueletos. A carne que havia neles, aparentemente poderia ser jovial em suas falas, no seu gestual, em suas expressões faciais. Mas, em verdade em verdade vos digo, aquela carne, daquela mulher, já havia sido consumida por sete palmos de chão.
A CARNE DE sua descendência, de seus filhos, filhas, netos, netas, parentes próximos e distantes, seus batizados, aniversários, noivados, casamentos são extensões de cerimônias que a Terra e a terra há muito tempo já comeram. Aquela mulher e a sua cultura de mentirinha, não passava de mais um fantasma do álbum de família. Um fantasma impresso e fixado em fotografias, nas selfies dos celulares. A cultura daquela mulher era de atriz de novelas, de programas de humor de segunda.
OS ESQUELETOS que se moviam por detrás dela, estavam no comando de todas as demais secretarias de governo. De suas campanhas publicitárias para enganar um povo e lançá-lo com toda convicção, na lata de lixo de sua própria história. Eles, elas, as secretarias de educação e cultura das Allcenouras Vacaincestus, são os proprietários e proprietários de tudo. Dos destinos envilecidos e da tristeza pop de uma sociedade dedicada a enganar e corromper seus membros. De dentro de suas graciosas, chiques e elegantes mortalhas.