ABAPORU
ABAPORU
O PARENTESCO é um vínculo jurídico entre fulanos, beltranos e sicranos, sujeitos de uma mesma origem biológica, um tronco comum de similitude consanguínea. Mas, há no DNA de cada um deles diferenças biológicas na química nos 23 pares de cromossomos. 22 desses pares são autossômicos: não associados ao sexo biológico do indivíduo. Esses pares não são idênticos. Eles são herança dos pais, mix de aprendizagens, conhecimentos, fundamento e sintonias genéticas. São repassados de geração em geração ao acaso: 50% da mãe. 50% do pai. O extremo que alguém pode herdar de uma avó é 25%. De uma bisavó, 12,5%.
SOMOS CRIADOS a partir de um “eu” de referência genética, de relações de identificação que se distinguem por parentescos de afinidades estabelecidas via união do casamento consanguíneo por descendência. Em família, somos uma agregação de seres unidos por laços afetivos. Em sociologia, a família assimila-se na compreensão de uma instituição que socializa seus indivíduos. A família de Mãezona retratava, suponho, a família nacional de modo geral: tinha um grande corpo físico numa cabeça de alfinete. Uma representação do Abaporu.
UMA SITUAÇÃO na experiência familiar, era a imposição que Paizão e Mãezona estabeleciam entre irmãos. Eu e meu irmão nascido depois de mim, fazíamos um par que se contrapunha a outros pares de irmãos e se debatiam e contrariavam entre si. Nesse jogo familiar eu fiquei sozinho: sem pai, nem mãe, nem irmãos. Eu, o cordeiro do sacrifício. Eu, o bode expiatório que deveria sempre gostar de se sacrificar pelos irmãos menores. Mas eu nunca comprei essa ideia. Eu sempre acreditei em oportunidades iguais. O que certamente não aconteceu. Longe disso.
HAVIA UMA genealogia em mim que não combinava com eles. Eles todos. Talvez em parte, não apenas pela realidade do DNA, mas pela própria estimulação que tinham com relação à minha incômoda existência dentre eles. Familiares. A identificação inexistia. Eu não me aparentava com eles. Não havia identificação de identidades. Havia uma nuvem a pairar sobre eu e meus familiares. Eles todos estavam cooptados pela mesma ideia de me hostilizar. Quando não claramente, sub-repticiamente. Ssa hostilização era incentivada por ambos: Paizão e Mandona.
EU DESCONFIAVA que o motivo não era apenas a precária economia familiar. Havia algo, uma força forte por sob suas intenções mal geridas. Eles pensavam que uma criança, eu, não teria forças para ir contra essas radicais e tenebrosas tensões que todos os dias se intensificavam em minha direção. Eu era um bom aluno na disciplina “moral e cívica”. As coisas que aprendia nos livros não se justificava, de jeito nenhum, no cotidiano familiar. Eu achava isso muito estranho, perverso e detestável.
ELES ME cercavam de fardos que se acumulavam em minha memória infantil. Memória essa que, na juventude, retornei de uma ótica e um enfoque que mudou completamente minha avaliação sobre eles. Para mim eles não eram uma família. Eram torturadores perversos. Mas, eu não poderia fazê-los ver meu ponto de vista, ou não teria deles a guarita que muitas vezes precisei evocar e perscrutar.
ESSA ATITUDE crítica, ao mesmo tempo que servia para me afirmar enquanto um ser humano independente deles, me fazia, simultaneamente, sofrer por uma culpa de estar a manter essa de desaprovação e depreciação deles:
— Então, pensava eu, todos os meus irmãos fingiam não ver a quantidade de ameaças organizadas para que sempre estivessem dispostos a criar situações de hostilidade contra mim??? Faziam de conta que não as viam!!! Eu que me danasse por minha própria conta. Ou que ousasse sair dessa rede de intrigas que se configuraram, no futuro, também da parte de conhecidos e vizinhos.
DULCE IT, “A Coisa”, não perdia uma única oportunidade de me detratar para quem quer que fosse. Mesmo sabendo que minha situação familiar já era por demais insustentável. Paizão dava a ela o exemplo mais detestável e sádico de hostilização á minha pessoa, principalmente em minha juventude. Lembro que precisei sair do convívio deles, mais uma vez, porque Coisinha Júnior, que alguns vizinhos que o conheciam chamavam de “Toni Ratazana”. Porque sabiam que roubava do velho o quanto podia, sob a alegação de que sua situação o fazia ter ímpetos de suicidar-se.
TONI RATAZANA roubava o salário do já idoso Paizão, com a conivência da Mandona e de Dulce, A Coisa. Ambos tinham tirado da responsabilidade de Dulce It a tarefa de retirar o salário de Paizão porque ela gastava nas próprias despesas familiares dela. A mãe tinha-se abstido da responsabilidade pela retirada mensal no banco. Havia um consenso entre familiares de que ela, Mãezona, poderia beneficiar-me com algum provento proveniente dele, salário. A crença de que ela, de alguma forma, poderia me passar alguma grana por debaixo dos panos. Era apenas uma especulação. Eles sabiam que a mãe não me daria nada. Exceto o direito que eu tinha, segundo a Constituição e Código Civil, de habitar na residência deles. A contragosto deles.
PAIZÃO JÁ HAVIA visto que seu filho mais novo, ao qual dedicou inúmeros investimentos (carro, terreno, casa) negava-lhe quantias mínimas de seu próprio salário que ele pedia para gastos simples, pessoais. Mas, Toni Ratazana contava com o apoio incondicional da mãe, que tinha por ele não apenas uma atenção de filho mais novo. Ela estava em conluio com seu rato de estimação porque ele dividia com ela algumas migalhas do salário do marido, do qual não perdia oportunidade de falar maledicências sobre membros da família dele.
TALVEZ POR todas essas coisas juntas, Paizão tinha se ajoelhado diante de mim, quando fazia trabalhos dissentes, voltado seus braços para o alto e me olhando com olhos penitentes, repetia inúmeras vezes:
— Me perdoe, me perdoe, me perdoe. Como poderia eu, depois de ter sido sistematicamente aviltado por ele, desde a mais tenra infância, de repente perdoá-lo??? Perdoa-se, segundo O Evangelho de Mateus (18:21-22): então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou:
— Senhor, quantas vezes deverei perdoar meu irmão quando ele pecar contra mim??? Até sete vezes??? Jesus respondeu:
— “Eu digo a você. Não sete, mas setenta vezes sete”. Aquele ser, dito humano, meu pai, havia feito suas apostas na filiação errada. Tinha investido num filho que agora o roubava descarada e perverti amente, negando-lhe migalhas de seu próprio salário que ele retirava no banco todos os meses. E com conivência da própria mãe. Era, certamente, uma humilhação demasiada, até para ele.
MEU CORAÇÃO, posteriormente, nesse gesto se comoveu e entristeceu. Naquele momento eu apenas olhei para sua figura patética, ajoelhada diante de mim, e ignorei seu ato de contrição. Afinal de contas, ele havia me oprimido, abatido e aviltado não 70 X 7, mas milhares de vezes. Naquele momento ignorei seu gesto. Era um nada, com relação a tantos vexames impostos a mim no decorrer da infância, na juventude, e na vida adulta.