O VELHO GUITARRISTA CEGO — PICASSO (1903)
O VELHO GUITARRISTA CEGO — PICASSO (1903)
MÃEZONA TINHA absoluta e absurda certeza de que conhecia os mais esconsos segredos e desejos da vida dos filhos que havia parido. Ela havia cismado que a coisa mais certa de todas as coisas para mim, seria ficar encoleirado, perto dela a render homenagens à sua “genial” capacidade de parir, e me ter parido. Eu, na avaliação dela, tinha sido criado não por um ser superior dotado de poderio criador. Criador de todos os seres humanos, após a terraplanagem do planeta Terra. Ser esse que havia colonizado também este sistema solar.
NÃO, PARA ELA, a criação de seus filhos era dela. Ela teria plena dominação de seus direitos à vida e à liberdade deles. Seriam todos, relativamente, o que ela achava que deveriam ser. Eu, de mim para comigo, tudo que mais queria da vida era sair da proximidade dela e de suas fixações psicóticas. Suas certezas para mim eram delírios dos quais eu tinha de achar um jeito de me afastar, mais cedo ou mais tarde. Não seria nada fácil. Eu tinha certeza de que, de alguma forma, conseguiria vencer o muro da vergonha que ela havia erguido entre mim e meus objetivos de vida.
SONHAR NÃO é tarefa à qual se pague dividendos. Eu sonhava também pela razão de não ter de pagar a ninguém por meus sonhos. Não pagar a ninguém pelo direito de usar minha imaginação, meus pensamentos. Mãezona queria porque queria ser madona e dona de meu imaginar e pensar. Cogitava deles se apropriar. Usava de todos os golpes baixos que conhecia, sem considerar as consequências de usar os meios mais baixos do vodu, do pó dos mortos-vivos que soprara em meu rosto de modo covarde e súbito.
AMPARADO POR minha vontade pessoal de liberdade, eu confiava que poderia ser livre. Livre. Relativamente. Um ser humano não pode ser livre amplamente. Desejava com veemência expressar-me segundo a avaliação do mundo do conhecimento, da experiência, da afirmação de meus pensamentos.
EU HAVIA lido sobre o livre-arbítrio nas considerações filosóficas de Nietzsche no livro “O Crepúsculo dos Deuses”. Este, afirmava que os teólogos inventaram a ideia do livre-arbítrio, para tornar a sociedade responsável por seus próprios atos e, em consequência, dependente dos deles, teólogos. Para se estabelecer a inocência do devir, a ideia de Deus deve ser negada. Não existindo Deus, a responsabilidade inexiste: para Nietzsche o mundo então estaria a salvo. Nietzsche morreu pirado. E é o filósofo mais lido da atualidade. O Salmo 49:13, nos diz:
— “O Caminho Deles É A Sua Loucura. Contudo Sua Posteridade Aprova Suas Palavras”. — Santo Agostinho introduziu o livre-arbítrio no pensamento ocidental. Essa foi a maneira de exercer o controle da livre-escolha por temor de se responsabilizar por ela futuramente. Eu pensava que, em meu coração e em minha mente, eu teria de me responsabilizar por minhas livres-escolhas. O que não era nada fácil. Porque, na prática, não havia liberdade no que quer que fossem minhas escolhas. Exceto relativamente.
PARA A CORRENTE do pensar sociopolítico do marxismo, a práxis é atividade característica do homem. É objetiva e simultaneamente subjetiva. Em minha compreensão isto quer dizer que o ser humano pensante pode transformar a natureza das coisas e, e somente se, ousar saber transformar a si mesmo.
EU ESTAVA, após sair do jornal “O Fluminense” por pressão do superintendente e do chefe de redação que me deu o ultimatum: ou eu escreveria meus artigos e críticas a partir dos filmes exibidos pela empresa fundada em Fortaleza, por Luiz Severiano Ribeiro, agora com sede no Rio de Janeiro, ou não teria mais direito a continuar escrevendo minha crítica cinematográfica diária no jornal.
EM OUTROS termos: ou eu me dobrava às exigências da distribuidora de filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, ou eu não teria mais o espaço no jornal. Ou eu cederia aos interesses da fundadora do Cine Majestic, hoje grupo Kinoplex (RJ), ou não mais teria espaço no jornal para escrever sobre cinema Novo, Expressionismo alemão, Nouvelle Vague, New Wave japonesa, ou cineastas da cinematografia do Leste europeu.
NA ÉPOCA EU estava influenciado pelas ideias do esquerdismo vigente na imprensa nanica, na MPB, nos livros do marxismo editado pela editora Brasiliense. Eu estava sendo conduzido pelo inenarrável tsunami de ideias e ideais de um humanismo cristão lançado no lixão da necessidade de sobrevivência que não fosse exclusivamente para satisfação do Todo Poderoso Chefão Mercado. Como alimentar meu estômago, minha insaciável sede de viver, em sendo uma vítima da cultura familiar e social, que havia sido devastada na correnteza do rio subterrâneo de um universo que acabava de morrer???
COMO NASCER a partir de um caos existencial sartreano, de uma Náusea universal que não fornecia a menor possibilidade de viver segundo um mínimo de possibilidade de liberdade de escolha??? Viver a juventude, viver a paisagem das praias, montanhas e delícias na práxis do tira-bota nas vaginas das garotas, mocinhas e mulheres que não paravam de se oferecer???
AS MINHAS universidades estavam nas ruas e praias. Eu tinha de encarar uma realidade para a qual ninguém estava preparado. Eu tinha de sobreviver em meio às mais ingentes precariedades nas quais, não apenas eu, mas toda uma juventude mundial estava a se debater, a se queimar, a se molhar na chuva tempestuosa de não ter nenhuma orientação formal de como proceder para simplesmente sobreviver às mudanças de paradigma da sociedade consumista.
SOBREVIVER SEM perder o direito de manter viva minha sexualidade. A atração pelo sexo oposto me dominava totalmente. Eu gostava dessa dominação. Mas, eu parecia mais um rapaz perdido numa ilha, tipo Lost, tropicália. Cercado por pessoas que estavam caindo aos milhares no colo de relacionamentos com outras do mesmo sexo. Os trans, os bissexuais, os tris sexuais, os desmunhecados, os adamados personagens mais desgastados pela velocidade do impulso libidinal que não sabiam nem podiam conter. Eu via nos corações, nas mentes e nas faces, o desespero significativo de “O Grito”.
TODOS FAZIAM qualquer coisa para estar vivos no dia seguinte. A urgência de ter de se alimentar, de conseguir um emprego, de se manter estudando num curso profissional, numa faculdade mantida a partir da prostituição do corpo físico, sem a qual não poderia comer um sanduíche com Coca-Cola no “Dia Seguinte”. Era um deus nos acuda sem possibilidade de ser acudido por nenhum deus.
COMO EU poderia preservar-me??? Comecei a pressionar entrada em agências de publicidade e propaganda que me permitissem a sobrevivência sem que precisasse entregar os pontos e voltar para o campo de concentração da cidade natal: Theresienstadt.
O DIRETOR DE Criação da Agência SGB, Marcelo Silva, no Largo da Glória, me aceitou enquanto estagiário desse departamento que ele gerenciava. Ganhei experiência. Eu ganhava o suficiente para alugar um quarto numa pensão próxima, fazer minhas refeições diárias e, principalmente, frequentar museus, cinematecas, teatros e ter
à minha disposição algum tempo disponível para leitura.