FUMAÇA SOBRE VALLARIS — PICASSO (1951)
FUMAÇA SOBRE VALLARIS — PICASSO (1951)
PASSADO O TEMPO passado, longe da agressiva demonstração de rejeição por parte da família de Mãezona, após voltar outra vez à Via Crúcis das agressões familiares no interior do larbirinto, após correr atrás da sobrevivência precária em empregos temporários no Rio de Janeiro, me chegaram às mãos uma carta de Wanja na qual ela dizia de sua intensa depressão. Não sabia mais o que fazer para se sentir melhor das ideias. Estava num período “down” de baixa autoestima. Estava a pedir atenção, afeição, socorro, pronto acolhimento.
EU HAVIA LIDO o livro do padre jesuíta Teilhard de Chardin, “O Fenômeno Humano”. Escrevi em resposta à carta dela que “não somos seres humanos passando por uma experiência espiritual. Somos seres espirituais passando por uma experiência humana”. Que estamos a cada dia mais nos aproximando da compreensão da complexa consciência que nos permite uma aproximação maior com nossa evolução: o “Ponto Ômega”, assim denominado por Chardin.
CHARDIN NESTE livro sobre a “História do Universo”, fornece uma visão desde o vazio ou Nada no passado mais remoto, até o despertar da consciência humana, ou “Ponto Ômega” no futuro. O poder de reflexão do ser humano que sabe harmonizar a Ciência, o conhecimento do mundo material, o pensamento cognitivo, racional, à interferência do divino, das forças sagradas e sobrenaturais citadas e consistentes na Teologia.
EU A CONFORTEI da melhor forma possível ao meu alcance. Ela em resposta ao feedback de minhas cartas, deu a impressão de que se recuperava de sua estadia no fundo do poço da fossa. Mas suas cartas eram entremeadas de outras que eu não compreendia, estavam cheias de coléricas insinuações que não estavam nítidas na intenção do que queria realmente dizer. Ela apenas sugeria, como se não quisesse ou não soubesse articular suas razões e apenas aludia a elas. Uma dessas cartas estava acompanhada de um livro: “O Príncipe das Marés”.
ESSE LIVRO conta a história da casa de uma família invadida por três fugitivos de uma prisão de segurança máxima. Os criminosos estupraram Lila, Tom e Savannah. Eles foram mortos porque Luke, o irmão mais velho, atirou neles com a espingarda do pai, matando-os. Enterraram os corpos e a mãe fez todos jurarem que não contariam a ninguém. Tom, o garoto estuprado, acreditava que os traumas subsequentes e conflitos familiares se deveram a essa ocorrência.
LILA, A MÃE, a menos afetada por ser adulta e ter o psiquismo mais bem preparado para reagir à situação de conflito, utilizou-se mais facilmente do mecanismo de negação e supressão do trauma no subconsciente, sem nunca aceitar falar sobre a nefasta ocorrência, visando a evasão da carga afetiva pesasse mais em seus descendentes.
SUSAN LOWENSTEIN, a psiquiatra interpretada por Barbra Streisand, também diretora do filme, ouve de Tom, agora casado com três filhos, o traumático episódio de sua infância. Objetiva com isso livrar-se e livrar Savannah dos demônios reprimidos em seu interior, por suas memórias sufocadas restritas a apenas eles, as vítimas do estupro. Ambos se tornam aliados, visando também libertarem-se de suas vidas frias e da indiferença em que estavam sendo sufocados. Afinal, Tom Wingo era um sujeito transtornado, ególatra, cínico, intolerante e ao mesmo tempo simpático, atrativo, amável.
ESTAVAM AMBOS empenhados em mudar a própria vida. O antagonismo entre eles virou amor. E desejam desbloquear a atormentada irmã de Tom do trauma que a atormenta na calada das noites mal dormidas. Falar da ocorrência era pior do que o acontecimento em si. Ter sido estuprado na presença do irmão mais velho era uma situação de humilhação e vergonha.
EU COMEÇAVA a compreender o porquê de Wanja ter escrito cartas em que me cobrava envolvimento com os traumas e personagens dessa história. Ela talvez estivesse querendo que eu admitisse ter sido estuprado pelo filho adamado da tia, irmã de minha mãe. Aquele rapaz que segundo a própria mãe, havia sido um garoto cheio de traumas e recalques por ter perdido o pai cedo, e ficado à mercê de uma mãe prostituta e doente, física e mentalmente. Forçado a trabalhar desde muito cedo, ele passou a mocidade submetendo-se às exigências e taras de seus superiores e chefes nos lugares onde trabalhou.
ELA, WANJA, estava comprando a história que Mãezona queria que todos acreditassem: que eu seria uma vítima de estupro e passaria a vida inteira pagando pelas adversidades do trauma recorrente. Ela, Mãezona e Paizão Coisinha, tinham a esperança de me ver desmunhecar como muitos colegas de escola faziam. Desejavam que eu me tornasse outro dos milhares de “homossexuais de boa família” que, uma vez cúmplices e camaradas, se tornassem uma ponte para a infiltração de seus outros filhos na sociedade Sodoma das influentes famílias da capital do Piauí.
TODOS OS MEMBROS da família estavam subliminarmente orientados a acreditar que eu seria, em futuro próximo, o passaporte deles para a entrada no circuito da sodomia familiar mais ampla, geral e irrestrita, característica da sociedade nordestina e brasileira dos desmunhecados com virilidade comprometida e salvo-conduto para brilhar nas colunas sociais, ou em algum grupo ou banda de músicos e cantores da música popular brasileira. Quem sabe eu facilmente teria meu lugar garantido entre o “cast” de atores da Globo, ou nos elencos das novelas na programação do “tio” Sílvio.
MÃEZONA E PAIZÃO Coisinha condenavam não apenas minha infância, mas as consequências dela em minha juventude. A memória traumática de todos os horrores presenciados e terrores vividos, ainda permanecem vívidos em minha memória. Não foi fácil sair em direção às praias de sol do litoral sudeste e nordeste, como se fosse membro da família “hippie” nacional. Minha família foram os amigos de Estrada. Aqueci-me com as garotas também malbaratadas por suas famílias. As famílias que o Bozo e seus sátrapas milicianos defendem.
MINHA IRMÃ WANJA com certeza queria que eu me declarasse mais outro membro castrado da conspiração adamada familiar da qual era parte. Como diria Wilhelm Reich: a falsidade, a mentira, o medo, a trama maldita de uma sociedade familiar que torce a espinha dorsal moral de suas crianças, mesmo antes que elas aprendam a caminhar...
TALVEZ ELA pensasse e agisse culpabilizando-se e me estigmatizando ao mesmo tempo, com o insulto de suas insinuações, como se eu fosse outra vítima da pedofilia paterna. Outra vítima desse genocídio infanto-juvenil de uma geração de homens e mulheres castrados em suas sexualidades de gênero. Cara irmã, se você me estiver lendo saiba: não é fácil para ninguém sair da gaiola das loucas em que fomos criados. Creia. Tenha fé. É quase impossível. Mas, quem sabe você chega lá.