O GRITO — EDVARD MUNCH (1893)
O GRITO — EDVARD MUNCH (1893)
NOS SÁBADOS À TARDE, eu ficava a espiar o ambiente da sala onde Paizão Coisinha estava a bolinar o pinto no bumbum dos filhos, sentado numa rede de tucum. Mesmos os mais crescidos. Estes, cresceram sem ter uma visão crítica dele, de seus absurdos, de suas taras. Sempre que eu chegava próximo e tentava um diálogo sobre essas atitudes para com eles, eles me censuravam de cara. Ora dizendo:
— Ele não pode estar errado, ele é nosso pai, sabe o que está fazendo. Ou:
— Ele é nosso pai, devemos obediência ao que ele quer, ele sabe o que está fazendo.
— Não se deve contrariar o que nossos pais querem de nós.
EU NÃO CONSEGUIA fazer eles pensarem diferentemente do que estavam condicionados a aceitar e a fazer. Não tinham o mais remoto senso de escrúpulo questionador dessas aberrações erotizadas que faziam com que ficassem cada dia mais algemados à uma obediência paterna pervertida. Eles não questionavam nada. E Paizão Coisinha fazia-lhes a cabeça a partir da autoridade de quem os gerou e da mulher que os pariu. Eram filhos obedientes, bons meninos, boas meninas, boas crianças.
PAIZÃO TALVEZ TIVESSE uma orientação por trás desse comportamento infame, vergonhoso, deprimente. Ele certamente não estava sozinho. Talvez pertencesse a algum grupo religioso que tivesse uma justificativa para agir dessa forma. Ao receber visitas, quando essas o flagravam com a calça ou o pijama molhado de orgasmos resultantes da excitação devassa, venérea, no pinto excitado e transvazado na bundinha dos filhos, Paizão ficava momentaneamente sem defesa, sem graça, buscando, quando a visita o surpreendia na sala, usar o filho ou os filhos como escudos na frente das manchas de espermas. Mas o odor o entregava. Ia até o quarto e trocava de pijama ou calça.
ELE NÃO CONSEGUIA esconder o mal-feito, desde que, mesmo que conseguisse acobertar as manchas de esperma, não conseguiria tapar o nariz da visita ou das visitas que com ele vinham, frequentemente, conversar. Uma dessas visitações mais frequentes era a do que costumávamos chamar de “tio Hercínico”. Um sujeito que costumava visitá-lo muito excitado, com olhos esbugalhados e fala alterada pelo uso, segundo diziam, de coca misturada à bebidas alcoólicas.
A VISITA DESSE SUPOSTO parente o agradava sobremaneira. Conversavam, riam, divertiam-se a valer, passavam horas e horas em conversas de bêbados. Paizão sedia sempre às solicitações de ingestão alcoólica quando estava em presença dele. Contavam piadas sobre piadas escancarando a dentição sem se importarem com as aberrações que saíam do palavrório entre eles.
POR VEZES TIO HERCÍNICO, pegava uma das crianças de Paizão que por perto passavam e a atraía para a zona da própria genitália, entre as pernas, como se estivesse a fazer festinhas ou lisonjas ao garoto ou garota que por perto passasse. Paizão sorria, o tio sorria, e ambos pareciam estar de acordo com esse tipo de paparico.
A MÃE QUANDO VIA, pegava o filho ou filha pela mão e o tirava da proximidade dele. Dizia com acanhada rispidez que quando adultos estivessem conversando, menino ou menina não deviam se aproximar deles. As visitas de modo geral costumavam demorar nos “papos de cerca Lourenço”. Expressão usada para definir conversa fiada entre pessoas que, por mais que conversem, não dizem nada que se aproveite. Como essas pessoas se divertiam enrolando-se em novelos de palavras alcoolizadas.
QUANDO TIO HERCÍNICO se aproximava, por vezes cambaleante, mal conseguindo ficar em pé, apoiando-se nas paredes do corredor de entrada da casa, todos tínhamos certeza de que estupidez e prepotência premeditada, sob a forma de piadas escabrosas, estavam por ser contadas aos montes. Esperava-se uma devastação de palavreado amoral, mas que, por certo, eles achavam que estavam mostrando a todos o que significava ser um sujeito adulto, casado, com filhos. Eu me perguntava, apesar de criança:
— Em que escola eles estudaram. Essa era a educação que, afinal, ofereciam pelo exemplo. Que país estavam semeando em seus corações e mentes: debilidade mental e inépcia na compreensão do que são crianças, a quem deveriam respeitar. A contemplação dessas sessões amistosas entre eles, hoje me lembra a expressão de desespero e de angústia que, futuramente, aqueles meus irmãos e irmãs deveriam expressar em seus rostos, quando não estivessem mais alheios às consequências dessas experiências individuais no colo de Paizão. Uma profunda atmosfera de tristeza por certo haveria de, num dia futuro, esboçar-se em seus rostos.
O CATECISMO QUE frequentava em feriados e fins de semana na Igreja do Amparo, por iniciativa dela, mulher de Paizão, me ensinava a manter contato com princípios da religião cristã. Mãezona, contraditoriamente, me incentivava a frequentá-lo. O padre ou mentor do catecismo costumava nos falar de eventos do Antigo e do Novo Testamentos. Para ilustrar a catequese do dia, o guia nos dava em mãos pequenas ilustrações coloridas que se abriam ao meio e continham a reprodução de um acontecimento bíblico paradigmático. As quatro pequenas páginas eram por mim apreciadas e lidas com a máxima atenção. Eu me concentrava com intensa atenção no significado desses ensinamentos bíblicos.
EU QUERIA EXTRAIR delas, ilustrações, a essência de instruções e conhecimentos advindos de acontecimentos que a mim pareciam vir de outra dimensão de costumes que não aqueles praticados no lar. Era uma dimensão que nos queria dizer como agir. Como fazer o que é certo, e efetivar comportamentos que me poderiam salvar do horror que eu via acontecer em meu redor, quase todos os dias. Um horror premeditado. Um horror de que as pessoas que me cercavam eram prisioneiras e me parecia que não faziam nadica de nada para dele escapar. Não havia janelas na prisão astral da qual eram prisioneiras.
AS PEQUENAS ILUSTRAÇÕES distribuídas no aprendizado semanal dos rudimentos provenientes das histórias bíblicas, para mim eram uma motivação de esperança que queriam dizer que nem tudo no mundo estava perdido. Havia alguém ocupado em ensinar que a humanidade nunca esteve sozinha. E que haveria sempre um ser supremo ocupado em nos ensinar e proteger. Apesar de todas as mil dificuldades que se encontrariam os personagens habitantes descritos na história do Paraíso Perdido.
AFINAL, EU COMPREENDIA, toda a humanidade havia saído do ventre original da mulher Eva, agente do pecado original, tentada e vencida pela Serpente do paraíso que, se fosse mesmo um paraíso, deveria ter seguranças. Anjos que impedissem Satã de passar a lábia nela e fazê-la ser a mãe de uma humanidade desumana.